Sofrer para encontrar Deus

É uma acusação recorrente, tanto dentro como fora da Igreja: o Cristianismo vive-se ou é percebido como uma religião do sofrimento, que procura a dor. A proximidade da celebração da Paixão de Cristo, momento culminante do ano litúrgico, multiplica as manifestações ligadas ao sofrimento do próprio Jesus e, porventura, intensifica essa dimensão ao ponto de não se perceber em todo o esplendor o significado redentor e libertador da Páscoa. A verdade é que o próprio Cristianismo permitiu que se passasse de uma concepção de paixão exclusivamente ligada ao sofrimento e ao suportar a dor para um conceito ligado à intensidade do sentimento. A Paixão de Cristo não corresponde a um conceito fechado ou negativo, mas tem uma leitura iminentemente positiva, como núcleo fundamental da fé que se centra no amor de Deus pela humanidade. A vida cristã ensina que o ideal de amar a Deus sobre todas as coisas e aos outros como a nós mesmos, não se consegue sem sofrimento, necessita do empenho pessoal, da luta e do esforço. Nesse contexto, aparecem algumas práticas ascéticas que pode parecer estranhas aos olhos da sociedade actual, mas que procuram envolver completamente corpo e alma nesta intenção. O Dossier que a Agência ECCLESIA apresenta esta semana inclui a visão de um filósofo sobre o Cristianismo e a sua relação com o sofrimento. João Rosa defende que “o sentido último do sofrimento só pode ser testemunhado na primeira pessoa”. Em reportagem, acompanhamos a visita do Cardeal-Patriarca de Lisboa ao Instituto Português de Oncologia, lugar de dramas vários, muitas vezes incompreensíveis para quem é atingido pela doença. D. José Policarpo deixou uma palavra de esperança e assumiu a necessidade de ouvir e estar ao lado de quem sofre. D. António Vitalino, Bispo de Beja, fala por seu lado de uma sociedade que prefere esconder o sofrimento. João Paulo II, o Papa que sofreu aos olhos de todo o mundo, escrevia na sua carta apostólica Salvifici Doloris que “para descobrir o sentido profundo do sofrimento, seguindo a Palavra de Deus revelada, é preciso abrir-se amplamente ao sujeito humano com as suas múltiplas potencialidades”. “O Amor é ainda a fonte mais plena para a resposta à pergunta acerca do sentido do sofrimento. Esta resposta foi dada por Deus ao homem na Cruz de Jesus Cristo”, referia o falecido Papa. Em entrevista à ECCLESIA, o Pe. José Nuno, Coordenador Nacional das Capelanias Hospitalares, afirma que a sociedade tem uma imagem falsa a respeito do que a Igreja ensina e vive sobre o sofrimento. Esta é uma dimensão igualmente presente na arte, chegando mesmo a chocar pela violência das imagens que representam a dor suportada por Cristo na sua Paixão. Na Bíblia, o Livro de Job – um clássico da literatura universal – é o expoente da reflexão sobre algumas das grandes questões que o homem se coloca nesta matéria: Qual o papel de Deus na vida e nos dramas do homem? Qual o sentido do sofrimento? Ainda hoje, o sofrimento, sobretudo o dos inocentes, é sentido como o drama mais inexplicável que atinge a humanidade. Para João Paulo II, nem o livro do Job apresenta uma resposta a este problema, que deve ser compreendido à luz do sofrimento de Jesus. “Cada um dos homens é também chamado a participar naquele sofrimento, por meio do qual se realizou a Redenção; é chamado a participar naquele sofrimento, por meio do qual foi redimido também todo o sofrimento humano. Realizando a Redenção mediante o sofrimento, Cristo elevou ao mesmo tempo o sofrimento humano ao nível de Redenção. Por isso, todos os homens, com o seu sofrimento, se podem tornar também participantes do sofrimento redentor de Cristo”, escreveu. Maurice Blondel, filósofo francês, dizia do sofrimento que este “impede-nos a aclimatação a este mundo e deixa em nós um mal-estar que não mais se apaga. Porque não sendo a adaptação mais do que um conseguido equilíbrio no restrito meio em que vivemos para fora de nós, é sempre uma novidade a afirmação que nos lembra que a dor nos acompanha aonde quer que vamos”. “Tal como ninguém pode amar Deus sem sofrer, ninguém vê Deus sem morrer. Nada vai até ele que não tenha ressuscitado primeiro; porque nenhuma vontade é boa se não soube sair de si própria para deixar o campo aberto à total invasão da sua”, atirava. Depois de tudo isto, percebe-se melhor que a Semana Santa, de modo especial, está ligada a um mundo de sentimentos e de tradições muito particulares, que procuram apresentar o mistério da redenção. Os grandes autores da história da música, por exemplo, não ficaram à margem dos momentos litúrgicos destes dias, como se pode ver nas histórias sacras de Giacomo Carisimi ou nas histórias da paixão de Heinrich Schütz (segundo São Mateus ou segundo São Marcos). Para estes dias, muitas são as interpretações musicais da vida de Cristo, as Paixões, com base nos Evangelhos. Inesgotável é também o mundo do Gregoriano, com os seus cantos da Semana Santa e Páscoa. Para fechar este ciclo, quando as trevas ficam para trás, caberá a Missa Solene de Beethoven, provavelmente a maior afirmação de fé que algum compositor escreveu alguma vez na história. Bento XVI, aliás, considera-a “um tocante testemunho de fé”, defendendo que a obra mostra que “quando o homem está diante de Deus, só a palavra não basta”. Um mistério Na sua carta apostólica Salvifici Doloris, João Paulo II escrevia que o sofrimento humano suscita compaixão, inspira também respeito e, a seu modo, intimida”. “Nele, efectivamente, está contida a grandeza de um mistério específico. Este respeito particular por todo e qualquer sofrimento humano deve ficar assente no princípio de quanto vai ser explanado a seguir, que promana da necessidade mais profunda do coração, bem como de um imperativo da fé. Estes dois motivos parecem aproximar-se particularmente um do outro e unir-se entre si, quanto ao tema do sofrimento: a necessidade do coração impõe-nos vencer a timidez; e o imperativo da fé — formulado, por exemplo, nas palavras de São Paulo citadas no início — proporciona o conteúdo, em nome e em virtude da qual nós ousamos tocar naquilo que parece ser tão intangível em cada um dos homens; efectivamente, o homem no seu sofrimento permanece um mistério intangível”. 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