2008: Crise para a história

Membros do Grupo de Consultores da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais analisam o ano que termina e falam em fim de ciclo Uma crise histórica que mudou a forma como vemos o mundo. É assim que várias personalidades auscultadas pela ECCLESIA avaliam os acontecimentos de 2008, lembrando ainda factos e personalidades que ficam para a história. Francisco Sarsfield Cabral, director de informação da Renascença, diz que “este ano fica infelizmente na história por causa da grande crise financeira, que já está a resultar numa grave crise económica e que certamente continuará numa crise social preocupante”. O especialista admite que ninguém esperava esta crise, que “abalou a confiança das pessoas” e que os próprios dirigentes políticos estão “um pouco a tactear” perante o imprevisto, alterando os seus próprios planos perante o desenrolar dos acontecimentos. Do ponto de vista positivo, vê o aparecimento de um “líder forte”, Barack Obama, que “pode ajudar os norte-americanos e o mundo a ter um pouco mais de optimismo em relação ao futuro”. A recessão “inevitável” para 2009 face ao dinheiro que se “derreteu” na crise financeira pode “ajudar as pessoas a repensar muita coisa”, depois de “apostas loucas” que deram resultados lamentáveis. “A ética é muito importante, a começar no sistema financeiro, e as pessoas podem pensar um pouco naquilo que é ou não importante”, acrescenta. O perigo, contudo, é o de os países se fecharem em si próprios, porque “quem vai sofrer mais com a crise são os mais pobres, porque têm menos defesas”. Também a escultora Clara Meneres destaca a eleição de Barack Obama e a crise económica e financeira. Para a artista, “não é possível construir um mundo novo sem essa grande aceitação das diferenças das culturas e posturas”. Quanto à crise, diz que “o mundo, tal como o conhecemos desapareceu. Será uma boa oportunidade para fazer uma reflexão de fundo sobre a distribuição e produção de bens”, depois da “desregulação” do sistema capitalista. A consultora da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais diz que, mais do que injecções de dinheiro na banca, “o que me parece ser necessário é uma análise muito séria, moral e cristã, sobre o que é a produção e distribuição de bens pelas pessoas, qual o sistema que deve regular, e ver, da parte dos governos, a criação de um mundo novo”. O Cón. António Rego, director do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais da Igreja, vê em 2008 “um ano para a história”, em que todos levaram “um soco no estômago” em relação aos hábitos de finanças, economia, consumo e o que vai ser o amanhã. A crise veio, por isso, “desinstalar” uma série de coisas que eram dadas como adquiridas, “arrumadinhas a partir da economia”, questionando tanto “o cidadão comum, os simples, como os economistas, os técnicos, os leitores da civilização”. Neste “ano interessante”, há uma chamada de atenção para “o tipo de sociedade que estamos a construir”. A Igreja acompanhou tudo isto “com grande serenidade”, chamando a atenção para os valores mais importantes, para as novas formas de pobreza e desigualdade, procurando despertar “uma outra lógica na partilha dos bens”, com consequências concretas nas opções de cada pessoa nos seus gastos quotidianos. Família e bioética Mary Anne Avilez, enfermeira e consultora da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, escolhe acontecimentos que “apesar de possivelmente não serem grande notícia, ajudam a reflectir na mulher nos dias de hoje”. “Numa formação que fiz com mulheres entre os 20 e os 30 anos, uma referiu a grande dificuldade em tomar decisões sobre ter um filho. Explicou que há dois anos, com grande dificuldade tinha tomado a decisão de casar e, agora, sentia um conflito interior enorme entre a carreira e ter um filho”, relata. Para esta especialista, “a mulher tem lutado pela igualdade, mas interpretando a igualdade como sendo igual ao homem e não igualdade na sua diferença”. Outro caso é a dificuldade com os embriões excedentários. “Num centro nos Estados Unidos da América contactaram os pais porque não podem destruir os embriões ou dar outro caminho aos embriões sem a licença dos pais. E esta situação criou dificuldades porque os pais não eram capazes de tomar uma decisão”, indica Mary Anne Avilez. “A minha dedução é que perante a incapacidade de não ver a humanidade dos embriões, porque na realidade os irmãos daqueles embriões já eram os seus filhos muito amados, não conseguiam aceitar que fossem destruídos ou para investigação”; prossegue. Alexandre Laureano Santos, médico, lamenta que em 2008 – em que se registou um número de mortes superior ao dos nascimentos – se tenha começado a discutir “a licitude da morte intencional de alguém”, um “marco triste da evolução da cultura”. Outra “nota menos feliz”, indica, foi a aprovação de um novo Código Deontológico da Ordem dos Médicos cujo preâmbulo diz que “não existe unanimidade quanto ao início da vida humana”. Oliveira Margarida Ataíde, do CINEDOC, escolhe como acontecimento de 2008 centenário de Manuel de Oliveira, destacando a sua carreira, com uma extensa filmografia, evoluindo ao longo de transformações sociais, económicas, políticas enormes ao longo de 100 anos, mas parecendo uma linguagem hermética. “Se para alguns pode parecer uma linguagem hermética, não o é, e merecia da parte de todos, da comunicação social, de todas as entidades culturais, um esforço para levar a linguagem de Manuel de Oliveira a uma grande massa de possíveis espectadores, ajudando a traduzir a sua linguagem cinematográfica e não apenas uma linguagem que apele à evasão, ao entretenimento, mas uma linguagem interventiva e que procure interpretar a realidade à sua volta. Não é meramente espectadora do que vai acontecendo na sociedade”, diz a consultora da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais. Esta especialista diz que o cinema português tem duas vertentes que o caracterizam: “É por um lado sétima arte e por outro lado, indústria”. “Como indústria vai-se ressentindo de todos os altos e baixos económicos, embora continue a pensar que o cinema me surpreendeu ao longo destas décadas. Como arte é uma área que tem merecido uma especial atenção em Portugal com o aparecer de imensos festivais de cinema que procura ilustrar, através dos filmes em exibição, inúmeras linguagens e alternativas em termos de linguagem audiovisual. Isso é muito importante”, explica. Solidariedade Alfredo Teixeira, sociólogo, salienta do ano que passou o falecimento da Irmã Emmanuelle, em França, no mês de Outubro, quase com 100 anos. A “Irmãzinha do mendigos” não era muito conhecida no nosso país, mas esta religiosa franco-belga destacou-se pelo trabalho realizado no Cairo, com as crianças que remexiam as lixeiras, criando “uma dinâmica de trabalho com eles para favorecer a sua própria autonomia e os libertar de um ciclo infernal de pobreza”, empenhando outros e dando visibilidade à sua casa. “Pessoas como a Irmã Emmanuelle são para a Igreja um rosto muito importante, não só porque em muitos casos sinalizam aquilo que descobrimos como essencial na mensagem evangélica, mas também porque o fazem numa zona de preocupações que são um extraordinário interface com a sociedade”, explica, frisando que os “valores humanitários fundamentais” podem criar pontes e consensos com o mundo actual. Reinventar as conquistas da democracia Professora de Direito na Universidade Católica, Maria da Glória Garcia vê nos acontecimentos dos últimos tempos desafios sérios à reflexão que as Universidades devem propor a quem tem tempo “apenas para resolver problemas do dia-a-dia”. Porque é necessário reinventar as conquistas da sociedade democrática; porque o “ano 2008 tem sido um ano que mostra que a construção que nós temos da vida em sociedade, onde a democracia, o direito davam segurança – porque conquistas da civilização -, hoje não estão a dar a segurança e a justiça de outrora”. “Pequenos nadas que se vão acumulando” resultam nesta urgência: “a necessidade de nos reinventarmos em sociedade”, porque “está a acabar uma era e a iniciar-se uma outra era”. Maria da Glória Garcia desafia os fóruns académicos a “iniciar um processo de reflexão sobre a forma como devemos relacionar-nos com o espaço, que nos leva com a maior da rapidez ao outro lado do mundo, e com o tempo, que já não é o tempo da nossa vida, é o tempo que nos sobrevive e onde temos de deixar uma marca, a da defesa da humanidade, da manutenção da humanidade”. No ano 2008 evidenciou-se esta realidade. Por causa de alguns factores, que a professora de direito exemplifica: “se fomos aumentando a nossa expectativa de vida em razão das inúmeras descobertas na área da medicina, se hoje contactamos com enorme à-vontade com as pessoas que estão do outro lado do mundo, que vivem em situações bem diferentes das nossas, conseguindo eliminar as distâncias através das telecomunicações, se hoje temos qualidade de vida em razão das descobertas que acontecem ao longo dos anos, estamos a sentir que há um lado negativo em tudo isso”. No desafio que emerge dos acontecimentos dos últimos tempos, que o ano 2008 evidenciou, surge uma questão: “Qual é a argamassa que nos une?” A resposta, para Maria da Glória Garcia, surge do contexto cristão: “Todos somos filhos de Deus, e esta é a argamassa que tem de ser renovada, reinventada, no quadro da nossa vida em sociedade”.

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