Sociedade/Deficiência: «Temos ótimas leis de acessibilidade. Falta a prática» – Carmo Diniz

As barreiras arquitetónicas são um verdadeiro obstáculo ao acolhimento dos deficientes na Igreja. A coordenadora do Serviço Pastoral a Pessoas com Deficiência do Patriarcado de Lisboa fala do caminho que tem vindo a ser trilhado para a integração de quem tem debilidade física ou mental

Foto: RR/Miguel Rato

 

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

A criação do Serviço Pastoral a Pessoas com Deficiência no Patriarcado Lisboa foi um grande passo em frente. no sentido do reconhecimento que esta é uma realidade de que a Igreja não pode alhear-se, pelo contrário, tem mesmo de dar o exemplo e promover a inclusão?

Sim, o serviço foi criado no final de 2017, eu ainda não fazia parte do serviço, juntei-me pouco mais tarde, mas foi um sinal muito forte da vontade da Igreja de incluir as pessoas com deficiência.

 

Um dos princípios base para a existência deste serviço é o de que a Igreja precisa de todos, deve contar com todos e ter lugar para todos. Esta inclusão já se sente mais?

Nota-se uma diferença muito grande. Nos últimos anos tem havido uma evolução muito grande na vontade da inclusão e no reconhecimento de que nós como comunidade só estamos completos quando estiverem todos. Hoje penso que se sente, quer na sociedade, e graças a Deus na Igreja também, que precisamos mesmo, mesmo de todos.

 

Tem havido iniciativas ao longo dos anos, desde que o serviço foi criado. Uma delas foi a criação do guia ‘uma Igreja para todos’, para o acolhimento das pessoas com deficiência. Foi útil para as paróquias?

Foi e continua a ser muito útil. O Guia não foi uma ideia original do serviço em Lisboa, foi criado na arquidiocese de Madrid por um conjunto de pessoas com vários tipos de deficiência, a quem foi perguntado como é que eles desejam ser tratados e o que é que a Igreja pode fazer – neste caso é em contexto paroquial, o que é que a paróquia tem para oferecer e pode fazer. Foi dito e escrito na primeira pessoa, como é que querem ser tratados, e chama a atenção para determinados pormenores. Porque uma pessoa surda é uma pessoa surda, não vale a pena falar mais alto, porque ela não vai ouvir. Uma pessoa cega não se apercebe muitas vezes dos movimentos, e temos de avisar o que é que está a acontecer à volta, para ela se sentir tranquila e confortável, e podermos comunicar, sempre partindo do princípio que o mais fácil é perguntar. Não é só na deficiência, é em qualquer situação: quando não sabemos como reagir, o mais fácil é perguntar ‘o que é que precisa?’. Na deficiência devia-se aplicar muito mais, porque às vezes estranhamos, afastamo-nos, em vez de perguntar ‘o que é que é preciso?’ ou ‘como é que eu posso ajudar?’.

 

Estranhamos, e às vezes desconhecemos em absoluto…

Às vezes desconhecemos, e apesar de haver uma grande evolução – e eu acredito que tem havido uma grande evolução, quer na sociedade, quer na Igreja -, há aspetos que ainda não estão presentes no nosso consciente. Um deles tem a ver com a utilização das cadeiras de rodas.

 

A questão das barreiras arquitetónicas é aquela que salta logo, à primeira vista…

Mas, antes de falar nas acessibilidades, a consciência de que a cadeira de rodas é pertença das pessoas, e não é um objeto disponível para ser utilizado, é uma consciência que não existe. Uma cadeira de rodas é um objeto pessoal que ninguém tem o direito de mexer, de empurrar, de tocar sequer, sem pedir autorização, da mesma maneira que eu não mexo nos pertences de outra pessoa que está ao pé de mim. É mesmo ofensivo, e não existe essa consciência.

Muitas vezes quando estamos a tratar do tema das acessibilidades, os comentários das pessoas são ‘mas, nós aqui não temos muitas pessoas com dificuldades de mobilidade’, ou ‘de vez em quando aparece uma cadeira de rodas, mas nós damos um jeitinho’. Não se dá um jeitinho! Isso já está consagrado na Carta dos Direitos das Pessoas com Deficiência, as condições têm de estar lá antes das pessoas. Não se dá ‘um jeitinho’ na cadeira de rodas, é ofensivo. É como mexerem na minha carteira, é um objeto pessoal.

 

Foto: RR/Miguel Rato

Antes de passarmos à parte arquitetónica, há uma questão de vivência da comunidade, que é o acolhimento na catequese, nas Eucaristias e noutras celebrações. Já há esta preocupação de tornar a participação aberta a todos e integrar todos nessa participação?

Já há alguma vontade, sim. Mas ainda não é plena e encontra uma barreira muito grande, que é o não saber o que fazer. Às vezes acontece, quando aparece uma criança na catequese com alguma necessidade especial, a catequista fica aflita, não sabe o que fazer, e com alguma facilidade consegue dizer ‘eu não vou aceitar esta pessoa na catequese’. Mas, isso é rejeitar uma pessoa da Igreja, não se pode fazer! Percebo a dificuldade, e há casos mesmo complicados, que precisam de uma atenção especial, de um planeamento e que dão mais trabalho, mas dizer ‘não podemos receber esta pessoa na Igreja’ quase que devia ser devia ser proibido! Mas entende-se, quando do outro lado está uma pessoa com muita vontade, que é a catequista, que ajuda na Igreja voluntariamente, e de repente se vê perante um caso com o qual não consegue lidar… Nesse sentido, a informação, o conhecermos as tipologias da deficiência, sabermos o que é que existe de materiais e soluções , é muito importante. O conhecimento ajuda à inclusão.

 

Insistindo ainda na questão dos acessos. Foi das dificuldades que sentiu, da sua experiência com o seu filho mais novo, deficiente profundo, que foi criado em 2018 o projeto ‘Rampas para Jesus’. Que balanço faz desse projeto?

Deus queira que o projeto continue muito tempo. Foi uma reflexão que teve origem no acesso do nosso filho Bernardo à Igreja, aos Sacramentos, à catequese. Foi quando ele chegou à idade de começar a catequese, já a pensar na primeira comunhão, que fomos procurar e falei com várias pessoas sobre como é que a Igreja olha para o percurso de uma pessoa com deficiência profunda, e sentimos a necessidade de juntar um conjunto de pessoas para pensar o que é que é uma Igreja inclusiva, para que é que serve e como é que se faz – são estas as três grandes perguntas do documento das ‘Rampas para Jesus’.

Esse projeto neste momento foi integrado como proposta paroquial para a Diocese de Lisboa, tem estas três grandes perguntas, sugestões e alguns recursos, para que cada Paróquia possa pensar, no seu contexto, o que é que faz sentido. Tem muito material. Não está pronto a utilizar, mas está pronto a desafiar à reflexão.

A questão da acessibilidade vem na sequência, mas parece-me que todos nós já experimentámos o que é andar nas ruas do nosso país com cadeiras de bebé. Se com uma cadeira de bebé – que é levezinha, porque os bebés são por natureza mais leves do que as pessoas mais velhas – temos dificuldade em andar na calçada, subir passeios, contornar veículos mal estacionados, percebemos… se as pessoas não chegam fisicamente aos lugares, mais dificilmente chegarão aos conteúdos e ao coração da Igreja, portanto, é preciso verificar as acessibilidades físicas.

 

Foi por isso que em Cascais lançaram o projeto da ‘Vigararia Acessível’, em que um conjunto de paróquias fez o mapeamento dos espaços para ajudar as pessoas com mobilidade reduzida a saber onde é que se podem dirigir sem encontrar obstáculos. Foi difícil fazer este trabalho? Está a ser alargado?

Tivemos muitas ajudas e colaborações que tornaram este projeto, do meu ponto de vista pessoal, mais interessante e com mais projeção… Mas, ainda sobre o projeto ‘Rampas para Jesus’, resultou num grupo de pessoas que tem um representante em cada paróquia, pessoas que querem promover a inclusão e que se reúnem mensalmente para partilhar as suas ações. Uma delas pode ser a verificação das acessibilidades.

No Serviço Pastoral a Pessoas com Deficiência tomámos a iniciativa de começar a fazer o projeto da ‘Vigararia Acessível’, para mapear o que já é acessível. Há edifícios e estruturas que já são acessíveis, há outras que não são e podem ser, e outras que não são e não podem ser. Nós queremos sinalizar o que é acessível para que a pessoa possa ir tranquilamente a uma paróquia e saber que vai poder frequentar uma celebração, ir ao cartório, ir à capela mortuária ou frequentar a catequese. Isto em Cascais, e estamos a terminar Oeiras.

Pedimos a colaboração da Câmara de Cascais, que prontamente nos ajudou, e tivemos como parceiros a Associação Salvador e a Associação Novamente. Tivemos voluntários das duas associações, um deles é arquiteto e foi de uma grande ajuda.

Tivemos também a colaboração técnica da Associação Accessible Portugal, que trabalha no Turismo Inclusivo e tem um questionário a ser preenchido do ponto de vista do utilizador, para todas as acessibilidades, não só físicas. Pegámos no questionário, no manual, e com o apoio técnico da presidente da Associação, Ana Garcia, fomos visitar as igrejas paroquiais com este desejo de mapear o que é acessível. O objetivo é garantir que em cada paróquia existe uma igreja acessível, e que os serviços principais da paróquia também são acessíveis. Não conseguimos visitar todas as igrejas da vigararia de Cascais, mas visitámos as paroquiais, e quando as paroquiais não eram acessíveis procurámos, dentro dessa paróquia, sinalizar uma que fosse acessível nestas quatro dimensões: local de culto – por causa das celebrações -, cartório, capelas mortuárias e salas de catequese.

 

Foto: RR/Miguel Rato

A ideia é alargar isso a outras vigararias?

A ideia é alargar vigararia a vigararia. Se voluntariamente as próprias vigararias se quiserem organizar e fazer, temos todos os mecanismos para isso, porque existe já uma experiência acumulada, existe a ferramenta técnica de avaliação.

Terminámos o projeto de Cascais e mapeámos. Esse mapa está disponível no Patriarcado de Lisboa, na aplicação das Missas de Lisboa, e também no separador dedicado à Pastoral da Deficiência. Quer a Associação Salvador, quer a Associação Novamente quiseram continuar connosco neste mapeamento, já fizemos as visitas todas na vigararia de Oeiras, falta-nos o relatório e seguir para a próxima vigararia.

 

Estamos a falar de vários tipos de acessibilidade. Há uma especificamente que desperta a atenção, a questão das pessoas com deficiência auditiva. Sabemos que o Santuário de Fátima, por exemplo, ou a Basílica dos Congregados, em Braga, promovem celebrações com interpretação em Língua Gestual Portuguesa. É importante que a Igreja saiba dar o exemplo, a este nível?

Era muito importante. Era mesmo muito importante. O Santuário de Fátima está a fazer um trabalho extraordinário…

 

Até pela visibilidade que depois tem, mesmo para quem nunca tinha pensado nisso…

Sim, pensar que há pessoas que compreendem de outra maneira e estão aqui ao meu lado, a rezar…

A nível nacional, o Santuário de Fátima está na liderança destas iniciativas e tem um conjunto de intérpretes, em formação contínua, até para desenvolver gestos que são próprios da liturgia, da Bíblia. A Língua Gestual Portuguesa (LGP) e a língua portuguesa funcionam de forma diferente, têm origens diferentes, o que faz com que não seja fácil a tradução das palavras.

 

Nem sempre é fácil encontrar a palavra certa para traduzir a Bíblia, imaginamos interpretar conceitos teológicas ou bíblicos em gestos…

Sim, e em Fátima começa-se a trabalhar neste âmbito, no desenvolvimento de gestos pelas pessoas surdas. É sempre a própria pessoa que compreende o conceito e desenvolve o gesto, não é imposto.

Em Lisboa, temos uma única paróquia com intérpretes de LGP, que faz a interpretação da Missa de domingo, às 10h00. É a Paróquia de Telheiras, na igreja de Nossa Senhora da Porta do Céu. Foi o prior que tomou a iniciativa, contratou os intérpretes, porque se viu confrontado com o caso de uma família que tinha uma criança surda. E tem esta vontade de poder desenvolver e poder ter uma comunidade de pessoas surdas, que façam um percurso na fé, de catequese.

 

Às vezes basta esse primeiro passo, numa paróquia, para depois se ir replicando…

Sim, Braga é um exemplo. Também começou por tomar a iniciativa de ter intérpretes contratados, o grupo chegou, pediu catequese e tem feito um percurso muito bonito. Aliás, antes do confinamento, foram crismadas 15 pessoas, que continuam a catequese de adultos e a fazer o seu caminho.

 

Tem havido este esforço, por parte da Igreja, de se ir adaptando…

Deixe-me só dizer que, neste momento, é muito complicado para um surdo confessar-se, sem recurso à escrita ou a um intérprete…

 

Há casos, a nível internacional, em que os sacerdotes têm aprendido a Língua Gestual, porque aqui um intérprete é inviável, em termos do Sacramento…

É um recurso, mas é complexo, sim…

 

Falamos também das situações de deficiência intelectual, sobretudo quando ela é profunda. Há sensibilidade para esse trabalho? É possível fazer um acompanhamento espiritual?

É possível. O meu filho Bernardo confessa-se, não fala, e tem catequese. É possível e é recomendável. Se a Igreja está preparada? Como sociedade não sei se estamos preparados, assim de repente, para receber uma pessoa com deficiência intelectual e responder imediatamente. Como não é comum, pode acontecer também não ser fácil a reação…

 

A tradição católica, aliás, sempre valorizou muito a questão do uso da razão e nestas situações isso é muito questionado, porque não estamos familiarizados… Mas percebe-se que há um caminho a fazer?

É um caminho a fazer e a própria Igreja tem feito um caminho grande. Se formos ver o novo Diretório para a Catequese, há quatro pontos claríssimos, pedindo que as pessoas com deficiência sejam catequistas. Já o Papa Bento XVI dizia que não se deve negar os sacramentos a uma pessoa com deficiência.

Se formos ver o tema da razão e da vontade, estamos todos juntos na fé e estamos no mesmo barco, acompanhados. É na comunhão dos Santos que resolvemos essa questão da vontade.

 

O próprio Papa Francisco, em 2020, insistiu nessa ideia…

Volta a insistir. Da nossa reflexão pessoal, que também vem destas leituras, quando é para o nosso filho Bernardo se confessar, ele não vai sozinho. Não vai em sentido físico, porque, de facto, sozinho não vai, mas também não vai sozinho à Confissão, à Comunhão: somos nós que o levamos. Se eu me responsabilizo e levo o meu filho a comungar, tenho de estar eu própria preparada, disponível para isso. Na Confissão, o pensamento é o mesmo, foi combinado.

Nestes casos, da deficiência intelectual, tem de haver proximidade. O Papa Francisco fala disso, tambéma proximidade faz toda a diferença. Conhecer os casos, conhecer a família, perceber as necessidades, e depois aprender a lidar.

Voltamos ao princípio: perguntando o que é preciso, nós também sabemos adequar a nossa resposta.

 

Faz diferença, na vida destas crianças e destes jovens, ter este acompanhamento?

Faz toda a diferença. Para quem tem fé, faz toda a diferença, não tenho dúvidas nenhumas.

 

Foto: RR/Miguel Rato

Olhando para a sociedade, em geral, o que faz mais falta a nível da sensibilização, da ação, dos discursos, para que a questão da deficiência tenha a atenção que merece?

Vou ser muito direta: foi feito um grande caminho de tomada de consciência, na sociedade. Hoje em dia, temos algum pudor em recusar a deficiência, temos a consciência de que não se afastam as pessoas, elas não devem estar num sítio à parte, temos ótimas leis de acessibilidade. Temos um pensamento bastante evoluído, em relação ao tema da inclusão. Falta a prática.

As pessoas chegam e não têm uma rampa para entrar, ou não têm um elevador, porque foi mais caro, durante as obras; ou não têm intérpretes, porque se parte do princípio de que as pessoas surdas não estão lá… Há sempre alguma desculpa, alguma razão, alguma justificação para não se fazer. Nós já temos o pensamento, falta-nos a prática. Falta muito a prática, sermos consequentes.

Também já citei, há pouco, sobre os Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência, que as condições têm de estar antes das pessoas: quando vou organizar um evento, quando estou a planear um edifício, já tenho as leis que me obrigam a garantir as acessibilidades – e não estamos só nas acessibilidades físicas, porque há a comunicação, a compreensão. É preciso levar isso mesmo à prática, porque senão ficamos parados, as pessoas não aparecem e dizemos: “ah, mas não há muitas pessoas”. Claro, elas estão em casa, já têm a experiência frustrada de ter tentado participar e não o conseguir fazer. Temos muito, muito para passar à prática.

Acho que neste pensamento falta um pormenor que pode fazer toda a diferença, pela positiva: é melhor estarmos todos. Nós estamos melhor se estivermos mesmo todos. Não é só uma questão de direitos, nem estamos aqui em movimentos ativistas: nós precisamos das pessoas com deficiência, ficamos melhor se estivermos todos juntos, e não é só cuidar das necessidades básicas, é “viver com”. Viver com as pessoas, todas.

 

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