Voluntariado: Ser voz no centro de África

Susana Villas Boas partilha dois anos de missão e prepara-se para voltar para junto da sua família africana Nascida em Portugal, o sotaque francês trai Susana Villas Boas na conversa e na escolha das palavras. O francês é a língua oficial da República Centro Africana, país onde esteve dois anos em missão. O desejo de partir em missão “sempre esteve presente em mim”, recorda Susana Villas Boas à Agência ECCLESIA. A escolha dos Leigos Missionários Combonianos aconteceu quando a jovem se confrontou com a frase do fundador que falava em “salvar a África com a África”. Longe de ser a viagem de um voluntário que parte para executar um serviço, Susana queria ser uma missionária que “vai para fazer com, estar com e ser parte com as pessoas na realização de algo”. Aos 24 anos surge o desafio de partir. A ideia foi “amadurecendo cada vez mais”. Susana não concebia a “ideia de estar neste lado do mundo e ser feliz sem ajudar à felicidade dos outros”, principalmente quando as diferenças do mundo surgem pela acção dos países desenvolvidos. “Ser voz dos que não têm voz pede uma atitude. É pouco falar num mundo melhor se não se faz alguma coisa para que isso aconteça”, afirma convicta. E o agir passa por “estar junto das pessoas que vêem negados os seus direitos”. A missionária reconhece que em Portugal há muito para fazer “mas, também, muito quem ajude”. Por isso, há que dar o passo “e ir para junto de quem sofre as consequências das decisões dos países desenvolvidos e chamar a atenção para a realidade dos países pobres”. Moçambique era o país mais falado durante a formação que antecedeu a partida. Este foi o primeiro país onde os Leigos Missionários Combonianos marcaram presença. A leiga missionária pedia para ser enviada para onde houvesse necessidade. “Estava disponível para ir onde fosse preciso, mas sentia o apelo do centro da África, sem especificar o país”. Estes seriam os países mais pobres e os que mais necessidades teriam de uma voz que os fizesse aparecer no mapa do mundo. Dois anos em África Em 2006, Susana Villas Boas integrou um projecto em desenvolvimento pelos Leigos Missionários Combonianos espanhóis, mas que se tornou “de forma natural, na primeira comunidade internacional de Leigos Missionários Combonianos”. Mongoumba é um local sem estruturas, sem religiosos, que conta apenas com os leigos. Na área da saúde, da educação, na promoção da mulher, nos direitos humanos, tudo é gerido pela missão. Os projectos dos Leigos Missionários Combonianos impõem que as missões sejam realizadas por, no mínimo, dois anos, para “dar a possibilidade de se desenvolver um projecto com as pessoas. A ideia não é executar um serviço, mas estar com as pessoas”, lembra a missionária. A informação sobre a República Centro Africana é muito escassa. Antes da partida Susana pesquisou na Internet e encontrou “lindas teorias distantes da realidade”, nomeadamente informação sobre os bantus (etnia) e os seus ritos de iniciação. Mas a realidade mostrou que os ritos de iniciação já não existem há algum tempo e os valores culturais sofreram uma mutação. “Sente-se ainda uma forte presença da colonização e com a alteração de valores as pessoas sentem-se no ar, sem uma ligação à raiz cultural”. “Percebe-se a acção do homem branco naquela cultura, e pela ausência de um acompanhamento, deu-se uma imposição cultural”, aponta Susana Villas Boas. Aos 24 anos, Susana partiu sem ideias feitas. As suas tarefas passariam por trabalhar com os pigmeus e os bantus (etnias do país). O pedido para se deixarem surpreender por aquilo que encontrassem no país de missão, e a ausência de testemunhos de missionários na República Centro Africana, levaram Susana a viajar para uma realidade que ainda hoje a surpreende. Os Leigos Missionários Combonianos formaram a missão há 10 anos. Ao longo de dois anos, Susana foi responsável pelo posto de saúde e pela direcção de seis escolas – dois projectos com os pigmeus. No posto de saúde o esforço reside na “tentativa de que a medicina seja uma resposta antes que o pigmeu morra com as curas tradicionais e ajudar”. Este é um povo que precisa “construir o valor da vida”. No meio da floresta, Susana conta “que é a lei do mais forte que dita a sobrevivência”. O posto de saúde assenta num carácter preventivo e no “acompanhamento à toma dos medicamentos”, tentando encaminhar os pigmeus para o hospital público. O que não é fácil, pois “os pigmeus são vistos como uma raça inferior”. Esta etnia só foi conhecida com a desflorestação. “O desconhecimento da raça ditou, na altura, que não seriam humanos”. E esta é uma descriminação que persiste até hoje. Com fortes barreiras culturais, o trabalho é construído a partir do “querer fazer com as pessoas”. É um processo natural, “pouco a pouco, tentando evitar choques culturais”. As decisões e os passos de avanço e recuo “são tomados respeitando o outro”. O choque cultural Por dois anos a realidade da República Centro Africana foi o dia-a-dia de Susana Villas-Boas. Chegada a Portugal em Julho para dois meses de férias, Susana ainda não fez “de facto férias”. Entre projectos que traz e pedidos de financiamento, a missionária quer trazer a realidade do país africano para a Europa. Umas férias em trabalho com a República Centro Africana no sangue. Em Portugal recorda situações, boas e más que em África são rotineiras. O nascimento e a morte, as visitas na doença, a alegria das crianças são factores que a levam a sentir-se em família em África, onde também já partilha a língua nacional, o sango. A integração e o reencontro com a cultura natal encontrou sérias dificuldades. Nas pequenas coisas práticas Susana foi confrontada com mudanças na sociedade portuguesa. “A quantidade de lixo que se faz, gasta-se energia inutilmente”, explica. A missionária à chegada não encontrou a simpatia tradicional acolhedora dos portugueses. “Vivemos um egoísmo extremo. As pessoas não se dão conta das pessoas ao seu lado, quanto mais a quem está do outro lado do mundo”. E porque o coração “continua a bater do outro lado do mundo”, Susana vai voltar por mais dois anos. Mais dois anos significam uma continuidade. “Neste momento a República Centro Africana faz parte da minha família”, facto que a deixa dividida entre Portugal e o país africano. “Estar dois anos só com eles cria laços de uma relação”. Olhando as duas realidades, Susana percebe onde está a necessidade maior. O que já conquistou junto das etnias permite-a desencadear projectos que outros que cheguem agora não conseguem. O trabalho é muito e “precisamos de pessoas para trabalhar”. A missão está no meio da floresta e de lagos, com uma “realidade complicada”. Duas missionárias, Susana e uma colega italiana, sustentaram trabalho de missão que daria para quatro. Duas missionárias espanholas deixaram recentemente a missão, e entretanto chegou mais uma missionária portuguesa. Dia 11 de Setembro marca o regresso ao trabalho interrompido. No seu desapego diz que não leva nada de especial. Vai querer sim levar “um aparelho de esterilização” para o posto de saúde, mas o que quer “é rentabilizar e dar valor ao que já existe no país”. “Há um tempo para partir e um para voltar”. Consciente que o regresso não será fácil, Susana admite que o regresso e a ajuda na formação faz parte da missão do Leigo Comboniano. Dois anos distam ainda até ao momento de voltar. “Esta é ainda altura de agir”. Susana sente que entra agora na cultura do país e regressar seria desistir “no início do caminho”.

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