Ucrânia: Quando reportar a guerra é mais do que um trabalho e o cheiro de 40 dias ainda se cola à pele e à memória

Jornalista desde 1993, Rui Caria encontrou a paz na fotografia que procura fazer, «não na perfeição» mas cultivando «o espanto de uma criança», para encontrar «o extraordinário na banalidade»

Foto: Daniel Rodrigues

Angra, 22 fev 2023 (Ecclesia) – O fotojornalista Rui Caria esteve 40 dias na Ucrânia, entre março e maio de 2022, e reconhecendo que o “espanto permanente” não é possível, espera que a guerra “não se normalize” e que os ucranianos “não sejam esquecidos”.

“Quando achamos que aquilo é normal, é perigoso. Quando achamos que ver gente morta pelo caminho é normal, é altura de vir a casa ou vir para casa”, conta à Agência ECCLESIA.

Rui Caria acompanhou, em duas viagens por períodos de 20 dias, o conflito espoletado pela invasão da Rússia à Ucrânia, que teve início a 24 de fevereiro de 2022, tendo sido acompanhado pelo fotojornalista Daniel Rodrigues, mas explica que não foi só fazer reportagem.

“Quando me perguntam porque fui, eu brinco com isso porque não há outra forma de fugir à questão, não consigo matar essa pergunta. Não fui só fazer reportagem, não fui só trabalhar, mas fui também eu lá, perceber melhor o que é que os humanos são capazes de fazer”, recorda.

Da segunda viagem, Rui explica que já sabiam ter medo.

“Naturalmente que a primeira vez é sempre mais forte; a segunda já não tinha a expetativa do desconhecido, apesar de todos os dias serem novos e desconhecidos. Na segunda vez já sabíamos ter medo – se é que isto é possível. Na primeira vez, nem tão pouco medo sabíamos ter, e esse medo salva-nos. Esse medo vai ficando por lá, vamos lidando com o estar, com o ser e estar lá, e vamo-nos adaptando porque somos o animal à face da terra mais adaptável a qualquer condição”.

Rui Caria recorda imagens como se não tivesse passado um ano – ficam “coladas à pele” – e o tanto que viu e optou por não mostrar, porque “ética e o utilitarismo andam em luta”, dão sensações “não estampáveis” em vídeos e fotografias.

“É muito fácil regressar ao cheiro e sobretudo não nos esquecemos do que pensamos quando começamos a cheirar certas coisas, como a morte. Começamos a tentar refletir sobre aquilo. Lembro-me de termos descoberto 11 corpos de soldados russos numa vala comum através do cheiro. Isso faz de nós animais? «Para o carro porque há aqui alguém morto», ou alguma coisa morta – também usamos este tipo de linguagem. Alguma coisa porque é o indefinido: um cão morto, um gato morto, um rato morto cheira ao mesmo que um homem ou uma mulher morte. Na morte cheiramos todos ao mesmo”, afirma.

Foto: Daniel Rodrigues

O fotojornalista fala de uma guerra “na Europa”, dos europeus que a vivem “à porta de casa”, e recorda que nenhuma imagem que captou mostra a realidade.

“A ética e o utilitarismo ali andam em luta: o que temos de mostrar, porque é o nosso trabalho editorial, e o que não queremos mostrar, porque achamos que estamos a mostrar demais, a ver demais, a fazer ver demais. Essa luta é constante entre o utilitarismo que nos obriga a fazer e a ética aplicada ao jornalismo. Não há imagem nenhuma, nem de vídeo nem de fotografia, que mostre o que ali se passa: a representação da realidade é incompatível com a realidade”, traduz.

Rui Caria recorda um funeral que fotografou, com uma mãe que se despede do seu filho de 22 anos, que quer entrar na cova que vai receber a urna e as pessoas a tentam tirar.

“Parecia tudo fácil demais porque aquelas pessoas não nos viam, eramos invisíveis, tal o estado de choque e apatia que as pessoas carregam, não percebem nem reclamam a nossa presença”, afirma.

Recentemente, a mãe deste filho, que descobriu através da publicação da fotografia nas redes sociais, trocou mensagens com o autor: “Disse-me que o filho lhe apareceu num sonho a dizer que está a sofrer muito e que esperava que a guerra acabasse depressa. Agradeci à senhora sem dizer muito porque não sinto que possa dizer algo que acrescente alguma coisa…”, recorda.

Jornalista desde 1993, Rui Caria opta por levar hoje menos equipamento quando parte para uma reportagem, porque entende que a evolução “é ser mais simples”, “retirar o que não é preciso e deixar só o essencial”.

Para a Ucrânia levou duas câmaras e duas lentes, para conseguir mostrar mais “o local onde se passam as coisas” e outra para “retratar rostos”.

Com uma lente de 200 milímetros podia fotografar a cara de uma pessoa a 30 metros, mas eu quero fotografar uma pessoa, na cara da pessoa, porque a força do rosto de uma pessoa tirada ao pé do sujeito não é a mesma de uma fotografia que, demonstrando o sujeito ao pé do fotógrafo, ele na verdade não está lá. Essa linguagem da proximidade importa-me muito”.

Rui Caria conta que a fotografia lhe deu “a paz” que já não encontrava em trabalho televisivos e fala do prazer que “ver o extraordinário na banalidade” lhe dá.

“Para ser fotografia temos de olhar para as coisas como crianças, com a curiosidade de uma criança”, reconhece.

Nos Açores, onde reside desde 2005, acolhe pessoas em sua casa para com ele gravar um podcast a que chamou «Notas fotográficas», onde procura partir da fotografia e da paixão pela imagem para chegar a outros locais da vida das pessoas.

O seu primeiro convidado, o padre José Júlio Rocha, desafiou-o a fotografar Deus.

“Ele sabia que eu não tinha resposta para isso. Ainda ando à procura de Deus. Não sei se acredito em Deus – espero que ele acredite em mim. A procura de uma presença aparece naturalmente na cabeça das pessoas, também na minha. Se vir uma trovoada, uma neblina ou uma bruma, uma tempestade nos Açores, ai parece-me que Deus existe, que Deus é isto. Acho que Deus são acontecimentos, são pedaços de coisas. Falo muito sobre a morte e a vida com o Júlio, mas surgem sempre mais perguntas. E as perguntas também nos fazem avançar”, constata.

A conversa com o fotojornalista Rui Caria pode ser acompanhada esta noite no programa ECCLESIA na Antena 1, pouco depois da meia-noite, estando depois disponível no portal de informação e no podcast «Alarga a tua tenda».

LS

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