Sociedade: «Só pela educação é que vamos mudar o mundo» – Bárbara Wong

Jornalista diz que alertas do Papa na mensagem para o Dia Mundial da Paz são “certeiros” e realistas

Fotos: Miguel Manso/PÚBLICO

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

Acompanhas há vários anos a área da educação, o que já te levou a escrever alguns livros sobre esta temática. O que é que mais te surpreendeu nesta mensagem do Papa? Como é que vês esta sua insistência na educação e na instrução como “motores da Paz”?

Na verdade não é surpreendente o que o Papa nos vem dizer, insistir muito na importância de, a nível mundial, os orçamentos não estarem tão voltados para as despesas militares. O Papa nesta mensagem diz-nos que aumentaram as despesas militares, ultrapassando o nível registado no termo da Guerra Fria, e a opção claramente para o Papa devia ser a instrução e a educação.

Acho curioso o Papa fazer esta distinção entre instrução e educação, porque muitas vezes estamos muito focados – sobretudo os professores – na instrução, no ensinar a matéria, quando a escola deve ser muito mais do que isso, deve ser também a educação e uma educação global. O Papa está efetivamente preocupado com isto porque sabemos que só através da educação é que “o mundo pula e avança”, como dizia o poeta.

 

Em Portugal a educação também é vista como uma despesa e não como um investimento, como refere o Papa?

Não, não tenho essa ideia. Os professores têm muito essa crítica a fazer em relação ao Ministério da Educação, que se prende sobretudo com salários e carreiras. Mas, o que é facto é que tem havido um investimento na educação, sobretudo em formas diferentes de estar na escola. A escola está cada vez mais aberta à comunidade e tem havido uma série de programas que trazem a comunidade para dentro da escola. Ou seja, a questão do Papa Francisco fazer a distinção entre instrução e educação, não podemos só estar na escola a dar matéria, porque infelizmente as crianças chegam à escola com o muitos défices…

As condições socioeconómicas dos alunos são um fator com um peso relevante no insucesso escolar, e desse ponto de vista a escola falha no seu papel de elevador social. A pandemia veio agravar estas desigualdades?

Sem dúvida. Isso foi estudado, e veio de facto agravar, e as crianças com menos acesso à Internet em casa, não tendo computadores, os portáteis, todas essas coisas, foi muito mais complicado para essas crianças e para esses pais… até no fazermos os isolamentos da pandemia, é completamente diferente uma casa com duas casas de banho ou uma casa só com uma casa de banho! Na educação e nas casas dos portugueses aconteceu exatamente isso: nas famílias com menos possibilidades houve um aumentar das desigualdades e vai continuar durante esta pandemia, porque os miúdos podem ter um Smartphone, mas não sabem como trabalhar com ele, não sabem como pôr o Smartphone ao serviço da educação, ao serviço daquilo que têm de aprender.

E nesta questão dos Smartphones não interessa se somos ricos ou somos pobres, porque o uso que é feito dos telefones é um uso sobretudo recreativo e não pedagógico…

O Papa também lembra na mensagem que uma das consequências da pandemia foram as aulas à distância, que em muitos casos causaram “retrocesso na aprendizagem”. Isso também aconteceu em Portugal?

Também aconteceu em Portugal, porque ninguém estava preparado para isto. É preciso ver que ainda há muitos professores que têm uma enorme dificuldade em usar as novas tecnologias dentro da sala de aula, quanto mais à distância!

Temos de fazer um elogio muito grande aos professores, porque foram obrigados a atualizar-se muito rapidamente de maneira a poder continuar a dar aulas à distância. Esse trabalho foi feito pelas escolas e pelos professores. Não fizeram todos, como é óbvio, mas a maior parte dos professores fez esse trabalho. Mas, as aulas à distância não vieram melhorar em nada, como nada do que é feito à distância, na verdade. Nós também estivemos a trabalhar à distância, e o que é facto é que precisamos do outro, até para termos ideias e para desenvolvermos novas histórias.

 

Trabalhar e estudar à distância empobrece?

Empobrece, sem dúvida.

 

Interligado com a educação está o “diálogo entre gerações”, que o Papa nesta mensagem considera fundamental no atual contexto pandémico. Diz mesmo que “as crises contemporâneas” revelam a “urgência” de uma aliança entre os idosos, que considera “guardiões da memória”, e os jovens, que são aqueles que “fazem avançar a história”. Em Portugal como é que está, em tua opinião, este diálogo entre gerações? A pandemia fez mudar alguma coisa?

A pandemia no início veio trazer ao de cima o melhor de nós. Dizíamos todos “vai ficar tudo bem”, era o lema. E, de facto, houve uma série de boas práticas e bons exemplos de jovens que se juntaram nos seus bairros para ajudar os mais velhos, porque não podiam sair nem ir às compras, e isso foi um apoio e foi um exemplo muito bom. Com o passar do tempo isso para uns foi deixando de ser necessário, para outros permaneceu.

Acho que no início estivemos todos muito preocupados uns com os outros, mas depois também nos voltámos outra vez para dentro.

O que eu senti, e que tenho comentado com outras pessoas, até com entrevistados, é que parece que ficámos menos empáticos quando saímos das quarentenas, confinamentos e isolamentos, parece que temos menos paciência para o outro. De facto, temos de refletir sobre isso e fazer uma mudança na nossa vida, porque nós precisamos do outro para viver, temos de fazer essa mudança.

Voltando ao tema da educação: em outubro 2020 o Papa lançou o ‘Pacto Educativo Global’, com investigadores e professores de várias áreas. É um trabalho que vem defendendo há muito, de que a educação é a “semente da esperança”. Esse Pacto procura uma sensibilização para a justiça, solidariedade, para a ecologia integral e para o combate à cultura do descarte. Como jornalista que acompanhas esta área, como é que vês esta iniciativa de um Papa lançar um ‘Pacto Educativo Global’?

Como dizia no início, esta preocupação do Papa não é uma preocupação nova porque – como também referias há pouco – a questão do elevador social é muito importante. E o  próprio Papa nesta mensagem faz essa referência, que só investindo na instrução e educação, que esta é a chave-mestra para podermos ocupar um lugar no mundo do trabalho, é um degrau, uma etapa para depois podermos viver dignamente.

Esta é uma preocupação que tem de ser nossa, também da Igreja, até na forma como educamos, nas catequeses que fazemos, na formação que damos no interior da Igreja às crianças e aos jovens.

 

Este pacto tem uma ideia de fundo que é envolver toda a gente: famílias, comunidades, escolas e universidades, instituições, religiões e governantes. É um objetivo demasiado utópico, ou vale a pena apostar nisto?

Eu acho que nós somos feitos de utopia, também. É um desafio muito positivo. Também achei muito curioso, nesta mensagem, logo no início, esta questão dos caminhos para a paz: “Como nos tempos dos antigos profetas, continua também hoje a elevar-se o clamor dos pobres e da terra para implorar justiça e paz”. É desde os antigos profetas que andamos a clamar por justiça e por paz.

Esta iniciativa do Papa, o Pacto Educativo, faz todo o sentido e vem de encontro a este desejo de um mundo melhor.

 

Há uma linha de coerência nas intervenções, encíclicas e gestos do Papa Francisco nos alertas e nas propostas que faz. Em Portugal, estas mensagens têm passado ao lado do poder político?

Estes desafios que o Papa faz, sim, de alguma maneira. Ele tem uma grande importância para nós, enquanto católicos, mas é visto como mais um chefe de Estado, ainda por cima do Vaticano, um Estado dentro de outro Estado. Portanto, muitas vezes são palavras vistas com agrado, com boas intenções, mas que acabam depois, em termos práticos, por não ter a importância que deveriam.

 

Como jornalista pensas que as intervenções do Papa têm tido eco suficiente na comunicação social? Ou só se fala de Igreja quando há polémica?

Infelizmente, andamos sempre atrás do clickbait. Quer dizer que nem sempre olhamos para estas mensagens como pertinentes. No fundo, é aquela velha máxima do “homem que mordeu o cão”, para a comunicação social, em termos gerais, é sempre mais interessante escrever sobre os escândalos dentro da Igreja do que sobre boas práticas que se façam, embora se escreva.

Escrevemos sobre a mensagem do Papa no Natal, sobre a mensagem do Ano Novo, mas depois ao longo do ano é preciso que o Papa diga qualquer coisa muito fora do comum para nos chamar a atenção…

 

Ou faça. Ir a Lesbos não é para todos.

Ou faça.

 

Um compromisso concreto, que já está também em Portugal, é o projeto das ‘Scholas Occurrentes’, iniciativa que visa criar uma rede de escolas para a inclusão, com recurso ao desporto e à arte. Uma edução global, preocupação que Francisco já traz dos tempos de Buenos Aires. Surpreende este empenho pessoal de um Papa no setor da Educação?

Eu penso que não, também porque é a minha área. Como o Papa diz, a Educação é um fator de liberdade, de responsabilidade e de desenvolvimento. Está escrito na mensagem. Só pela Educação é que nós vamos mudar o mundo, vamos ter melhores cidadãos, melhores pessoas.

A Educação não é só ensinar muita matemática e ter 20 no final do ano, entrar no curso. É o ser, é muito importante e é isso que nos vai mudar.

 

O terceiro caminho que o Papa propõe para se construir a paz é o trabalho. Francisco lembra que os efeitos da pandemia foram devastadores, com a falência de muitas atividades económicas, aumento do desemprego e agravamento da precariedade, e diz que é urgente “promover condições laborais decentes e dignas, orientadas para o bem comum e a salvaguarda da criação”. É um alerta certeiro?

Muito certeiro, porque o que sentimos – e o que esta pandemia veio trazer – foi mais fragilidade no mercado de trabalho. É uma chamada de atenção, sobretudo às empresas e também aos governos, para este compromisso de que não se vise apenas o lucro. O Papa também fala disso. O lucro não pode ser o único critério-guia, as empresas devem respeitar também os direitos humanos, estar mais cientes do seu papel social.

 

Estamos a começar um ano que, dentro de pouco tempo, vai ter eleições legislativas. Esta mensagem do Papa deveria ser lida com atenção por todos os que têm poder de decisão, a começar pelos políticos que se apresentam com ideários católicos, cristãos?

Há dimensões que ficam esquecidas e isso é muito curioso. O Papa lembra sempre a Doutrina Social da Igreja, que não é uma coisa nova, e eu acho sempre curioso que algumas pessoas se esqueçam muito dos trabalhadores.

Francisco fala também dos trabalhadores migrantes, que é outra preocupação. Recentemente, houve uma entrevista que me deixou um bocadinho angustiada, do presidente da Associação de Hotelaria de Portugal, em que se dizia que a opção era ir buscar pessoas de países migrantes, mais frágeis, porque é mais fácil do que dar salários condignos aos nacionais. Enquanto houver empresários que pensam assim, é difícil olhar para o trabalho e respeitar os direitos humanos, como pede o Papa.

 

É uma área em que os jornalistas devem estar atentos. Reparo na frequência com que, hoje em dia, em vez de trabalhadores se usa a palavra colaborador, o que não é a mesma coisa…

Não, nós não colaboramos, estamos a trabalhar efetivamente.

 

Esta mensagem do Papa ajuda a sublinhar esses alertas que seria importante fazer, para quem tem poder de decisão?

Sim, no fundo é o que o Papa diz sobre a necessidade de fazer crescer uma renovada responsabilidade social, para que não estejamos só focados no lucro.

 

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Agência ECCLESIA

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