Ecos de uma Experiência Missionária na Guiné

Quando foi acordada com os Espiritanos e com o meu Bispo a minha ida para a Guiné, não sabia que partir era tão difícil! Partir obriga a sufocar aquela voz que teima em gritar dentro de nós o imperativo fica; Partir implica soltar amarras do porto das nossas seguranças e fazer-se ao mar do desconhecido em barco de insuficiências adivinhando tempestades sem que para elas se esteja totalmente preparado; Partir é partirmo-nos por dentro e darmos a Deus os bocados da fragmentação; Partir é vencer a indecisão com a decisão e ganhar a batalha travada com o velho do Restelo expulsando-o da nossa pátria interior desfraldando a bandeira da nossa liberdade; Partir é, como Maria, ouvir o Anjo interior, dizer-lhe SIM sem entender o mistério todo e pôr-se a caminho para levar aos outros o Amor de que estamos fecundados; Partir não é fácil e obriga a pôr um pescoço de aço para evitar que a cabeça rode e olhe para trás. Partir para a Missão na Guiné não foi uma canção de embalar, mas uma descolagem mais dolorosa do que aquilo que eu pensava que veio a revelar-se um dom ainda mais extraordinário do que aquilo que eu tinha imaginado e que só agora vou compreendendo e agradecendo a Deus. Se partir foi difícil, chegar e ficar não o foi menos. As saudades, o calor, que na Guiné é insuportável, os mosquitos que são um verdadeiro tormento, o receio de ficar doente, o volume das ocupações e preocupações, a avalancha dos violentos assaltos às missões, o falecimento da minha irmã e logo a seguir a morte do meu pai, fizeram com que os primeiros tempos na Guiné implicassem uma dose acrescida de fé e de força interior. Mas, de tudo, o que mais me custou foi ver o sofrimento dos guineenses. Na Guiné não há, como em Portugal, rendimento mínimo. Podia haver, ao menos, sofrimento mínimo. Mas não. Na Guiné só existe sofrimento máximo e moderado. Depende da sorte. E ambos estão garantidos para os próximos tempos, pois não consta, para já, a falência do sistema político que apouca aquela gente e tolhe aquele povo. Falo das dificuldades apenas para ser fiel à história dos meus dias passados na Guiné, mas é-me particularmente feliz referenciar as vantagens, as alegrias e as graças vividas. Este tempo em África foi o mais incrível e talvez o mais extraordinário da minha vida de sacerdote. Foi, verdadeiramente, um dom de Deus, uma graça que muito agradeço. Estar na Guiné possibilitou-me ser fiel testemunha de que os Missionários, com parcos recursos mas grande criatividade e sobretudo infinita generosidade, contribuem, em grande parte, para as soluções necessárias ao desenvolvimento daquele país, para a felicidade daquelas gentes e para a dilatação da fé e consistência da Igreja; Estar na Guiné levou-me a constatar que nunca ninguém fez tanto com tão parcos recursos como os Missionários. Eles são estafetas olímpicos a transportar mais além o facho da beleza da vida, da fé e da esperança; Estar na Guiné fez-me perceber que a maior parte dos políticos(os de lá como os de cá), com os seus desvarios, vestem de pobreza os corpos frágeis das pessoas e desnudam, sem pudor na consciência, a alma nobre de um povo; Estar na Guiné e conviver com dois bispos simples mas extraordinários, fez-me concluir que embora muito possa significar a pompa na Igreja, para pouco presta ou para nada vale; Estar na Guiné ajudou-me a descobrir que as várias Missões dos Espiritanos e das Espiritanas são Oásis num deserto de soluções e possibilidades; Estar na Guiné deu-me a certeza de que a nossa compaixão pelos que sofrem, mesmo se demasiada, é sempre pouca, pois a dor dos que padecem, mesmo que pequena, é sempre mais do que aquilo que merecem. Na Guiné não é possível divorciarmo-nos da compaixão. Lá, onde a gente se fere não é nos nossos problemas e nas nossas dores, mas nas dores alheias. Lá habita-nos a angústia que a dor de tantos desafortunados nos provoca; Estar na Guiné possibilitou-me a experiência feliz de acolher os que sofrem, ajudá-los, amá-los e vê-los partir aliviados ficando eu a gemer por dentro; Estar na Guiné fez-me entender melhor a idiossincrasia da Igreja; Na Guiné tive a possibilidade de rezar mais e fazer silêncio. O silêncio é um nada que em mim é um quase tudo. Faz parte da essência da minha alma que fica à deriva quando o não tem como hóspede. Estar na Guiné deu-me, enfim, novas prospectivas e abriu-me novos horizontes… Estar na Guiné, julgo poder dizê-lo, tornou-me mais humano, talvez mais espiritual, pelo menos fez-me ficar um padre diferente. Se o partir de Portugal não foi uma canção de embalar e se o chegar e ficar na Guiné não foi fácil pelas circunstâncias já descritas, embora se tenha revelado a experiência mais incrível da minha vida, o regressar a Portugal foi ainda mais difícil: Vim, mas deixei-me lá. Vim, mas trouxe as tatuagens de sofrimento daquela gente. Estou aqui na civilização e nas seguranças que a Europa e Portugal me dão, mas desejava estar lá nas dificuldades daquele país e nos perigos daquela terra. O adeus que disse à Guiné foi embrulhado num vendaval de emoções. Foi um adeus escrito com letras dolorosas e que me deixou os olhos marejados de saudade. Foi um adeus comovido. Sinto que amo para sempre a Guiné que agora me foge. Quem chega à Guiné atraca num cais de mistérios, mergulha numa beleza rara e indizível, veste-se de paisagens ímpares e irretratáveis, mas também se vê envolvido numa noite de dramas e sofrimentos incomensuráveis. Depois, quando temos de soltar amarras e de lá partir, vestimo-nos como que de uma paixão secreta e levamos os olhos impregnados de memórias e significações que pintarão com as cores da saudade a tela dos nosso dias futuros. E, como que assolapada, teima em vir connosco a vontade de um dia lá voltar. Esta minha aventura missionária na Guiné teve contornos que a memória apanhou e eternizou e provocou emoções que a recordação chora com saudosas lágrimas douradas. Agradeço a Cristo, o Missionário do Pai, este dom tão inolvidável que me concedeu e rogo a Maria, Rainha das Missões, a Sua bênção de Mãe para o querido povo da Guiné. Padre Almiro Mendes, Diocese do Porto

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