«Todas as políticas que defendam a dignidade das pessoas e das famílias terão o nosso apoio» – presidente da ACEGE

João Pedro Tavares, presidente da ACEGE – Associação Cristã de Empresários e Gestores, fala com a ECCLESIA e a Renascença sobre o que considera que deveriam ser as prioridades do Orçamento, o aumento do salário mínimo, a necessidade de uma cultura de pagamento pontual e a conciliação família-trabalho, projetando o encontro de jovens economistas que o Papa convocou para março deste ano, em Assis.

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Fotos: Joana Bourgard (Renascença)

 

Para os empresários e gestores católicos o que é que seria importante estar no Orçamento de Estado?

Nós achamos que este é um orçamento de continuidade, de gestão corrente, em que o governo, como na legislatura anterior, tem compromissos assumidos com múltiplos partidos para conseguir o equilíbrio parlamentar que lhe possibilita a aprovação do orçamento. O que consideramos é que o país para crescer a outros níveis – e o presidente da república tem-no referido – precisa de uma reconfiguração, e essa reconfiguração não existe no orçamento. Mas há aspetos positivos a destacar.

 

Quais?

A economia portuguesa cresceu acima da média europeia, porque algumas grandes economias não cresceram aos mesmos níveis, ainda que comparado com os ‘tigres’ europeus – Eslovénia, Eslováquia, Irlanda, Malta – cresceu abaixo. Portanto, Portugal converge com a Europa, mas diverge, em termos de crescimento económico, no seu campeonato, não fica classificado nos primeiros lugares. E isto, numa situação económica absolutamente única e excecional, porque estamos a viver climas de incerteza grandes, absolutamente imprevistos, como a guerra Irão-Iraque-Estados Unidos, a incerteza sobre o preço do petróleo, que impacta muito na economia portuguesa.

Portugal é obviamente um país que tem vindo a consolidar-se e a ser um exemplo positivo, há um equilíbrio de contas públicas, por um lado, o excedente orçamental é uma boa notícia, mas por outro lado é conseguido à custa de um agravamento da carga fiscal como um todo.

 

A carga fiscal é algo que as pessoas sentem na pele. A opção do governo tem sido aumentar impostos indiretos, com baixas ligeiras no IRS, mas para as empresas aumentar a procura e o poder de compra chega, ou seria útil uma revisão do IRC? O que é que é verdadeiramente necessário para que a economia possa crescer mais?

É verdadeiramente necessário que as empresas não estejam estranguladas por esta carga fiscal. Aliás, esta carga fiscal acaba por tirar alguma competitividade à economia e às próprias empresas, tira-lhes alguma atratividade. Um país como a Irlanda tem uma carga fiscal muita atrativa, e compete com Portugal. Portanto, do lado das empresas retira-lhes capacidade de investimento, do lado das famílias retira-lhes capacidade de poupança e até de crescimento no consumo. Enfim, há dados positivos, mas há aspetos que carecem de uma mudança significativa.

 

Concorda com a aposta que tem sido feita nos chamados impostos “bonzinhos”, como os que incidem sobre os produtos alimentares prejudiciais à saúde, através do IVA?

Eu entendo esta linha, como entendo o imposto especial sobre plásticos, que foi aplicado há uns anos. Entendo, mas é sempre uma recolha de impostos.

Mais importante do que recolher estes impostos seria saber de que forma é que eles estão a ser aplicados. Há um conjunto de impostos na sociedade que deviam ter aplicações diretas, e devia ser absolutamente transparente a forma como os governos – este e os anteriores – o fazem.

Quando justificam que sobre os plásticos este imposto vai ser aplicado por uma economia mais verde, era importante perceber como, porque ao fazer esta coleta de impostos indiretos – mas diretos na forma como são direcionados – as pessoas deviam perceber de que forma é que eles são aplicados para a reconfiguração de economia, para a promoção de um país mais verde, para uma maior sustentabilidade. São desafios que deviam ser considerados.

 

Outra questão que interfere diretamente com a vida de quem é empresário e gestor, e com as decisões que tem de tomar, é o aumento do salário mínimo. Como é que vê esta opção, que muitas vezes tem sido quase uma bandeira política?

Sobre esse tema aquilo que temos a dizer é que todas as políticas que defendam a dignidade das pessoas e das famílias terão o nosso apoio. Se o aumento do salário mínimo visa defender a família e as pessoas, se vai conduzir a mais empregos, com vínculos contratuais mais fortes, para uma maior sustentabilidade, a todos os níveis, tem todo o nosso apoio. Um aumento, obviamente, para valores razoáveis. É muito fácil, sem compromissos, fazer pedidos de salários mínimos de 850 euros…

 

O mais recente aumento foi razoável e foi o possível?

Sim, foi razoável, e parece-me o possível, recebeu uma aceitação generalizada.

O salário mínimo duplicou nos últimos 20 anos, teve um aumento significativo: estava nos 300 € em 2000, e está nos 653 euros agora.

 

Mas – e voltando ao início da conversa – uma economia para crescer, para ser verdadeiramente competitiva, interessante e apelativa, não pode estar baseada em salários mínimos.

Repare o seguinte: quando digo que a economia portuguesa precisa de uma reconfiguração, é a segunda economia da Europa onde o salário médio e o salário mínimo são muito parecidos.

Quando um em cada cinco portugueses recebe salário mínimo, e 1,2 milhões de famílias recebe menos de 1000 euros por mês para se sustentar, o desafio não é o salário mínimo, de alguma maneira, porque esse não está substancialmente diferente do salário mínimo europeu. O que acontece é que na Europa em geral o salário mínimo é aplicado para determinadas franjas da sociedade, e aqui em Portugal tem uma aplicação generalizada. Portanto, tem de haver uma aposta de longo prazo na educação, tem de haver uma reconfiguração do tecido económico. As pessoas têm que sair da situação de salário mínimo.

 

A verdade é que mesmo os portugueses mais qualificados recebem o salário mínimo, como os jovens.

Recebem bastante menos. Vimos muitas empresas deslocalizarem os seus back office para Portugal, porque Portugal é muito atrativo a esse nível, mas com esta subida do salário mínimo já vieram avisar que provavelmente têm de repensar as suas estratégias. Mas, são empresas com mais de 10 mil pessoas. Portanto, há aqui uma retenção de capital muito importante, mas não é esta que queremos. Nós gostaríamos que a mão de obra fosse valorizada de outra forma.

 

Como?

Repare que a introdução destas pessoas com salários mínimos também tem um impacto ao nível de produtividade, que tem múltiplas variáveis, nomeadamente aquilo que a pessoa de facto produz, o número de horas que trabalha – e em Portugal é significativamente mais elevado que a média europeia, esse é um aspeto. Mas, a produtividade em Portugal é mais baixa do que na Europa, e aqui há um desafio muito importante. Se compararmos com os países do norte da Europa, o valor médio produzido em Portugal é 30% face à Europa, sendo que no norte da Europa, como trabalham menos horas, não chegam a equiparar, mas a diferença não é de um para três.

Temos de aumentar a produtividade, dar condições para que as empresas invistam mais, para que o capital como um todo – que é o investimento nas empresas, os seus ativos e, retirando as depreciações, a produtividade – cresça, e para que a economia dessa maneira se renove. Este é que é o grande desafio.

Temos de reconfigurar a economia portuguesa significativamente, e uma pergunta que deixo é: quem pensa a longo prazo em Portugal? E outra: será que nós somos tudo aquilo que poderíamos ser, ou não? O que é que poderíamos ser de diferentes?

A minha visão de um Estado que arrecada em tudo, e que acaba por ser um pouco opressivo, porque está omnipresente e tem uma carga fiscal absolutamente superior a outros países europeus, é uma má notícia.

 

Um dos problemas que tem preocupado a ACEGE nos últimos anos é o dos pagamentos com atraso, seja por parte do Estado, seja por parte das empresas. O que é que vos levou a tomarem de novo posição sobre o assunto em dezembro? A situação piorou? Há mais incumprimentos a este nível?

Houve mudanças a este nível. A iniciativa ‘Compromisso Pagamento Pontual’ não é exclusivamente da ACEGE, é também da CIP e da APIFARMA e do IAPME…


A que aderiraram várias empresas…

Mais de mil e 200 empresas, incluindo organismos públicos, instituições, câmaras. E a situação mudou de múltiplas maneiras: por um lado, houve uma ligeira melhoria nos prazos de pagamento, que tem de ser assinalada, uma melhoria do lado das empresas, sendo que as empresas que menos cumprem são as maiores; mas, por outro houve um agravamento significativo do lado do Estado, da administração central, porque na administração local as câmaras, a partir do momento em que também fazem a sua coleta de impostos locais, hoje em dia têm prazos de pagamento muito atrativos e são cumpridoras.

As câmaras estão com níveis de dívida muito mais baixos, prazos de pagamento de 19 dias de atraso, creio eu, algumas pagam sem atraso. Mas, no Estado Central o nível de dívida subiu significativamente, como no setor da saúde.

 

Isto afeta bastante a capacidade de investimento das empresas que estão à espera de dinheiro que lhes é devido, durante largos meses. Um dos objetivos deste ‘Compromisso Pagamento Pontual’ é propor uma mudança de cultura, por mais abstrato que isso possa parecer. Que as pessoas assumam que não podem estar durante meses à espera para pagar pelo serviço que lhes foi prestado…

Nós fizemos um estudo que comprovou que uma pioria de 12 dias, no prazo de pagamentos, conduziria a uma perda de 17 mil postos de trabalho. Portanto, há que dizer que os empresários e gestores não são apenas responsáveis pelas suas empresas, mas por toda uma cadeia de valor. Empresários e gestores, líderes da própria Administração Pública, que – ao não cumprir – leva empresas à falência e à perda de postos de trabalho, por aí em diante.

O que nós comprovamos é que, se hoje a melhoria não é significativa face aos tempos da crise, isto é um tema cultural, de facto. E eu creio que aqui tem de haver uma mudança de cultura, de mentalidade, da parte… tem de haver um maior sentido ecológico. Isto economicamente falando, de toda a cadeia de valor, de não me sentir apenas responsável pela minha empresa, mas por todos os meus clientes, por todos os stakeholders, por todos os meus fornecedores, pelos acionistas, pela pegada social da empresa, pela maneira como os nossos colaboradores olham para nós – porque veem que somos uma entidade que paga a horas. Tenho de começar a pagar a horas aos meus colaboradores…

 

É também uma questão ética?

Claro que sim, é uma questão ética. Muitos empresários e gestores com quem falo, dizem: é obviamente problema de tesouraria. E haverá. Perante um problema de tesouraria, o que é que tenho de fazer? Devo priorizar o tipo de decisões que vou ter. Situações em que vou ter de despedir pessoas, por exemplo, reduzir a carga laboral, tenho de fazer ajustes… Mas há aqui também um tema de caráter e de ética, ou de falta de ética. Sem dúvida, tem de ser dito desta forma, que é pouco simpático, mas tem de ser assumido: este é um problema, este é um dos atrasos da Economia portuguesa face à Europa. Os nossos prazos de pagamento, os atrasos, são o dobro da média europeia, o dobro. Devíamos envergonhar-nos com este dado.

 

Outra questão que tem estado nas prioridades da Associação é a conciliação entre trabalho e família: apresentaram estudos, têm procurado sensibilizar as empresas e certificá-las como familiarmente responsáveis. Como é que os empresários e gestores cristãos abordam esta dinâmica?

Aqui também tem de haver uma mudança de mentalidade. Há vários desafios. Fizemos um estudo, também com a CIP e a Universidade Nova, elencando um conjunto de desafios, desde logo, mais uma vez, a mudança de mentalidades, de cultura. De cultura de liderança e na forma como se olha para a família, que é um parente menor – e aqui surge uma penalização significativa da mulher, do seu papel na família e na empresa.

Temos inúmeras histórias de homens que não aceitam que as mulheres ganhem o mesmo, que trabalhem no mesmo posto de trabalho; e mulheres que aceitam que existam estas diferenças, que não podem, de manheira nenhuma, existir.

A mudança tem de ser cultural e creio que as novas gerações vão introduzir renovações significativas na forma de pensar. Ou seja, há um paradoxo entre aquilo que se propõe fazer e aquilo que é a mentalidade instituída. As novas gerações elegeram a importância da harmonia família-trabalho – e pomos família antes do trabalho – como o segundo tema mais relevante das suas escolhas profissionais. Eles relevam este aspeto.

 

Como é que chegaram a essa conclusão?

Por inquéritos feitos aos jovens. Eles querem a defesa da dignidade no trabalho, o desenvolvimento de oportunidades de crescimento, pessoal e profissional, e o equilíbrio família-trabalho é logo considerado como o segundo aspeto mais relevante.

Portanto, aqui há um desafio muito grande, na cultura, relativamente ao papel da família, ao papel da mulher. Outro estudo, feito pela Fundação Mais Família – nós temos uma certificação, que já chegou a 13 empresas, e queremos duplicar esse número -, verificou que há uma perda de talento, de 20%… Todas as universidades dizem que o talento vai ser o fator diferenciador no futuro, não vai ser a tecnologia. 70% da perda deste talento são pessoas que não querem ou não podem assumir novas responsabilidades.

 

Portanto, uma perda de talento provocada diretamente por esta falta de conciliação?

Falta de conciliação. E 70% destas pessoas são mulheres, que não querem ou não podem assumir novas responsabilidades devido a uma sobrecarga familiar com descendentes ou ascendentes. Portanto, há aqui um desafio grande relativamente ao papel da mulher e ao tipo de oportunidades, à igualdade.

 

Isto também se relaciona com a disponibilidade das famílias para terem filhos. Vivendo Portugal um inverno demográfico, isso aumenta responsabilidade dos empresários e gestores cristãos na forma como devem olhar para este problema?

Essa é uma das pobrezas da nossa sociedade, o inverno demográfico, o número de divórcios que existe – com uma das taxas mais altas na Europa -, burnouts, esgotamentos, stress profissional. Este tema não tem a ver apenas e só com o número de horas que as pessoas trabalham mas também com as horas que gastam para se deslocar para o trabalho e regressar para as suas casas. Como ganham pouco, as pessoas têm necessidade de compor os seus vencimentos, fazendo horas extraordinárias noutros sítios. Noutro dia, um empresário dizia-me que estava chocado, porque percebeu que tinha colaboradores seus que saíam da empresa e iam apanhar cartões pelas ruas. Portanto, existem situações de pobreza debaixo do nosso nariz, temos de cuidar delas.

Na sociedade, o desafio é enorme e tem um impacto muito significativo.

 

A ACEGE está associada ao encontro ‘A Economia de Francisco’, convocado pelo Papa para março, em Assis… É um encontro de uma nova geração de economistas, por uma Economia mais justa, inclusiva, sustentável. Espera que marque uma mudança na forma como se encara a Economia, que deve servir o bem comum?

Sim, sem dúvida. Essa é uma das responsabilidades de um líder cristão empresarial: a promoção do bem comum, a defesa da dignidade da pessoa, ter uma cultura de solidariedade, de subsidiariedade e a defesa da casa comum, como um todo. Portanto, olhar para a empresa como uma comunidade, que cria e distribui valor, de forma justa; e olhar para as pessoas no centro da organização. A introdução da tecnologia vai trazer enormíssimos desafios no futuro. Portanto, esta cultura cristã que enunciei, a Doutrina Social da Igreja – eu gosto de referi-la como a Economia do bem comum, a Economia da partilha – é absolutamente crucial. É o modelo económico mais virtuoso que existe, porque promove uma sustentabilidade a prazo…

 

A Doutrina Social da Igreja desenvolveu-se sempre a par das grandes transformações económicas…

Exatamente, económicas e sociais. O que é que o Papa faz? Desafia os jovens em Assis, entre eles 50 de Portugal, para falar da Economia de Francisco – não do Papa, mas de São Francisco de Assis: como é que este santo, do século XII, quis mostrar ao seu pai, um comerciante de tapetes, mercantilista, liberal, capitalista – e não tem mal em sê-lo, em parte -, de que forma se podia romper com o sistema e recriar algo de absolutamente distinto, de opção pelos mais pobres, de erradicação da pobreza.

O que o Papa entende é que este modelo, como está, não vai lá, é preciso fazer uma rutura e recriar, de novo. E vai buscar aqueles em quem mais acredita para fazer esta transformação, que são os jovens, as novas gerações, muito generosas, muito disponíveis, muito atentas e com um critério de valores muito diferente.

 

Confia que as coisas mudarão?

O primeiro passo é despertar consciências e comprovar que há novos caminhos que são possíveis. O segundo passo é mobilizar os mais seniores, porque a riqueza intergeracional tem de existir. Este encontro não é feito contra ninguém, é feito precisamente para promover a inclusão, a diversidade, e o Papa quer chamar os jovens para que tenham uma voz ativa, no futuro.

Temos líderes muito enraizados nas suas formas de ver e de atuar; o que eu pedia é que estivessem abertos, disponíveis e que fossem humildades perante as propostas trazidas, que tenho a certeza de que vão ser transformadoras.

 

Esta iniciativa despertou interesse nos associados da ACEGE, nomeadamente dos mais jovens?

Sim, despertou enorme interesse. Nós estamos a fazer um curso com várias universidades de Economia e Gestão – creio que é a iniciativa que engloba mais universidades, em conjunto, nomeadamente a AESE, a Universidade Católica, a Universidade Nova. Despertou o interesse a disponibilidade dos jovens, que querem um mundo mais justo e mais inclusivo. Eles vão ter enormíssimos desafios, no mundo do trabalho, no mundo digital, no mundo da família, mas creio que vão ser uma lufada de ar fresco.

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Agência ECCLESIA

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