Defensor da reforma do sistema eleitoral, Eduardo Marçal Grilo espera que os dois principais partidos “sejam capazes de se entender” já na próxima legislatura para uma reforma que exige a aprovação por dois terços dos eleitos. Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia considera “excessiva” a cobertura mediática da campanha eleitoral. Fala, ainda, do Papa Francisco, que considera ter mudado o rosto da Igreja.
Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Fotos: Joana Bougard
A pré-campanha para eleições legislativas tem sido marcada por vários debates, só na televisão estão previstos 15 até dia 23. Estes debates são decisivos, são determinantes?
Não sei se serão determinantes. Eu tenho um bocado a ideia de que os partidos políticos continuam a fazer campanhas eleitorais muito parecidas com o que eram há 30 ou 40 anos. Há uma certa diferença com as tecnologias, com o número de canais de televisão e com o número de entrevistas e debates, mas parece-me tudo muito passado.
Pouco inovador, apesar de tudo?
Inovação nenhuma. Quer dizer, estes outdoors, estas coisas gigantescas… onde vivo, ao pé da Praça de Espanha, está completamente poluída com cartazes imensos com as caras das pessoas, com umas frases. Sinceramente tenho muitas dúvidas sobre a eficácia que isto tem sobre os eleitores e a decisão dos eleitores.
E a cobertura mediática que é feita?
É excessiva. O número de entrevistas, de debates, de declarações, de conferências de imprensa torna-se quase insuportável. Eu acompanho mal, digo com fraqueza, não sou capaz de acompanhar o ritmo, ver os debates todos. Normalmente leio o essencial dos debates, alguns jornais fazem uns bons resumos, bem feitos, ficamos com uma ideia do que cada participante diz. Também leio algumas entrevistas, mas sou muito seletivo.
Relativamente aos temas da campanha. O que é que em sua opinião tem feito falta falar?
Olhe, tem-se falado relativamente pouco de uma coisa a que eu atribuo muita importância que é a alteração da lei eleitoral. Eu fiz parte daquele movimento liderado por algumas pessoas, mas principalmente pelo José Ribeiro e Castro, que fez uma proposta de alteração da lei eleitoral. Julgo que pelo menos os partidos políticos deverão refletir sobre isto, e estou convencido que sim, que a legislatura que vai entrar vai ser uma legislatura importante para isso. Obviamente que tudo o que se poderá fazer em matéria de alteração terá de ser feita na primeira ou segunda sessão legislativa, não me parece que isto deva ser deixado para a terceira ou quarta. Tenho esperança que, sobretudo os dois grandes partidos, sejam capazes de se entender nesta matéria. Não sei se é para cortar o número dos deputados, se é apenas para fazer ciclos nominais…
Essa questão é sensível para a população, a ideia de que poderia ser um sinal interessante, do ponto de vista político, reduzir o número de deputados. Mas, o que é que o país ganharia com isso?
Não penso que a redução do número de deputados seja o ponto fundamental. Eles são 230, e menos 10 ou menos… isso não resolve problema nenhum, na minha perspetiva. A população é muito sensível (a isso) porque a população tem vindo a ser, em certa medida, intoxicada contra a classe política, e a classe política tem gente muito boa e tem gente menos boa, como em todas as profissões e atividades. O que me parece mais importante é alterar o sistema pelo qual nós nos sentimos ou não nos sentimos representados.
Eu voto em Lisboa, e há uns tempos até pensei em não votar, por não concordar com a lei eleitoral, mas depois refleti uma segunda vez e vou-me atraiçoar a mim próprio e irei votar. Qualquer dos partidos em que eu vote, o meu voto o que vai influenciar é o 13º do PS, ou o 12º do PSD, ou o quarto ou quinto do CDS, ou o segundo ou terceiro de outro partido qualquer. Nós temos pouca relação com os nossos eleitos, há uma relação muito ténue, o que é muito negativo para o sistema democrático, porque no fundo os nossos deputados não são delegados, são representantes, têm a sua própria opinião e devem prestar contas da opinião que têm. Nós elegemo-los, devemos saber o que é que eles pensam, o que é que eles pretendem fazer.
Mas faz sentido pensar que esse distanciamento durante a legislatura se pode atenuar com uma maior proximidade?
A questão central é esta, é que o deputado, o membro do parlamento, depende muito mais da vontade do secretário-geral ou do presidente do partido do que propriamente do eleitor. Presta contas a quem o colocou na lista, que não fui eu, eu não o coloquei na lista. Eu voto num conjunto de pessoas, certamente tudo pessoas muito estimáveis, mas que na maior parte não conheço, não sei quem são. Posso tentar ver o currículo deles, os que já foram deputados, o que é que votaram e o que é que não votaram. Por exemplo, nos Estados Unidos isso é muito significativo, quando um Senador se candidata à presidência apresenta o seu currículo, com o que é que fez em cada uma das votações ao longo do número de anos em que esteve como Senador. É por isso que os Senadores têm muita dificuldade em ser eleitos nos Estados Unidos, porque têm um currículo em que se diz ‘votaste contra aqui, votaste contra ali, aqui votaste a favor, eu não gosto disto, eu não gosto daquilo’. Aqui o que acontece é que os nossos deputados estão dependentes é da posição do partido, do presidente ou secretário-geral do partido.
Não há uma solução óbvia para isto, mas o que me parece é que ao longo destes 40 e tal anos de democracia que nós temos há experiência suficiente para se poder refletir sobre o sistema e perceber se ele deve, ou não, ser alterado, e em que medida e com que orientação é que deve ser alterado. Eu julgo que deve ser aumentado o número de circunscrições, maior proximidade. Não estou a falar propriamente de círculos uninominais, mas também não tenho nada contra os ciclos uninominais, desde que eles sejam lançados de tal forma que não se crie nenhuma distorção, tem de haver alguns mecanismos de compensação.
A proposta que foi apresentada pelo movimento de que fui subscritor parece-me uma solução muito equilibrada. Não quer dizer que seja a solução, mas é certamente um contributo muito grande para esse debate sobre a lei eleitoral.
Outro ponto que me parece muito relevante, e que importa que os partidos se manifestem, é a questão europeia. Julgo que os próximos quatro anos na Europa vão ser dominados por uma reflexão e uma eventual reforma de algumas das instituições europeias. É importante os países europeus entenderem-se relativamente a algumas coisas essenciais, que são aquelas que nenhum país é capaz de resolver sozinho, e só havendo entendimento entre os países pode haver uma estratégia comum…
Por exemplo, as migrações?
Questões como as migrações, os refugiados, o ambiente, o mar, questões de segurança e defesa. A defesa é uma área muito sensível, porque os países europeus, na esmagadora maioria, estão integrados numa organização militar que é a NATO. Não me parece particularmente feliz a proposta do presidente Macron de criação de uma espécie de força de defesa europeia, porque teríamos sempre de encontrar aqui um equilíbrio entre o que é uma participação na NATO e uma participação numa força dessas. Aliás, Portugal não tem sido muito favorável a essa ideia, pelo menos o presidente da república não se mostrou particularmente sensível a essa proposta, não lhe agradou.
Mas, se estas questões não foram suficientemente debatidas na campanha para as eleições europeias, que decorreram em maio, muito menos serão agora…
A questão é esta, as campanhas eleitorais, no fundo, acabam por ser um repositório de discussões de pequenos temas, porque a discussão dos grandes temas não pode ser feita no meio deste alarido todo das campanhas eleitorais, com as bandeiras, os carros, os comícios, as bandas a tocar. Estas matérias mais sensíveis implicam muita serenidade e tranquilidade. Sobretudo aquilo que me faz muita impressão nalguns destes debates é o conjunto de certezas que as pessoas têm. Têm muitas certezas, e eu com a idade, confesso que tenho cada vez mais dúvidas. Quer dizer, há coisas em que eu posso estar convicto de que a melhor solução é esta, e há algumas questões que parecem mais ou menos evidentes. Por exemplo, quando nós dizemos que a questão do ambiente é uma questão que não pode ser tratada por cada país por si, parece-me uma evidência, tenho a certeza disto, agora se me perguntar assim ‘qual é o modelo que os países europeus devem adotar para enfrentar estas grandes questões? Precisamos de mais união política?’… aquela frase que se diz muito, que ‘é preciso mais Europa’, eu não sei se em todas as matérias é preciso mais Europa, algumas se calhar não é preciso, mas há outras em que se calhar é preciso, e precisamos de ter mecanismos que permitam uma maior facilidade na decisão conjunta dos países envolvidos.
O tema específico do ambiente e das alterações climáticas entrou em força nesta campanha, será uma das grandes novidades no discurso político. Parece-lhe que é uma preocupação genuína, ou há aqui uma ideia de ‘cavalgar a onda’?
Eu acho que é uma preocupação genuína. Eu não diria que é uma moda, porque seria desagradável. Não é uma moda, é um problema de fundo, e que tem de ser tratado. Mas, em Portugal não temos tido verdadeiramente nenhum partido a que se possa chamar um partido ‘verde’, porque o partido ecologista ‘Os Verdes’ está integrado no Partido Comunista, é um partido satélite na CDU, não é um partido com grande autonomia nesta matéria.
E o PAN?
O PAN não começa por ser um partido ecologista, começa por ser um partido, sim, que trata das pessoas e dos animais, dos direitos do homem e dos direitos dos animais, etc. A ideia que eu tenho – pode ser que esteja enganado – é que o trend europeu é muito no sentido dos verdes. Quer dizer, o crescimento dos Verdes na Alemanha é brutal, está praticamente a sugar o eleitorado do SPD, que está a ‘desmilinguir-se’, e o partido dos Verdes vai certamente ter alguma importância no futuro próximo na Alemanha, e não apenas na Alemanha, em muitos outros países. Vai ter em França, e em Itália também vai ter. Aqui, aquilo que me parece é que o PAN está um bocadinho a apanhar esta onda de ambientalismo e de ecologia.
A aproveitar-se disso?
Sim, no sentido de ‘estamos aqui numa posição em que podemos pegar neste tema’. Agora, este não é um tema para ser tratado apenas por partidos minoritários, é um tema de uma importância tal que tem de ser uma bandeira de qualquer governo que seja criado, não é apenas na próxima legislatura, é nos próximos anos, porque é uma questão centralíssima. Nós estamos a dar cabo do planeta, estamos a utilizar recursos que já não são reequilibráveis.
Pelo que tem acompanhando na campanha, os vários partidos, independentemente de quem venha a ganhar as eleições, estão mais sensíveis para esta temática e dispostos a enfrentá-la seriamente?
Eu acho que é praticamente obrigatório, já não é uma questão de opção política, é uma questão de obrigação perante os factos. Nós podemos negar as alterações climáticas, como faz o presidente Trump, mas as alterações climáticas estão à vista. Tudo isto vai ter uma influência enorme na vida das pessoas e, portanto, esta matéria da defesa do ambiente e do planeta parece-me ser uma obrigação de qualquer governo, em qualquer país hoje em dia.
Esse tema entrou em força no pensamento social da Igreja católica, em especial com o Papa Francisco. Num país como o nosso, que ainda se diz maioritariamente católico, em relação às chamadas questões fraturantes, seria importante os partidos esclarecerem o que cada um pretende fazer nesta legislatura?
Primeiro deixe-me dizer algo sobre o Papa. O Papa Francisco é uma voz que se ouve em todo mundo e colocou a Igreja numa situação diferente daquela que tinha anteriormente. Apareceu como um homem da periferia, porque veio da Argentina, é um homem humilde, simples, com um discurso muito direto e muito compreensível, e tão compreensível para os cristãos como para os não-cristãos. E esta abertura… às vezes tenho a sensação de que ele é mais compreendido e a sua palavra mais aceite fora da Igreja do que dentro da Igreja, e isto pode ter duas leituras, uma é de crítica, outra é de louvor. A minha é de louvor, porque a Igreja tem internamente muitas correntes hoje em dia…
Acompanha a vida da Igreja com atenção?
Não digo com muita atenção, mas com alguma atenção. É impossível ficar fora da palavra do Papa, quer dizer, o Papa diz coisas verdadeiramente extraordinárias, com uma enorme simplicidade, e coisas que têm a ver com as pessoas. Ele está preocupado com a vida das pessoas, com os que sofrem, os doentes, os marginalizados, os deficientes, aqueles que não têm quem os proteja, os que não têm voz.
O Papa veio trazer uma voz a muitas pessoas que não a tinham. O Papa sempre que fala… até a forma como ele se move, como ele anda, a forma como se veste, quer dizer, basta olhar para os sapatos para perceber a humildade e o grau de simplicidade daquele homem. Ou a vida que faz no Vaticano, onde vive, com quem come e com quem conversa no Vaticano. Estas coisas são muito importantes. Portanto a palavra do Papa é, nestas matérias fraturantes, como falou há pouco… eu não sou um grande entusiasta destas matérias fraturantes, com todo o respeito.
Mas, deviam ser tratadas na campanha? Sabemos, por exemplo, que na próxima legislatura vai voltar-se ao tema da eutanásia. Não seria importante os vários partidos esclarecerem nesta fase o que é que pretendem fazer?
Mas, será que esta é uma matéria que deve ser tratada pelos partidos no seu conjunto, ou isto são questões mais de consciência? Nas questões de consciência não penso que os partidos devam dizer ‘a nossa posição é esta, e agora os 40, 50, 20 ou 10 deputados que aqui estão vão todos ter de votar desta maneira’. Não me parece que isto deva ser discutido desta forma.
Quando foi a questão do aborto, por exemplo, foi essencialmente uma questão de consciência e nós vimos como no parlamento as pessoas votaram em consciência. Aliás, na votação sobre eutanásia houve muita gente que não seguiu a votação que a maioria do partido tinha, houve pessoas que votaram de acordo com a sua consciência. Respondendo diretamente à vossa pergunta: não penso que deva ser um tema que deva ser colocado ‘diga lá o que o que é que acha sobre a eutanásia, porque o partido vai tomar esta posição ou aquela’.
Já esta semana a Igreja (Conferência Episcopal Portuguesa) aconselhou a que os eleitores se informem sobre o cada partido pensa destas matérias, e apelou ao voto, para contrariar os números da abstenção, que nas últimas eleições atingiu máximos históricos. Como é que vê a intervenção da Igreja nesta matéria?
Em Portugal temos um sistema democrático e um sistema de liberdade, liberdade em praticamente tudo. Porque é preciso que as pessoas percebam… por exemplo, falamos muito da Inglaterra, a Inglaterra é uma democracia, talvez a mais antiga, mas ainda hoje tem uma religião do Estado, coisa que nós não temos.
Quando a Igreja nos diz ‘vocês devem votar’, ‘nós apelamos ao voto’, ‘é importante que os católicos votem’, é um bocadinho repetir aquilo que dizem as instituições. O presidente da república faz sempre, na véspera das eleições, um apelo ao voto, no sentido do aumento da participação. E a participação é muito importante não apenas no voto, nas eleições, mas a participação nas próprias instituições, a que cada um pertence. Nas universidades, a que estou ligado há muitos anos e a que presto uma grande atenção, é muito importante a participação de todos, não apenas os órgãos que foram eleitos e não apenas em termos institucionais, quer dizer, há obrigação de participar na vida coletiva. É nessa perspetiva que vejo a posição da Igreja, que é dizer, no fundo, os cristãos fazem parte desta comunidade, vivemos neste país, a posição deles é importante que seja expressa. Portanto, quando se diz ‘votem’, é no sentido de ‘participem, não sejam neutros’. Eu, por exemplo, tenho muito orgulho em ser independente, mas não sou neutro.
Não é a mesma coisa…
Não é a mesma coisa. Eu não sou neutro, tomo posições de acordo com aquilo que é a minha convicção em relação a cada um dos pontos, e posso votar num partido ou votar noutro. Não tenho nenhuma dependência em relação a qualquer força política, e isso é algo que prezo muito em mim próprio, ter a capacidade de dizer ‘nesta matéria estou com estes, naquela matéria estou com os outros’.
O Macron (em França) quando fez a sua campanha dizia ‘eu não sou de esquerda nem de direita, mas tenho coisas de direita e tenho coisas de esquerda’. Eu identifico-me muito com isto, sinceramente. Porque quando olhamos para o que os partidos são na sua essência vemos os que são manifestamente contra a iniciativa privada, como sendo a base da criação da riqueza, através das empresas e aquilo que é a iniciativa de cada um, a importância da sociedade civil. Aqui posso dizer ‘sou de direita’, porque entendo que a riqueza é criada essencialmente não pelo Estado, mas pelos cidadãos através da sua iniciativa. Há outras matérias em que manifestamente sou um pouco mais à esquerda. E sou à esquerda quando se trata de direitos das pessoas que são muitas vezes espezinhados em favor apenas de um lucro, que às vezes já não se percebe para que é esse lucro. Quando há uma obsessão nas empresas pela distribuição dos dividendos, feita à custa do suor dos trabalhadores, eu sou contra, porque penso que deve aqui haver um equilíbrio entre as várias partes que estão envolvidas, o trabalho e o capital, o capital e o trabalho, aqueles que são capazes de distribuir ou redistribuir, e o papel que o Estado deve ter no meio disto.
Portanto, o apelo da Igreja ao voto é sempre bem-vindo, na minha perspetiva. Porque a Igreja, e vocês sabem isto melhor do que eu, tem hoje muitas forças internas, algumas ligeiramente contraditórias. Há movimentos dentro da Igreja muito radicais, muito ortodoxos, excessivamente conservadores na minha opinião, mas também temos uma outra Igreja que é muito mais aberta, mais compreensiva e mais próxima dos problemas das pessoas, e isto tem muito a ver também com as regiões. Quando nós olhamos para a América do Sul ou para África a maneira como se olha para determinado tipo de problemas das pessoas é diferente.