Homilia na celebração de Sexta-Feira Santa do Bispo do Funchal

Foto Agência ECCLESIA / MC

“Os soldados teceram uma coroa de espinhos, colocaram-na na cabeça e envolveram Jesus num manto de púrpura” (Jo 19,2).

A coroa de espinhos que os soldados romanos teceram e colocaram na cabeça de Jesus tem assumido, nos nossos dias, uma concretização muito clara, neste vírus em forma de coroa, que tem espalhado sofrimento e morte pelo mundo inteiro.

Muitos são aqueles que, por isso mesmo, se interrogam: como pode existir um Deus bom que parece ficar silencioso diante do sofrimento de tantos? A interrogação é justa e cheia de sentido, e é mesmo partilhada pela própria Sagrada Escritura, em muitos lugares, sobretudo no livro de Job.

Na interrogação, uma verificação se nos impõe: esquecer Deus em nada ajuda a diminuir o sofrimento e a dor. Que Deus exista ou que O recusemos, o sofrimento existe, e bem grande.

Mas uma coisa é certa: não nos basta confiar simplesmente no destino ou nas forças adversas e cegas da natureza. Seria o mesmo que desesperarmos da possibilidade de uma salvação ou de uma justiça acima do sofrimento e do mal. Porque sem Deus, não temos outra solução que não a de nos rendermos ao sofrimento e ao mal.

Que caminho de resposta podemos nós cristãos indicar — para nós e para todos — que nos possibilite uma pequena luz que seja para o drama humano, para esta nossa vida, cheia de alegrias mas também vivida no “vale de lágrimas” do sofrimento — seja ele causado por motivos naturais ou pelo culpado comportamento humano?

Em vez de nos interrogarmos acerca do mal em geral (“porque é que Deus tolera o mal no mundo?”), talvez a questão apareça mais clara se nos interrogarmos: se eu penso e faço o mal, porque é que Deus ainda me tolera?

Somos, como afirma um pensador contemporâneo (J. Lennox, Where is God in a Coronavirus World?), semelhantes a uma catedral em ruínas: bela e elegante, mas com as cicatrizes de uma catástrofe. O coronavírus apenas mostrou com mais clareza que somos frágeis e vulneráveis.

Deus fala-nos de muitos modos. Fala na nossa consciência; fala nos acontecimentos do mundo; fala nas nossas alegrias e conquistas; e fala igualmente nas nossas derrotas.

Falar-nos-á também nesta pandemia e na dor que ela provoca? Como quer que seja, este vírus chama-nos a atenção para quem somos: convida-nos a acordar para o facto de não sermos o Criador e de nem tudo se encontrar à nossa disposição e sob o nosso domínio. Convida-nos a recordar que somos frágeis e mortais.

Mas existirá um Deus, a quem possamos entregar a nossa vida? Olhando para o Crucificado, eis que O vemos preso à cruz, suportando o sofrimento e a dor, partilhando o destino do “vale de lágrimas” da humanidade e, ao mesmo tempo, todo envolvido numa entrega confiante e sem limites nas mãos do Pai.

É este mesmo Crucificado, morto na cruz, que apareceu vivo e ressuscitado na manhã de Páscoa. Ele não resolveu o escândalo do sofrimento através de um raciocínio brilhante; Ele partilhou o sofrimento da humanidade; viveu-o no amor até ao fim. E venceu.

Deu-nos, desse modo, a esperança certa de que o mal e a morte não têm a última palavra quanto ao destino do ser humano e do mundo. Mostrou-nos que a justiça não é uma ilusão e que a sua procura não é inútil. “O cristão não é alguém que tenha resolvido o problema do sofrimento, mas alguém que ama e tem confiança no Deus que sofreu por ele” (J. Lennox).

Talvez o coronavírus nos convide a olhar para o Crucificado e para a coroa que Ele ostenta; a confiar nele e na vida que Ele nos oferece. Talvez nos convide a olhar para o irmão que sofre, mesmo (e sobretudo) para aquele que sofre de outra doença e de outro sofrimento que não o causado por esta pandemia. E convida-nos sempre a olhar para a vida eterna, para lá da morte.

Se a coroa do vírus nos parece derrotar, saibamos que uma outra coroa — aquela que o próprio Deus sofreu na cruz e que continua a ostentar diante de nós — uma outra coroa é a nossa esperança. Nela podemos confiar. Ela é caminho de vida. De vida eterna.

D. Nuno Brás, Bispo do Funchal

Catedral do Funchal, 10 de abril de 2020

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