Solidariedade é uma exigência ética

Homilia do Bispo do Porto no Dia Mundial da Paz Celebramos, no início do ano civil e oitava do Natal, a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus. “Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher e sujeito à Lei, para resgatar os que estavam sujeitos à Lei” (Gal. 4,4). É palavra de Deus, transmitida por um Apóstolo da Igreja. É expressão da nossa fé, que nos aproxima da Mãe de Jesus (modelo de crente), a qual conservava e meditava em seu coração as palavras dos pastores junto ao Presépio a respeito do Menino a quem foi dado o nome de Jesus (Salvador) (cf. Lc. 2, 16-21). Deste modo se começava a realizar a profecia de benevolência e de bênção “o Senhor volte para ti os seus olhos e te conceda a Paz” (Num. 6,26). Para este Dia Mundial da Paz (que é já o XXXVIII) o Santo Padre enviou-nos, como de costume, a sua Mensagem, que obedece ao seguinte tema: “Não te deixes vencer pelo mal, vence antes o mal com o bem” (Rom. 12,21). A existência do mal não é um mero suposto, mas uma afirmação equivalente, que não se compadece com qualquer forma de indiferentismo, ético ou moral. “Desde as origens, a Humanidade conheceu a trágica experiência do mal e procurou encontrar as suas raízes e explicar-lhe as causas… O mal passa através da liberdade humana… Tem sempre um rosto e um nome: o rosto e o nome de homens e mulheres que o escolhem livremente” (Mensagem, n.2). É impressionante a difusão das mais variadas manifestações sociais e políticas do mal, como sejam a desordem social, a anarquia, a insegurança e as guerras, a injustiça e a violência em desrespeito da vida de outrem. A violência atingiu o nível mais perigoso com o terrorismo que ameaça e destrói, sem aviso e sem previsão. E se há países ou regiões em que o terrorismo já aniquilou e deixou as marcas do extermínio com ondas de medo irreprimível, também a sociedade em que vivemos respira uma paz falaciosa, tanto que os níveis de violência, se ocupam espaços obscuros, invadiram já a área doméstica. Ou porque o fenómeno surgiu e não foi suficientemente combatido, ou porque dele se tomou conhecimento ou porque se lhe atribuiu a gravidade adequada e criminosa. Na nossa linguagem vamos banindo alguns conceitos e palavras para introduzirmos os termos da nossa preferência linguística ou ideológica. A palavra solidariedade adquiriu lugar e nível de privilégio, porque a solidariedade é necessária, pertence à natureza social da pessoa humana, e também porque se presta para substituir a palavra caridade e o conceito mais lídimo do amor. E também , há que admiti-lo, porque temos de encontrar antídotos contra tendências denunciadas da sociedade, como sejam o egoísmo e o individualismo. E no entanto, também por esta perspectiva a nossa sociedade não é pacífica. Labora em contradições que afectam o ambiente social. Não é verdade que o materialismo reinante e o positivismo científico da nossa cultura têm da realidade humana uma visão redutora e transformam o bem comum num simples bem-estar sócio-económico, sem transcendência e sem base para autêntica solidariedade humana? Será que ainda não quisemos esquecer a má experiência e o entusiasmo quase fatalista (e quase fatal) do sistema que resultou dessas correntes de pensamento? Insistindo na doutrina, bíblica e eclesial, da Antropologia cristã, o Papa lembra, na sua Mensagem, os inícios da História Humana e as primeiras escolhas (opções) erradas, com a respectiva e “essencial conotação moral, que implica concretas responsabilidades por parte do sujeito e põe em questão as relações fundamentais da pessoa com Deus, com as outras pessoas, e com a Criação” (n.2). Mas continua: “Se no mundo está presente e actua o “mistério da iniquidade” (2 Tess. 2,7), não se deve esquecer que o homem redimido tem em si energias suficientes para contrastá-lo. Criado à imagem de Deus e redimido por Cristo que “se uniu de certo modo a cada homem” (G.S. 22), este pode cooperar activamente para o triunfo do bem” (n.11). Esta visão realista e positiva fundamente a confiança pessoal e a esperança de que necessitamos para abordar e tratar o problema da paz, que “é o resultado de uma longa e árdua batalha”, “um bem a ser promovido com o bem” (Mensagem n.1). Todas as análise da realidade social e respectivas críticas convergem no reconhecimento da necessidade urgente de salvaguardar a dignidade humana, a liberdade e os direitos fundamentais de cada pessoa. Mas quando se apela à promoção de uma “obra educadora das consciências”, não se descobre nem se denuncia quem é responsável e tem o dever de fundar e institucionalizar uma tal obra. Aliás, logo se contestaria com a defesa da liberdade de consciência e se denunciaria a violação dessa liberdade. É que o mal estar que sentimos vem do círculo vicioso que nos enreda e do qual não nos temos libertado. Nem mesmo temos encontrado a lucidez corajosa para sujeitar interesses pessoais e particulares às exigências do bem comum, esquecendo assim os naturais compromissos de cada um e dispensando facilmente a responsabilidade da autoridade política. O Concílio Vaticano II recordou que “Deus destinou a terra e tudo o que nela existe ao uso de todos os homens e de todos os povos, de modo que os bens da criação afluam com equidade às mãos de todos segundo a regra da justiça, inseparável da caridade” (G.S. 69). Desta doutrina emanam implicações éticas, de entre as quais a “cidadania mundial”, que se deve reconhecer tanto a uma criança que foi concebida como a todos os membros da família humana que são alvo de atitudes e comportamentos da mais vasta escala. Condenar qualquer forma de racismo, tutelar as minorias, assistir os prófugos e refugiados, dar as mãos para socorrer todos os necessitados são atitudes éticas próprias de uma humanidade que reconhece a cidadania mundial de cada pessoa. Quando se está perante uma calamidade ou catástrofe como aquela que se abateu sobre o Sudeste Asiático, todos os apelos (à justiça, à caridade, à generosidade, à solidariedade…) não são senão o reconhecimento lógico e necessário desta cidadania que comporta uma exigência ética do uso correcto dos bens da terra. A nível interno nacional, a paz que desejamos exige que sejam comuns os respectivos bens públicos, como o sistema judicial, a defesa para a segurança, a rede de comunicações, as condições iguais de higiene, de desenvolvimento, de cultura, de nível de vida. Importa adequar às dimensões que temos a globalização que se vai identificando com as causas, as distâncias e as áreas de grande dimensão. Quando pensamos que em condições de miséria vive um bilião de seres humanos e que desta condição partilham tantos a quem chamamos próximos, mesmo que deles não nos aproximemos, havemos de compreender que a Igreja manifeste um amor preferencial pelos pobres (cf. Mensagem n.9) e repetidas vezes tenha manifestado preocupação e solicitude relativamente à dívida externa dos países pobres e à ajudas públicas para um desenvolvimento geral harmónico. Quando pensamos que há no mundo países cronicamente pobres (porventura marginalizados por monopólios de países que os exploram), e que são frequentemente destinatários de ajudas com carácter de assistência, compreendamos que para a realização da paz no mundo “o desenvolvimento ou se torna comum a todas as partes do mundo, ou então sofre um processo de regressão mesmo nas zonas caracterizadas por um constante progresso” (João Paulo II, cf. Mensagem n.10). Apesar das sombras que afectam a sociedade e que se estendem com apreensão nossa aos mais variados sectores e a qualquer latitude, é de esperança o Novo Ano, como é de esperança o terceiro milénio da era cristã que iniciámos com sentimentos e expressões públicas de esperança. Ao terminar o Grande Jubileu do Ano 2000 o Papa falava da “urgência de uma nova fantasia da caridade para difundir no mundo o Evangelho da Esperança” (Novo Mill. Ineunte, n.50). No Ano 2003 escrevia: “Na aurora deste Terceiro Milénio, todos nós, filhos da Igreja, somos convidados a progredir com renovado impulso na vida cristã. Como escrevi na Carta Apostólica ‘Novo Millenio Ineunte’ “não se trata de inventar um programa novo”. O programa já existe: é o mesmo de sempre, expresso no Evangelho e na tradição viva. Concentra-se em última análise no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para n’Ele viver a vida trinitária e com Ele transformar a História até à sua plenitude na Jerusalém Celeste. A concretização deste programa de um renovado impulso na vida cristã passa pela Eucaristia (Ecclesia de Eucharistia, n.60). Manifestando a vontade de dedicar um ano inteiramente ao Sacramento da Eucaristia, o Papa publicava em 7 de Outubro de 2004 uma nova Carta Apostólica “Mane nobiscum Domine” (Fica connosco, Senhor, pois a noite vai caindo) (cf. Lc. 24,29), inspirada no episódio bíblico sobre os discípulos de Emaús. Recordava que o Ano da Eucaristia se prolonga desde Outubro de 2004 até ao mesmo mês de 2005, e afirmava contar com a solicitude pessoal dos Pastores das Igrejas particulares ou dioceses. De facto, “Cristo está no centro não só da história da Igreja, mas também da história da humanidade” (n.6), e a Eucaristia é o mistério desta presença central na história e na vida dos homens. Sendo fonte da unidade da Igreja, é também a sua epifania ou manifestação, e a base da comunhão fraterna e do dever de partilha não só dos bens espirituais mas também dos materiais. E assim, também para os não crentes a Eucaristia tem o significado e o alcance que eles não atingem mas nós não podemos ignorar ou esconder. Antes devemos sentir a urgência de testemunhar e evangelizar, e testemunhar com mais vigor para evangelizar com maior confiança. Na nossa convicção profunda e na nossa fé cristã importa esclarecer e testemunhar que a Eucaristia que celebramos e que é sinal distintivo do nosso culto faz parte do nosso projecto de solidariedade com a humanidade inteira (independentemente da fé de cada irmão nosso) e é uma escola de paz para a sociedade que nos envolve e para o mundo todo. O projecto de Deus chama-se Igreja e a sua finalidade é a salvação universal. Assim se dava testemunho nos primórdios da Igreja. Para a celebração e vivência do Ano da Eucaristia, o Santo Padre pediu à Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos a oferta de sugestões e propostas que têm o carácter de subsídios e sugestões práticas para as Dioceses, Paróquias, Santuários, Comunidades Religiosas, Seminários, Associações, Movimentos e Confrarias. Sem deixar de recomendar a sua leitura aos responsáveis destas instituições, e tendo presente que algumas delas, sobretudo paróquias, já puseram em prática louváveis iniciativas, consultado o Rev.mo Cabido e ouvidos os Senhores Bispos auxiliares, propomos à Diocese os seguintes actos para este Ano da Eucaristia: Conferências quaresmais, na Sé, nos dias 3, 10 e 17 de Março, inspiradas na Eucaristia; Adoração do Santíssimo Sacramento em 5.ª Feira Santa desde o final da Celebração da Ceia do Senhor até às 23 horas; Canto das Primeiras Vésperas, durante o Tempo Pascal, na Sé, todos os Sábados às 17 horas; Tríduo preparatório da Festa do Corpo de Deus; Procissão do Corpo de Deus com especial solenidade; Encerramento do Ano Eucarístico, em 30 de Outubro, com Missa estacional às 11 horas, seguida de Adoração ao Santíssimo Sacramento até às 16 horas, terminado dom TE DEUM; Pedimos aos Rev.dos Párocos que promovam a celebração das Quarenta Horas nesta Cidade do Porto e nas outras cidades da Diocese; Esperamos que as várias procissões do Corpo de Deus na Diocese assumam quanto possível uma dimensão diocesana; Muito desejaríamos que, ao menos nesta cidade do Porto, fosse restaurada a prática organizada da adoração perpétua (laus perene) do Santíssimo Sacramento; E ordenamos que em cada paróquia da Diocese seja revigorada, restaurada ou instituída a Confraria do Santíssimo Sacramento, com Estatutos actualizados. Estas orientações não dispensam a consulta ao citado Documento da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, porquanto aí se encontram inúmeras sugestões que nos ajudarão a viver melhor o Ano da Eucaristia. Que seja um “Ano de Graça”, de bênção e de paz. Assim seja. Porto, Sé Catedral, 1 de Janeiro de 2005 D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto

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