Voltar a Confiar na Justiça

Comissão Nacional Justiça e Paz dirige propostas a políticos, legisladores e governantes em ordem à credibilização da justiça Uma panorâmica das notícias da actualidade, e das reacções de muitas pessoas perante essas notícias, transmite-nos a evidência de uma crise de confiança no sistema de justiça, por parte de muitos cidadãos e cidadãs. Há processos que se vão eternizando e cujo desfecho parece incerto, a ponto de muitas pessoas duvidarem se neles alguma vez será “feita justiça”. O acesso à justiça é oneroso e não está ao alcance das pessoas de menores recursos económicos. Cria-se a suspeita de que a capacidade económica, com a possibilidade de recurso a advogados mais combativos, possa frustrar as exigências da verdade e da justiça. Questões complexas são publicamente debatidas, muitas vezes sem o necessário conhecimento de causa, e há decisões judiciais que não são compreendidas por aparentemente contrariarem o comum sentimento de justiça. A Comissão Nacional Justiça e Paz pretende, neste contexto e com esta nota, realçar a importância da credibilização do sistema de justiça. Um poder judicial independente e socialmente legitimado é um imprescindível pilar de um Estado de direito democrático. A tutela dos direitos fundamentais da pessoa humana exige o acesso à justiça sem discriminações. Os mais pobres, porque mais vulneráveis face à prepotência dos vários poderes, são particularmente afectados pelas disfunções do sistema judicial. Este deve desempenhar um relevante papel pedagógico de afirmação dos valores éticos que servem de alicerce à harmonia da convivência social. Uma justiça tardia com frequência deixa de ser uma verdadeira justiça, só por ser tardia. Para readquirir a confiança no sistema judicial, todos os que nele intervêm, os decisores políticos e todos os cidadãos e cidadãs, em geral, têm um papel importante a desempenhar. Sem pretendermos ser exaustivos, aqui deixamos algumas indicações a este respeito. Os responsáveis políticos, legisladores e governantes, deveriam evitar reformas precipitadas que não tenham na devida consideração os alertas de quem lida quotidianamente com as situações, nem deveriam tardar em emendar o que se esteja a revelar ineficaz ou contraproducente, sem esperar que os danos dessas reformas precipitadas se tornem dificilmente remediáveis. A legislação é, com demasiada frequência, pouco clara, dando azo a evitáveis divergências de interpretação, que atrasam o andamento dos processos. Deveria, também, ser mais frutuoso o diálogo institucional entre o poder político e o poder judicial, com base nas experiências de aplicação da lei e o conhecimento prático das eventuais deficiências da sua formulação. Os magistrados não deveriam (como muitas vezes sucede) atribuir sistematicamente as culpas das disfunções do sistema à falta de recursos ou aos erros do legislador, sem atenderem ao que, mesmo em contextos que objectivamente dificultam a sua acção, cada um deles pode fazer para melhorar o funcionamento do sistema. Há quem justamente aponte, por exemplo, a tendência para retardar injustificadamente decisões difíceis, ou se escudar atrás de formalismos não essenciais para evitar tais decisões. Ou, também, a desatenção em relação à necessidade de minimizar os inconvenientes, na perspectiva do cidadão, de adiamentos, mesmo quando estes possam ser inevitáveis. Por outro lado, a actividade sindical dos magistrados, que se não rejeita, terá de respeitar o facto de se tratar de pessoas que, no exercício da sua profissão, são titulares de um órgão de soberania. Ao respeito escrupuloso da independência dos tribunais por parte dos outros órgãos de soberania deve corresponder o respeito, por parte dos magistrados nas suas intervenções, da legitimidade própria desses outros órgãos. Essencial ao funcionamento do sistema judicial é, num Estado de direito, o exercício correcto da advocacia. Por diversos factores, entre os quais o sacrifício de princípios deontológicos motivado pela concorrência feroz entre profissionais, assiste-se com frequência ao recurso, por parte de advogados, a expedientes processuais que se revelam meramente dilatórios e que, muitas vezes, até acabam por não se traduzir em qualquer benefício para o cliente, mas apenas em avultados custos acrescidos. A celeridade da justiça não deve ser alcançada à custa das garantias de defesa ou das exigências do princípio do contraditório, mas o recurso abusivo e injustificado a todo o tipo de expedientes processuais está, muitas vezes, na origem de atrasos perfeitamente evitáveis. Numa democracia e numa sociedade aberta, a justiça deve ser exercida com transparência e publicidade. Não pode, por isso, negar-se a relevância do papel da comunicação social no escrutínio público da justiça. Mas à comunicação social será de exigir rigor e conhecimento de causa na abordagem das questões jurídicas. Assim como o respeito pelas regras do segredo de justiça, regras que se circunscrevem a fases processuais determinadas, não impedem a investigação jornalística por outras vias e se justificam pela garantia da eficácia da investigação processual e pelo respeito do bom nome de quem se presume inocente. Não é aceitável que se transfira para a comunicação social a sede do julgamento e condenação, como se fosse ela própria a condenar, provocando manchas indeléveis na reputação dos visados, sem as garantias de defesa de que as instituições judiciais são expressão. Aos cidadãos e cidadãs, em geral, deverá ser pedido que não se banalize o acesso à justiça através do recurso aos tribunais. Há meios alternativos de resolução dos conflitos (como a mediação penal, entre outros) cujas virtualidades estão ainda, em grande parte, por explorar. Para aproveitar de tais virtualidades, importa superar uma mentalidade excessivamente propensa ao conflito e intransigente, centrada na visão exclusiva dos interesses próprios e cega aos interesses dos outros. A justiça pode ser alcançada sem exacerbar os conflitos, através de soluções de consenso e, sobretudo, quando, para além da reparação dos danos pessoais e sociais, se recompõem as relações quebradas pela prática de actos ilícitos. A solução dos atrasos processuais não pode depender de um aumento contínuo das despesas (pública e privada) com a justiça, mas, sobretudo, do recurso menos frequente aos tribunais, o qual deve ser reservado para situações em que, pela sua complexidade ou gravidade, o recurso a formas alternativas de resolução dos conflitos não se mostre adequado. O nosso apelo é, pois, a que todos, e cada um, demos o nosso contributo para restabelecer a confiança na justiça. Temos plena consciência da gravidade da situação. Mas o nosso apelo é movido pela esperança, porque conhecemos o empenho e dedicação de muitos dos que trabalham nesta área e porque sabemos como os cidadãos e as cidadãs são sensíveis ao valor da justiça como alicerce da democracia. Lisboa, 07 de Maio de 2007

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