Problemas sociais vão ficar «como cicatrizes, desta crise enorme» – Manuel Antunes

É conhecido como o médico que não tinha listas de espera no serviço que criou e no qual esteve 30 anos – o Departamento de Cirurgia Cardiotorácica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Agora, a Diocese confiou-lhe outro desafio: a presidência da Cáritas de Coimbra

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Foto: Correio de Coimbra

Para um médico que teve sempre “o coração nas mãos”, literalmente, ser agora presidente da Cáritas Diocesana de Coimbra é uma forma diferente de cuidar do coração de quem precisa?

Sim, evidentemente. Nós temos muita gente com muitas necessidades, sobretudo nesta época em que vivemos, mas esta instituição já cá estava muito antes da pandemia. Eu vejo isto, agora que tenho algum tempo, como uma missão de cidadania. Há gente que precisa de nós, se temos tempo e temos capacidade…

Tenho algumas dúvidas, mas convenceram-me a aceitar este lugar, o senhor D. Virgílio (Antunes, bispo de Coimbra), convidou-me para o assumir e cá estou, conjuntamente com outros, é uma equipa enorme. A Cáritas de Coimbra tem mais de 1000 pessoas a trabalhar para ela, diretamente, mais os voluntários todos, tem 140 serviços diferentes de assistência, de vários tipos – creches, ATL, lares, clínicas – e um orçamento de 20 milhões de euros. É a maior Cáritas Diocesana do país e, portanto, isso vai dar algum trabalho, mas obviamente não se faz sozinho. Ela está estruturada, a funcionar bem, espero que consiga levar o barco a bom porto.

 

É um desafio muito diferente daqueles que teve até agora, mas teve esse convite do bispo de Coimbra…

Curiosamente, o senhor bispo disse que era uma coisa a que eu já estava habituado, porque geria uma equipa e sempre fui conhecido, até, para além da parte médico-cirúrgica, propriamente, pelo meu estilo de gestão de unidades de saúde. Disse-me que seria uma experiência interessante, que não seria totalmente nova para mim. Mas é realmente nova, é chefiar uma equipa maior.

Vamos até alterar o modelo de gestão, porque até aqui havia um presidente que era a cabeça, o tronco e os membros da Cáritas e vamos passar a ter uma equipa que inclui um gestor, profissional, que será coordenador-geral, fazendo a comunicação entre as bases, os serviços na periferia, a prestação de cuidados sociais, e a Direção, que tem obviamente que definir os objetivos e os caminhos que a instituição tem de seguir.

 

Na sua tomada de posse, chamou a atenção para a necessidade de respostas sociais atempadas para quem está a sofrer o impacto desta pandemia. Será uma prioridade, essa resposta pronta e atempada?

Sim, claro. Este mandato estende-se por quatro anos e espero bem que a pandemia não se prolongue, que daqui a um ano, pelo menos – ainda que haja alguns casos -, estejamos a conviver razoavelmente com a pandemia. Mesmo depois de passar, é evidente que, pelo desastre económico que a pandemia constituiu, há de haver muita gente com dificuldades que não sentia antes. Os desempregados, as despesas que se fizeram e que as pessoas têm de pagar, mesmo que voltem ao seu emprego; desestruturação, até, de personalidades, de famílias. Vai haver necessidades, durante algum tempo, ligadas à pandemia.

Mesmo antes da pandemia, a Cáritas de Coimbra e outras instituições idênticas já tinham um campo muito alargado, porque o nosso país é um país economicamente e até socialmente débil. O Estado não pode acorrer a tudo e, se calhar, até nem é conveniente que o faça – sou um pouco liberal, nesse sentido.

Faço a comparação com o Serviço Nacional de Saúde: enquanto continuo a pensar que o pilar da prestação de cuidados tem de ser o Serviço Nacional de Saúde, aqui, talvez, o pilar da prestação de cuidados sociais devem ser as Instituições Particulares de Solidariedade Social.

 

A Cáritas de Coimbra tem vários projetos inovadores que usam tecnologias para acompanhar pessoas idosas. Estes projetos que promovem a proximidade são fundamentais nesta altura?

São. Nós temos um departamento muito ativo, de inovação e comunicação, com muitos projetos, em cooperação europeia. Quando dei uma volta pela instituição, estive junto do robô que acompanha os idoso, que os cumprimenta e sorri, fala com eles. São projetos inovadores, em que a Cáritas de Coimbra, a nível nacional, neste tipo de atividade, se tem salientado acima de outras instituições idênticas. Temos ali um departamento, que ainda não conheço bem, mas que parece estar a trabalhar muito bem. Quem tiver curiosidade e quiser ir à página na internet, encontra lá uma lista uma lista enorme de projetos interinstitucionais, europeus, que impressiona, realmente.

 

Isso também o deixa entusiasmado?

Sim. O futuro vai ser destas tecnologias, podemos avançar ainda mais, com modos diferentes de melhorar a vida das pessoas, utilizados pela Cáritas e que possa, eventualmente, ser adaptados por outras instituições com as mesmas finalidades.

 

Não aceitaria um cargo destes, imagino. não sendo crente. A fé tem importância, na sua vida?

A fé tem importância, mas isso não quer dizer que, se não fosse crente, não o tomaria, também. Não podemos diabolizar os não-crentes, porque muitos se comportam melhor do que alguns crentes.

Evidentemente, a fé teve um impacto muito grande. Desde logo, quem me convidou, o senhor D. Virgílio Antunes, bispo de Coimbra, conhece-me pelas atividades que eu tenho desempenhado na paróquia. Estando esta instituição tão ligada à Igreja, faz todo o sentido que esteja à frente dela alguém que não venha dizer “eu até sou ateu, mas estou aqui para prestar este serviço cívico”.

A pessoa que vai assumir este papel de administrador executivo, que vai estar mais no campo, estabelecendo esta ligação entre as diversas atividades – que são muito extensas, cobrindo todo o distrito de Coimbra e um bocadinho mais além, já não é hoje que um só homem possa fazer –, o doutor Carlos João, é uma pessoa talvez ainda mais ligada às atividades da Igreja, mais intensamente. Espero que os dois possamos cumprir a tarefa.

Esta obra, não sei se pode crescer muito mais. Tal como um corpo, que a partir de certa altura não pode crescer mais, precisa de ser fortalecido.

 

O seu método de trabalho foi inspirado no modelo que conheceu na África do Sul, onde estudou e começou a exercer. Mas o ser católico também tem influência na forma como exerce medicina, como se relaciona com os doentes?

Tem sempre. Acho que nós, católicos, temos essa obrigação, é um dever, a fé que nos move, também.

É curioso que me pergunte isso, porque me lembro que no concurso que fiz para professor, o equivalente a professor catedrático, na África do Sul – onde percorri a carreira toda, tanto hospitalar como académica -, tinha 21 pessoas como júri. Incluía pessoas como o diretor do principal jornal, o administrador de pessoal da faculdade e o capelão do Hospital. A pergunta que ele me fez foi: o senhor diz aqui que é católico e está num país que é eminentemente protestante. Acha que isso vai interferir na sua atividade? Eu acho que não…

Eu procuro nem sequer perguntar aos doentes se são desta religião ou não, os protestantes, os anglicanos também são cristãos, no fim de contas. Penso que católicos com formação, naturalmente, temos mais predisposição para isso. Mas admito que qualquer pessoas, não-crente, não-católica, pudesse fazer a mesma coisa.

É evidente que a Cáritas de Coimbra é regida por princípios próprios, há um elemento do clero, o capelão, que vai verificar se a instituição também obedece, além de tudo o resto, aos princípios que norteiam a doutrina da Igreja Católica na condução do “negócio” que é esta prestação de cuidados sociais a quem necessita, muitos deles não serão crentes. Não lhes vamos prestar os cuidados de maneira diferente.

 

Esta entrevista é divulgada num Domingo em que a Igreja assinala o IV Dia Mundial dos Pobres, instituído pelo Papa para que haja uma tomada de consciência da necessidade de um compromisso social das comunidades católicas. Nesta nova missão, como presidente da Cáritas de Coimbra, que inspiração é que tira da figura do Papa Francisco nesta sua relação com os mais necessitados e a atitude de misericórdia?

É preciso ter em conta que o Papa, numa recente encíclica, referiu a caridade como sendo um dos três princípios importantes da atividade da Igreja. Normalmente as pessoas veem a atividade da Igreja como sendo celebrar umas Missas, uns casamentos e uns batizados de vez em quando, e o Papa Francisco tem realmente despertado em todos nós – os católicos, os cristãos em geral e até os não crentes – um respeito muito grande pela maneira como tem feito uma abordagem muito menos clássica, muito menos rígida.

O Papa tem realmente impressionado o mundo, e um dia quando ele se for – todos nos iremos – vai certamente ser lembrado por muito tempo, pelo resto da história da humanidade, não só pelos católicos, mas também por todos os cristãos. Tem sido uma influência em todos nós.

 

 

Para quem está no campo da solidariedade, ou até olhando para outras áreas que conhece bem, a relação por exemplo do Papa com os doentes, o facto de os chamar para a linha da frente, de lhes querer dar atenção, ir ao encontro deles… É pelo testemunho que ele marca a diferença?

É sempre pelo testemunho que se marca a diferença, e o Papa tem testemunhado e marcado essa diferença. Infelizmente aquilo que acontece é que as pessoas que têm muitas necessidades e têm de recorrer a estas instituições, pela maneira como a vida os tratou – ou maltratou – às vezes tendem a perder a fé, mesmo aqueles que a tinham. Não sei se o exemplo e a presença das equipas e das pessoas que assumem estas atividades de caridade os influencia nesse aspeto, às vezes não é fácil, mas é um caminho que também temos de fazer, eventualmente até o capelão da Cáritas poderá ajudar-nos a pôr também nas nossas atividades esse fator, para que se possa também ajudar as pessoas a restaurar e a recuperar a fé que possam ter perdido devido às dificuldades que a vida lhes trouxe.

 

Voltando ao facto de ser um médico bastante conhecedor do Serviço Nacional de Saúde – embora neste momento esteja no privado, a exercer e operar em Viseu em Coimbra – como é que avalia a forma como o SNS tem estado a responder a esta pandemia? Arriscamos nesta altura entrar em rutura ao nível dos internamentos e dos cuidados intensivos, era possível ter planeado isto de outra forma, ter uma resposta mais adequada a esta segunda vaga?

Certamente seria sempre possível fazer melhor. Eu, como sabe, durante a minha vida, nestes 30 ou 32 anos em Portugal, fui muitas vezes muito crítico da maneira como o SNS funciona, como está estruturado. Penso que o problema é o da deficiência de estruturação que tem, e deficiência de gestão, mas as coisas neste momento são completamente diferentes. Fala-se muito da falta de camas, da falta de ventiladores, na falta de médicos, na falta de enfermeiros, como se nós pudéssemos ter – nenhum país tem, e muito menos um país economicamente frágil como Portugal -, tudo o que fosse preciso, à espera que um dia venha um novo terramoto de Lisboa e possamos dar resposta a tudo aquilo que uma qualquer desgraça acarreta…. e isto verdadeiramente para a humanidade é uma desgraça.

Havia tantos desconhecidos nesta doença, nesta pandemia, na maneira como evolui, que por muito bem preparados que estivéssemos havia sempre qualquer coisa que não podia correr bem. E aqui, o que não correu bem logo no início foi que não foi possível calcular – não sei se era possível, não sou especialista disso – que não precisávamos naquela altura de tantos ventiladores, que depois não funcionavam…

Agora nesta segunda vaga temos um problema grave, é que percebemos que a primeira vaga quase destruiu a economia do país, e quem tem de tomar decisões deve ser muito difícil. Eu, sendo muito crítico até dos atuais responsáveis noutras alturas, agora digo que tem de se ter algum cuidado. Porque resolver esta coisa é muito sensível, saber se se proíbe as pessoas de circular ao sábado e ao Domingo depois das 13h00 ou se a partir das 15h00, porque isso já permitia aos restaurantes venderem almoços àquela hora… é muito difícil tomar uma decisão. E não sei se no fim vamos conseguir dizer ‘esta maneira foi melhor do que aquela’. É tudo muito difícil.

 

Foto: Correio de Coimbra

A falta de assistência aos doentes não Covid, que já era notória na primeira fase da pandemia, é ainda mais acentuada agora. Não corremos o risco disto se transformar noutra pandemia?

Até parece um pouco caricato que ao fim de uma semana da pandemia, na primeira vaga, que afinal foi muito ligeira, tínhamos os hospitais completamente parados, o que deu como resultado aquele número de mortos a mais do que o habitual na média dos últimos cinco anos. Tem provavelmente que ver com o facto de que houve muitas outras doenças – tão mortíferas, ou talvez até mais mortíferas do que a pandemia – e que não foram cuidadas. E aqui há uma coisa em que tenho de ser crítico, é nesta relutância, que não consigo compreender, em obter o apoio dos privados e até do setor social ligado à prestação de cuidados de saúde. Dizem ‘ah, mas eles sempre se recusaram a ter doentes Covid’. Pois, porque as estruturas privadas não foram preparadas para ter, mas podiam fazer o tratamento das outras doenças que não podem ser tratadas nos hospitais, quando reservarem camas para o Covid.

Parece que agora há uma ligeira mudança na política que estava a ser seguida, mas temo que seja um pouco tardio, porque as medidas que tomarmos agora só vão ter efeito daqui a um mês ou dois. Eu espero que (nessa altura) já estejamos outra vez na fase descendente da pandemia, e quando chegar a vacina que o assunto se resolva. Mas, não se vai resolver imediatamente, sobretudo os problemas sociais, que vão ficar como sequelas, como cicatrizes, desta crise enorme. Isso vai demorar anos, não é…

 

Uma das sequelas desta pandemia foram as muitas perdas. Como é que lida com a morte? Imagino que não é fácil perder um doente…

Não é. Sabe que eu operei 35 mil doentes eu próprio, e estive envolvido, como diretor de serviço, há de ir para a meia centena de milhar. Mesmo que a mortalidade seja um por cento – e é uma das mais baixas que pode encontrar, mesmo em centros de grande envergadura, no estrangeiro -, um por cento de 50 mil ainda são qualquer coisa como 500 mortos.

Quando acontecia eu fazia questão de estar lá ao pé. Gostaria de fugir, mas sabia que era a minha obrigação, até ao último minuto podia esperar fazer mais qualquer coisa, e é muito difícil… É muito difícil para qualquer pessoa, independentemente da fé, se acredita na vida que há de vir, se acredita em Deus, ou não acredita em Deus, mesmo tendo em conta que todos havemos de morrer, uns mais cedo do que outros, e alguns destes que eu disse também já estavam praticamente no fim de vida. Mas, também assisti à morte de crianças que ainda não tinham começado a sua vida, e é muito difícil, porque nos altera psicologicamente muito. Naturalmente tínhamos de ultrapassar isso, e eu dizia sempre ‘temos de nos lembrar que não somos deuses, e que não temos cura para todos’. Jesus Cristo também assistiu à morte de alguns à volta dele, e não achou que devia intervir sempre, não é?

Aquilo que procurei sempre foi que aquele momento fosse um momento de silêncio, de  sagrado, para aqueles que achavam que podiam fazer uma oração, eu próprio fazia uma oração, mesmo que fosse apenas interiormente. Mas, é muito difícil psicologicamente para todos nós. Lidar com a morte não é fácil.

 

Há aqui outra questão, que é a da eutanásia. Temos o parlamento a legislar sobre este tema…

E temo o que aí vem…

 

Qual é a sua visão?

A minha posição é que sou totalmente contra! Contra a eutanásia, contra terminar deliberadamente com a vida ou ajudar alguém a terminar com a sua vida, sou contra.

Eu costumo dizer que se formos numa ponte – pode ser uma ponte pequenina, aqui em Coimbra, ou a ponte sobre o Tejo, que tem aquela altitude – e virmos alguém a tentar, ou a fazer menção de se atirar para baixo, para se suicidar, temos obrigação de fazer exatamente o contrário, de tentar convencer aquela pessoa que há sempre uma solução para todos os problemas e encaminhá-lo depois. Portanto, para mim é contra o meu princípio.

E como a Ordem dos Médicos até tem feito saber, e bem – e alguns não são religiosos, não são crentes – nós, médicos, fomos criados e ensinados a fazer tudo para preservar e melhorar a vida das pessoas, e não ao contrário. Eu nunca desliguei uma máquina, porque a natureza – e costumo dizer apenas a natureza – acaba sempre por seguir o seu caminho, se quiser, os desígnios de Deus acabam sempre por prosseguir.

A um doente que está mesmo terminal, que tem muitas dores, dar-lhe uma morfina que o põe a dormir e que provavelmente até vai abreviar o momento da sua morte, isso é uma coisa diferente. Porque frequentemente se faz muita confusão entre eutanásia e estes métodos que se destinam a suavizar e a tirar o sofrimento no momento da morte, que é, considero, uma obrigação, ainda que por vezes isso possa abreviar a morte. Nós não queremos dar ou abreviar a morte ao doente, estamos a torná-lo confortável para que possa morrer em paz, para evitar que o último momento possa ser até de descrédito, pensar ‘meu Deus, porque é que me deixas, porque me abandonaste?’.

 

Politicamente este é o momento correto para se discutir a eutanásia?

Eu acho que não, é incorreto, porque estamos preocupados em salvar vidas. Não há nenhum momento politicamente correto para isso, mas este é ainda pior. Nós temos muito mais em que pensar, mesmo os parlamentares, que estão lá um pouco isolados e talvez um bocadinho imunes à pandemia, acho que não é bom… mas, sabe, acho que a política não tem momentos corretos. Às vezes aproveitar os momentos politicamente incorretos serve a política para alguns fins. Muitos políticos querem ser politicamente incorretos para, exatamente, servir os seus fins.

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Agência ECCLESIA

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