Octávio Carmo, jornalista
De Lampedusa a Assis, passando por Paris e Abu Dhabi. ‘Fratelli Tutti’ deve ser a encíclica menos romana de que tenho memória, em quase 20 anos de profissão e outros mais de estudo, nesta área.
De facto, espero que o novo documento do Papa Francisco seja uma síntese do seu pontificado virado para o mundo. Tal como a Laudato Si’, em 2015, procurou responder com o conceito de ecologia integral aos desafios das alterações climáticas, em pleno debate que levaria ao Acordo de Paris, a encíclica sobre a fraternidade e a amizade social que vai ser assinada este sábado, junto ao túmulo de São Francisco de Assis quer propor valores fundamentais um mundo marcado pela pandemia. E oferecer uma resposta à questão inicial de todo o edifício ético ocidental, vinda do próprio Deus: Onde está o teu irmão?
Como vimos com a trágica crise dos últimos anos, acima da dignidade humana têm estado valores económicos, jogos políticos e interesses partidários. Mas a vida nunca é relativa.
A este respeito, recordo as perguntas que surgem no primeiro livro da Bíblia, o Génesis, que me parecem fundadoras da ética ocidental: “Onde está o teu irmão?” e “Que [lhe] fizeste?”.
O “interrogatório” de Deus a Caim, após a morte do seu irmão Abel, condensa o apelo fundamental que viria a ser sintetizado no ensinamento de Jesus Cristo: amar o próximo como a si mesmo. “Não sei” ou “nada” não são respostas aceitáveis e enquadram-se na “globalização da indiferença” que o Papa Francisco tem denunciado tantas vezes.
Outro momento central do pontificado parece evidente na escolha do tema: a fraternidade humana. Na histórica viagem a Abu Dhabi, a 4 de fevereiro de 2019, onde assinou com o imã de Al-Azhar uma declaração que condena a violência em nome da religião, o Papa deixou uma frase que define a sua visão do diálogo entre religiões e destas com a sociedade: “Hoje também nós, em nome de Deus, para salvaguardar a paz, precisamos de entrar juntos, como uma única família, numa arca que possa sulcar os mares tempestuosos do mundo: a Arca de Fraternidade”.
A pandemia devolveu-nos a perceção de limite. Não estávamos prontos para isso, no frenesim de 2020. Temos diante de nós o desafio de retirar consequências éticas e antropológicas da passagem por esta situação de vulnerabilidade: o que somos, quando chega o fim?
A transformação dos mais vulneráveis em sujeitos dispensáveis é uma das marcas mais negativas (e temo que seja permanente) deste tempo. Caímos na globalização da indiferença, que o Papa denunciava na sua primeira viagem, carregada de simbolismo, em 2013, à ilha de Lampedusa.
Habituamo-nos ao sofrimento do outro. Uma crítica terrível, de Francisco, que nos convida agora a redescobrir a amizade social, um conceito que une sujeitos e instituições na construção de uma nova sociedade, marcada pela fraternidade. Fratelli Tutti, como pedia São Francisco de Assis, irmão de todos.