Sacramentum Caritatis (continuação)

<<< Anterior Participação através dos meios de comunicação 57. Devido ao progresso admirável dos meios de comunicação, nos últimos decénios a palavra «participação» adquiriu um significado mais amplo do que no passado; com satisfação, todos reconhecemos que estes instrumentos oferecem novas possibilidades inclusivamente quanto à celebração eucarística.176 Isto requer dos agentes pastorais do sector uma preparação específica e um vivo sentido de responsabilidade; com efeito, a Santa Missa transmitida na televisão ganha inevitavelmente um certo carácter de exemplaridade; daí o dever de prestar particular atenção a que a celebração, além de se realizar em lugares dignos e bem preparados, respeite as normas litúrgicas. Enfim, quanto ao valor desta participação na Santa Missa pelos meios de comunicação, quem assiste a tais transmissões deve saber que, em condições normais, não cumpre o preceito dominical; de facto, a linguagem da imagem representa a realidade, mas não a reproduz em si mesma.177 Se é muito louvável que idosos e doentes participem na Santa Missa festiva, através das transmissões radiotelevisivas, o mesmo não se pode dizer de quem quisesse, por meio de tais transmissões, dispensar-se de ir à igreja tomar parte na celebração eucarística na assembleia da Igreja viva. Participação activa dos doentes 58. Considerando a condição de quantos por motivos de saúde ou idade não podem ir aos lugares de culto, quero chamar a atenção de toda a comunidade eclesial para a necessidade pastoral de garantir a assistência espiritual aos doentes, quer estejam nas próprias casas quer se encontrem no hospital. Diversas vezes, no Sínodo dos Bispos, se aludiu à sua condição; é preciso providenciar para que estes nossos irmãos e irmãs possam receber, com frequência, a comunhão sacramental; revigorando assim a sua relação com Cristo crucificado e ressuscitado, poderão sentir a própria existência inserida plenamente na vida e missão da Igreja, por meio da oferta do seu sofrimento em união com o sacrifício de Nosso Senhor. Uma particular atenção há-de ser reservada aos deficientes: sempre que a sua condição o permita, a comunidade cristã deve facilitar a sua participação na celebração no lugar de culto; a propósito, procure-se remover, nos edifícios sagrados, eventuais obstáculos arquitectónicos que impeçam o seu acesso aos deficientes. Enfim, seja garantida também a comunhão eucarística, na medida do possível, aos deficientes mentais, baptizados e crismados: eles recebem a Eucaristia na fé também da família ou da comunidade que os acompanha.178 A solicitude pelos presos 59. A tradição espiritual da Igreja, na esteira duma concreta afirmação de Cristo (Mt 25,36), individuou na visita aos presos uma das obras de misericórdia corporais. Aqueles que se encontram nesta situação têm particularmente necessidade de ser visitados pelo próprio Senhor, no sacramento da Eucaristia; experimentar a solidariedade da comunidade eclesial, participar na Eucaristia e receber a sagrada comunhão num período da vida tão especial e doloroso pode seguramente contribuir para a qualidade do seu caminho de fé e favorecer a plena recuperação social da pessoa. Interpretando votos formulados na assembleia sinodal, peço às dioceses para providenciarem que haja, na medida do possível, um conveniente investimento de forças na actividade pastoral dedicada ao cuidado espiritual dos presos.179 Os migrantes e a participação na Eucaristia 60. Ao abordar o problema das pessoas que, por motivos vários, são obrigadas a deixar a sua terra, o Sínodo manifestou particular gratidão a quantos vivem empenhados no cuidado pastoral dos migrantes. Neste contexto, uma atenção específica deve ser dada aos migrantes membros das Igrejas Católicas Orientais, já que, à separação da própria casa, vem juntar-se a dificuldade de não poderem participar na liturgia eucarística, segundo o próprio rito a que pertencem; por isso, onde for possível, seja-lhes concedido usufruir da assistência de sacerdotes do seu rito. Em todo o caso, peço aos bispos que acolham estes irmãos na caridade de Cristo. O encontro entre fiéis de rito diverso pode tornar-se também ocasião de mútuo enriquecimento: penso de modo particular no benefício que pode resultar, sobretudo para o clero, do conhecimento das diversas tradições.180 As grandes concelebrações 61. A Assembleia sinodal deteve-se a analisar a qualidade da participação nas grandes celebrações que têm lugar em circunstâncias particulares e nas quais se encontram, para além dum grande número de fiéis, também muitos sacerdotes concelebrantes.181 É fácil, por um lado, reconhecer o valor destes momentos, especialmente quando preside o Bispo, rodeado do seu presbitério e dos diáconos; mas, por outro, em tais ocasiões podem verificar-se problemas quanto à expressão sensível da unidade do presbitério, especialmente na Oração Eucarística, e quanto à distribuição da sagrada comunhão. Deve-se evitar que estas grandes concelebrações criem dispersão; providencie-se a isto mesmo por meio de adequados instrumentos de coordenação, e organizando o lugar de culto de tal modo que permita aos presbíteros e aos fiéis uma plena e real participação. Entretanto, é preciso ter presente que se trata de concelebrações com índole excepcional e limitadas a situações extraordinárias. A língua latina 62. O que acabo de afirmar não deve, porém, ofuscar o valor destas grandes liturgias; penso neste momento, em particular, nas celebrações que têm lugar durante encontros internacionais, cada vez mais frequentes hoje, e que devem justamente ser valorizadas. A fim de exprimir melhor a unidade e a universalidade da Igreja, quero recomendar o que foi sugerido pelo Sínodo dos Bispos, em sintonia com as directrizes do Concílio Vaticano II: 182 exceptuando as leituras, a homilia e a oração dos fiéis, é bom que tais celebrações sejam em língua latina; sejam igualmente recitadas em latim as orações mais conhecidas 183 da Tradição da Igreja e, eventualmente, entoadas algumas partes em canto gregoriano. A nível geral, peço que os futuros sacerdotes sejam preparados, desde o tempo do seminário, para compreender e celebrar a Santa Missa em latim, bem como para usar textos latinos e entoar o canto gregoriano; nem se transcure a possibilidade de formar os próprios fiéis para saberem, em latim, as orações mais comuns e cantarem, em gregoriano, determinadas partes da liturgia.184 Celebrações eucarísticas em pequenos grupos 63. Bem distinta é a situação criada em algumas circunstâncias pastorais, onde, precisamente para uma participação mais consciente, activa e frutuosa, se favorecem as celebrações em pequenos grupos. Embora reconhecendo o valor formativo subjacente a estas opções, é necessário especificar que as mesmas devem ser harmonizadas com o conjunto da proposta pastoral da diocese; com efeito, tais experiências perderiam o seu carácter pedagógico, se fossem vistas em antagonismo ou paralelo com a vida da Igreja particular. A este respeito, o Sínodo pôs em evidência alguns critérios a que se devem ater: os pequenos grupos devem servir para unificar a comunidade, e não para a dividir; a prova disto mesmo há-de ver-se na prática concreta; estes grupos devem favorecer a participação frutuosa da assembleia inteira e preservar, na medida do possível, a unidade da vida litúrgica de cada uma das famílias.185 CELEBRAÇÃO INTERIORMENTE PARTICIPADA Catequese mistagógica 64. A grande tradição litúrgica da Igreja ensina-nos que é necessário, para uma frutuosa participação, esforçar-se por corresponder pessoalmente ao mistério que é celebrado, através do oferecimento a Deus da própria vida em união com o sacrifício de Cristo pela salvação do mundo inteiro. Por este motivo, o Sínodo dos Bispos recomendou que se fomentasse, nos fiéis, profunda concordância das disposições interiores com os gestos e palavras; se ela faltasse, as nossas celebrações, por muito animadas que fossem, arriscar-se-iam a cair no ritualismo. Assim, é preciso promover uma educação da fé eucarística que predisponha os fiéis a viverem pessoalmente o que se celebra. Vista a importância essencial desta participação pessoal e consciente, quais poderiam ser os instrumentos de formação mais adequados? Para isso, os padres sinodais indicaram unanimemente a estrada duma catequese de carácter mistagógico, que leve os fiéis a penetrarem cada vez mais nos mistérios que são celebrados.186 Em concreto e antes de mais, há que afirmar que, devido à relação entre a arte da celebração e a participação activa, «a melhor catequese sobre a Eucaristia é a própria Eucaristia bem celebrada»; 187 com efeito, por sua natureza a liturgia possui uma eficácia pedagógica própria para introduzir os fiéis no conhecimento do mistério celebrado. Por isso mesmo, na tradição mais antiga da Igreja, o caminho formativo do cristão – embora sem descurar a inteligência sistemática dos conteúdos da fé – assumia sempre um carácter de experiência, em que era determinante o encontro vivo e persuasivo com Cristo, anunciado por autênticas testemunhas. Neste sentido, quem introduz nos mistérios é primariamente a testemunha; depois, este encontro aprofunda-se, sem dúvida, na catequese e encontra a sua fonte e ápice na celebração da Eucaristia. Desta estrutura fundamental da experiência cristã parte a exigência de um itinerário mistagógico, no qual se hão-de ter sempre presente três elementos: a) Trata-se, primeiramente, da interpretação dos ritos à luz dos acontecimentos salvíficos, em conformidade com a tradição viva da Igreja; de facto, a celebração da Eucaristia, na sua riqueza infinita, possui contínuas referências à história da salvação. Em Cristo crucificado e ressuscitado, podemos celebrar verdadeiramente o centro recapitulador de toda a realidade (Ef 1,10); desde o seu início, a comunidade cristã leu os acontecimentos da vida de Jesus, e particularmente o mistério pascal, em relação com todo o percurso do Antigo Testamento. b) Além disso, a catequese mistagógica há-de preocupar-se por introduzir no sentido dos sinais contidos nos ritos; esta tarefa é particularmente urgente numa época acentuadamente tecnológica como a actual, que corre o risco de perder a capacidade de perceber os sinais e os símbolos. Mais do que informar, a catequese mistagógica deverá despertar e educar a sensibilidade dos fiéis para a linguagem dos sinais e dos gestos que, unidos à palavra, constituem o rito. c) Enfim, a catequese mistagógica deve preocupar-se por mostrar o significado dos ritos para a vida cristã, em todas as suas dimensões: trabalho e compromisso, pensamentos e afectos, actividade e repouso. Faz parte do itinerário mistagógico pôr em evidência a ligação dos mistérios celebrados no rito com a responsabilidade missionária dos fiéis; neste sentido, o fruto maduro da mistagogia é a consciência de que a própria vida vai sendo progressivamente transformada pelos sagrados mistérios celebrados. Aliás, a finalidade de toda a educação cristã é formar o fiel enquanto «homem novo» para uma fé adulta, que o torne capaz de testemunhar no próprio ambiente a esperança cristã que o anima. Condição necessária para se realizar esta tarefa educativa, no âmbito das nossas comunidades eclesiais, é dispor de formadores adequadamente preparados; mas todo o povo de Deus deve, sem dúvida, sentir-se comprometido nesta formação. Cada comunidade cristã é chamada a ser lugar de introdução pedagógica aos mistérios que se celebram na fé; a propósito, durante o Sínodo, os padres sublinharam a conveniência de um maior envolvimento das comunidades de vida consagrada, movimentos e agregações que, pelo próprio carisma, possam dar novo impulso à formação cristã.188 Temos a certeza de que, também no nosso tempo, o Espírito Santo não poupa a efusão dos seus dons para sustentar a missão apostólica da Igreja, a quem compete difundir a fé e educá-la até à sua maturidade.189 A reverência à Eucaristia 65. Um sinal convincente da eficácia que a catequese eucarística tem sobre os fiéis é seguramente o crescimento neles do sentido do mistério de Deus presente entre nós; podemos verificá-lo através de específicas manifestações de reverência à Eucaristia, nas quais o percurso mistagógico deve introduzir os fiéis.190 Penso, em geral, na importância dos gestos e posições, como, por exemplo, ajoelhar-se durante os momentos salientes da Oração Eucarística. Embora adaptando-se à legítima variedade de sinais que tem lugar no contexto das diferentes culturas, cada um viva e exprima a consciência de encontrar-se, em cada celebração, diante da majestade infinita de Deus, que chega até nós humildemente nos sinais sacramentais. ADORAÇÃO E PIEDADE EUCARÍSTICA A relação intrínseca entre celebração e adoração 66. Um dos momentos mais intensos do Sínodo vivemo-lo quando fomos à Basílica de São Pedro, juntamente com muitos fiéis, fazer adoração eucarística. Com aquele momento de oração, quis a Assembleia dos Bispos não se limitar às palavras, na sua chamada de atenção para a importância da relação intrínseca entre a celebração eucarística e a adoração. Neste significativo aspecto da fé da Igreja, encontra-se um dos elementos decisivos do caminho eclesial que se realizou após a renovação litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II. Quando a reforma dava os primeiros passos, aconteceu às vezes não se perceber com suficiente clareza a relação intrínseca entre a Santa Missa e a adoração do Santíssimo Sacramento; uma objecção então em voga, por exemplo, partia da ideia que o pão eucarístico nos fora dado não para ser contemplado, mas comido. Ora, tal contraposição, vista à luz da experiência de oração da Igreja, aparece realmente destituída de qualquer fundamento; já Santo Agostinho dissera: «Nemo autem illam carnem manducat, nisi prius adoraverit; (…) peccemus non adorando – ninguém come esta carne, sem antes a adorar; (…) pecaríamos se não a adorássemos».191 De facto, na Eucaristia, o Filho de Deus vem ao nosso encontro e deseja unir-se connosco; a adoração eucarística é apenas o prolongamento visível da celebração eucarística, a qual, em si mesma, é o maior acto de adoração da Igreja: 192 receber a Eucaristia significa colocar-se em atitude de adoração d’Aquele que comungamos. Precisamente assim, e apenas assim, é que nos tornamos um só com Ele e, de algum modo, saboreamos antecipadamente a beleza da liturgia celeste. O acto de adoração fora da Santa Missa prolonga e intensifica aquilo que se fez na própria celebração litúrgica. Com efeito, «somente na adoração pode maturar um acolhimento profundo e verdadeiro. Precisamente neste acto pessoal de encontro com o Senhor amadurece depois também a missão social, que está encerrada na Eucaristia e deseja romper as barreiras não apenas entre o Senhor e nós mesmos, mas também, e sobretudo, as barreiras que nos separam uns dos outros».193 A prática da adoração eucarística 67. Juntamente com a Assembleia sinodal, recomendo, pois, vivamente aos pastores da Igreja e ao povo de Deus a prática da adoração eucarística tanto pessoal como comunitária.194 Para isso, será de grande proveito uma catequese específica na qual se explique aos fiéis a importância deste acto de culto que permite viver, mais profundamente e com maior fruto, a própria celebração litúrgica. Depois, na medida do possível e sobretudo nos centros mais populosos, será conveniente individuar igrejas ou capelas que se possam reservar propositadamente para a adoração perpétua. Além disso, recomendo que na formação catequética, particularmente nos itinerários de preparação para a Primeira Comunhão, se iniciem as crianças no sentido e na beleza de demorar-se na companhia de Jesus, cultivando o enlevo pela sua presença na Eucaristia. Quero exprimir, aqui, apreço e apoio a todos os institutos de vida consagrada, cujos membros dedicam uma parte significativa do seu tempo à adoração eucarística; deste modo, oferecem a todos o exemplo de pessoas que se deixam plasmar pela presença real do Senhor. Desejo igualmente encorajar as associações de fiéis, nomeadamente as confrarias, que assumem esta prática como seu compromisso especial, tornando-se assim fermento de contemplação para toda a Igreja e apelo à centralidade de Cristo na vida dos indivíduos e da comunidade. Formas de devoção eucarística 68. O relacionamento pessoal que cada fiel estabelece com Jesus, presente na Eucaristia, recondu-lo sempre ao conjunto da comunhão eclesial, alimentando nele a consciência da sua pertença ao Corpo de Cristo. Por isso, além de convidar cada um dos fiéis a encontrar pessoalmente tempo para se demorar em oração, diante do Sacramento do altar, sinto o dever de convidar as próprias paróquias e demais grupos eclesiais a promoverem momentos de adoração comunitária. Obviamente, conservam todo o seu valor as formas já existentes de devoção eucarística. Penso, por exemplo, nas procissões eucarísticas, sobretudo a tradicional procissão na solenidade do Corpo de Deus, na devoção das Quarenta Horas, nos congressos eucarísticos locais, nacionais e internacionais, e noutras iniciativas análogas. Devidamente actualizadas e adaptadas às diversas circunstâncias, tais formas de devoção merecem ser cultivadas ainda hoje.195 O lugar do sacrário na igreja 69. Ainda relacionado com a importância da reserva eucarística e da adoração e reverência diante do Sacramento do sacrifício de Cristo, o Sínodo dos Bispos interrogou-se sobre a devida colocação do sacrário, dentro das nossas igrejas.196 Com efeito, uma correcta localização do mesmo ajuda a reconhecer a presença real de Cristo no Santíssimo Sacramento; por isso, é necessário que o lugar onde são conservadas as espécies eucarísticas seja fácil de individuar por qualquer pessoa que entre na igreja, graças nomeadamente à lâmpada do Santíssimo perenemente acesa. Tendo em vista tal objectivo, é preciso considerar a disposição arquitectónica do edifício sagrado: nas igrejas, onde não existe a capela do Santíssimo Sacramento mas perdura o altar-mor com o sacrário, convém continuar a valer-se de tal estrutura para a conservação e adoração da Eucaristia, evitando porém colocar a cadeira do celebrante na sua frente. Nas novas igrejas, bom seria predispor a capela do Santíssimo nas proximidades do presbitério; onde isso não for possível, é preferível colocar o sacrário no presbitério, em lugar suficientemente elevado, no centro do fecho absidal ou então noutro ponto onde fique de igual modo bem visível. Estas precauções concorrem para conferir dignidade ao sacrário que deve ser sempre cuidado, também sob o perfil artístico. Obviamente, é necessário ter em conta também o que diz a propósito a Instrução Geral do Missal Romano.197 Em todo o caso, o juízo último sobre esta matéria compete ao bispo diocesano. III PARTE EUCARISTIA, MISTÉRIO VIVIDO «Assim como o Pai, que vive, Me enviou e Eu vivo pelo Pai, também aquele que Me come viverá por Mim» (Jo 6,57) FORMA EUCARÍSTICA DA VIDA CRISTÃ O culto espiritual 70. O Senhor Jesus, que para nós se fez alimento de verdade e amor, falando do dom da sua vida assegura-nos: «Quem comer deste pão viverá eternamente» (Jo 6,51). Mas, esta «vida eterna» começa em nós, já agora, através da mudança que o dom eucarístico gera na nossa vida: «Aquele que me come viverá por mim» (Jo 6,57). Estas palavras de Jesus permitem-nos compreender que o mistério «acreditado» e «celebrado» possui em si mesmo um tal dinamismo, que faz dele princípio de vida nova em nós e forma da existência cristã. De facto, comungando o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo, vamo-nos tornando participantes da vida divina de modo sempre mais adulto e consciente. Vale aqui o mesmo que Santo Agostinho afirma a propósito do Verbo (Logos) eterno, alimento da alma, quando, pondo em evidência o carácter paradoxal deste alimento, o santo doutor imagina ouvi-lo dizer: «Sou o pão dos fortes; cresce e comer-me-ás. Não me transformarás em ti como ao alimento da tua carne, mas mudar-te-ás em mim».198 Com efeito, não é o alimento eucarístico que se transforma em nós, mas somos nós que acabamos misteriosamente mudados por ele. Cristo alimenta-nos, unindo-nos a si; «atrai-nos para dentro de si».199 A celebração eucarística surge aqui em toda a sua força como fonte e ápice da existência eclesial, enquanto exprime a origem e simultaneamente a realização do culto novo e definitivo, o culto espiritual (logiké latreía).200 As palavras que encontramos sobre isto, na Carta de São Paulo aos Romanos, são a formulação mais sintética do modo como a Eucaristia transforma toda a nossa vida em culto espiritual agradável a Deus: «Peço-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Tal é o culto espiritual que lhe deveis prestar» (12,1). Nesta exortação, aparece a imagem do novo culto como oferta total da própria pessoa em comunhão com toda a Igreja. A insistência do Apóstolo sobre a oferta dos nossos corpos sublinha o concretismo humano dum culto de forma alguma desencarnado. E, a propósito, o santo de Hipona lembra-nos que «este é o sacrifício dos cristãos, ou seja, serem muitos e um só corpo em Cristo. A Igreja celebra este mistério através do Sacramento do altar, que os fiéis bem conhecem e no qual se lhes mostra claramente que, naquilo que se oferece, ela mesma é oferecida».201 De facto, a doutrina católica afirma que a Eucaristia, enquanto sacrifício de Cristo, é também sacrifício da Igreja e, consequentemente, dos fiéis.202 Esta insistência sobre o sacrifício – sacrum facere, «tornar sagrado» – exprime aqui toda a densidade existencial que está implicada na transformação da nossa realidade humana alcançada por Cristo (Fl 3,12). Eficácia omnicompreensiva do culto eucarístico 71. O novo culto cristão engloba todos os aspectos da existência, transfigurando-a: «Quando comeis ou bebeis, ou fazeis qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus» (1Cor 10,31). Em cada acto da sua vida, o cristão é chamado a manifestar o verdadeiro culto a Deus; daqui toma forma a natureza intrinsecamente eucarística da vida cristã. Uma vez que abraça a realidade humana do crente em seu concretismo quotidiano, a Eucaristia torna possível dia após dia a progressiva transfiguração do homem, por graça chamado a ser conforme à imagem do Filho de Deus (Rm 8,29s). Nada há de autenticamente humano – pensamentos e afectos, palavras e obras – que não encontre no sacramento da Eucaristia a forma adequada para ser vivido em plenitude. Sobressai aqui todo o valor antropológico da novidade radical trazida por Cristo com a Eucaristia: o culto a Deus na existência humana não pode ser relegado para um momento particular e privado, mas tende, por sua natureza, a permear cada aspecto da realidade do indivíduo. Assim, o culto agradável a Deus torna-se uma nova maneira de viver todas as circunstâncias da existência, na qual cada particular fica exaltado porque vivido dentro do relacionamento com Cristo e como oferta a Deus. A glória de Deus é o homem vivo (1Cor 10,31); e a vida do homem é a visão de Deus.203 Viver segundo o domingo 72. Esta novidade radical, que a Eucaristia introduz na vida do homem, revelou-se à consciência cristã desde o princípio; prontamente os fiéis compreenderam a influência profunda que a celebração eucarística exercia sobre o estilo da sua vida. Santo Inácio de Antioquia exprimia esta verdade designando os cristãos como «aqueles que chegaram à nova esperança», e apresentava-os como aqueles que vivem «segundo o domingo» (iuxta dominicam viventes).204 Esta expressão do grande mártir antioqueno põe claramente em evidência a ligação entre a realidade eucarística e a vida cristã no seu dia-a-dia. O costume característico que têm os cristãos de se reunirem no primeiro dia depois do sábado, para celebrar a ressurreição de Cristo – conforme a narração do mártir São Justino205 – é também o dado que define a forma da vida renovada pelo encontro com Cristo. Mas, a expressão de Santo Inácio – «viver segundo o domingo» – sublinha também o valor paradigmático que este dia santo tem para os restantes dias da semana. De facto, o domingo não se distingue com base na simples suspensão das actividades habituais, como se fosse uma espécie de parêntesis dentro do ritmo normal dos dias; os cristãos sempre sentiram este dia como o primeiro da semana, porque nele se faz memória da novidade radical trazida por Cristo. Por isso, o domingo é o dia em que o cristão reencontra a forma eucarística própria da sua existência, segundo a qual é chamado a viver constantemente: «viver segundo o domingo» significa viver consciente da libertação trazida por Cristo e realizar a própria existência como oferta de si mesmo a Deus, para que a sua vitória se manifeste plenamente a todos os homens através duma conduta intimamente renovada. Viver o preceito dominical 73. Cientes deste princípio novo de vida que a Eucaristia deposita no cristão, os padres sinodais reafirmaram a importância que tem, para todos os fiéis, o preceito dominical como fonte de liberdade autêntica, a fim de poderem viver cada um dos outros dias segundo o que celebraram no «dia do Senhor». Com efeito, a vida de fé corre perigo quando se deixa de sentir desejo de participar na celebração eucarística em que se faz memória da vitória pascal. A participação na assembleia litúrgica dominical, ao lado de todos os irmãos e irmãs com os quais se forma um só Corpo em Cristo Jesus, é exigida pela consciência cristã e simultaneamente educa a consciência cristã. Perder o sentido do domingo como dia do Senhor que deve ser santificado é sintoma duma perda do sentido autêntico da liberdade cristã, a liberdade dos filhos de Deus.206 Continuam a ser preciosas as observações feitas a este respeito pelo meu venerado predecessor João Paulo II, na Carta Apostólica Dies Domini,207 quando trata das diversas dimensões que o domingo tem para os cristãos: é dies Domini, em referimento à obra da criação; dies Christi, enquanto dia da nova criação e do dom do Espírito Santo que o Senhor Ressuscitado concede; dies Ecclesiæ, como dia em que a comunidade cristã se reúne para a celebração; dies hominis, porque dia de alegria, repouso e caridade fraterna. Um tal dia aparece, assim, como festa primordial em que todo o fiel, no próprio ambiente onde vive, se pode fazer arauto e guardião do sentido do tempo. Deste dia, com efeito, brota o sentido cristão da existência e uma nova maneira de viver o tempo, as relações, o trabalho, a vida e a morte. Por isso, é bom que, no dia do Senhor, as realidades eclesiais organizem, a partir da celebração eucarística dominical, manifestações próprias da comunidade cristã: encontros de amizade, iniciativas para a formação de crianças, jovens e adultos na fé, peregrinações, obras de caridade e momentos variados de oração. Por causa destes valores tão importantes – embora justamente a tarde de sábado a partir das primeiras Vésperas já pertença ao domingo, sendo permitido cumprir nela o preceito dominical – é necessário recordar que é o domingo em si mesmo que merece ser santificado, para que não acabe por ficar um dia «vazio de Deus».208 O sentido do repouso e do trabalho 74. É particularmente urgente no nosso tempo lembrar que o dia do Senhor é também o dia de repouso do trabalho. Desejamos vivamente que isto mesmo seja reconhecido também pela sociedade civil, de modo que se possa ficar livre das obrigações laborais sem ser penalizado por isso. De facto, os cristãos – não sem relação com o significado do sábado na tradição hebraica – viram no dia do Senhor também o dia de repouso da fadiga quotidiana. Isto possui um significado bem preciso, ou seja, constitui uma relativização do trabalho, que tem por finalidade o homem: o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho. É fácil intuir a tutela que isto oferece ao próprio homem, ficando assim emancipado duma possível forma de escravidão. Como já tive ocasião de afirmar, «o trabalho reveste uma importância primária para a realização do homem e o progresso da sociedade; por isso, torna-se necessário que aquele seja sempre organizado e realizado no pleno respeito da dignidade humana e ao serviço do bem comum. Ao mesmo tempo, é indispensável que o homem não se deixe escravizar pelo trabalho, que não o idolatre pretendendo achar nele o sentido último e definitivo da vida».209 É no dia consagrado a Deus que o homem compreende o sentido da sua existência e também do trabalho.210 Assembleias dominicais na ausência de sacerdote 75. Uma vez descoberto o significado da celebração dominical para a vida do cristão, coloca-se espontaneamente o problema das comunidades cristãs onde falta o sacerdote e, consequentemente, não é possível celebrar a Santa Missa no dia do Senhor. A tal respeito, convém reconhecer que nos encontramos perante situações muito diversificadas entre si. Antes de mais, o Sínodo recomendou aos fiéis que fossem a uma das igrejas da diocese onde está garantida a presença do sacerdote, mesmo que isso lhes exija um pouco de sacrifício.211 Entretanto, nos casos em que se torne praticamente impossível a participação na Eucaristia dominical, devido à grande distância, é importante que as comunidades cristãs se reúnam igualmente para louvar o Senhor e fazer memória do dia a Ele dedicado. Mas isso deverá verificar-se a partir duma conveniente instrução sobre a diferença entre a Santa Missa e as assembleias dominicais à espera de sacerdote. A solicitude pastoral da Igreja há-de exprimir-se, neste caso, vigiando que a liturgia da Palavra – organizada sob a guia dum diácono ou dum responsável da comunidade a quem foi regularmente confiado este ministério pela autoridade competente – se realize segundo um ritual específico elaborado pelas Conferências Episcopais e para tal fim aprovado por elas.212 Lembro que compete aos Ordinários conceder a faculdade de distribuir a comunhão nessas liturgias, ponderando atentamente a conveniência da escolha a fazer. Além disso, tudo deve ser feito de forma que tais assembleias não criem confusão quanto ao papel central do sacerdote e à dimensão sacramental na vida da Igreja. A importância da função dos leigos, a quem justamente há que agradecer a generosidade ao serviço das comunidades cristãs, jamais deve ofuscar o ministério insubstituível dos sacerdotes na vida da Igreja.213 Por isso, vigie-se atentamente sobre as assembleias à espera de sacerdote para que não dêem lugar a visões eclesiológicas incompatíveis com a verdade do Evangelho e a tradição da Igreja; devem antes tornar-se ocasiões privilegiadas de oração a Deus para que mande sacerdotes santos segundo o seu Coração. A propósito, vale a pena recordar aquilo que escreveu o papa João Paulo II, na Carta aos Sacerdotes, por ocasião da Quinta-feira Santa de 1979, recordando o caso comovente que se verificava em certos lugares onde as pessoas, privadas de sacerdote pelo regime ditatorial, se reuniam numa igreja ou num santuário, colocavam sobre o altar a estola que ainda conservavam e recitavam as orações da liturgia eucarística até ao «momento que corresponderia à transubstanciação» e aí se detinham em silêncio, dando testemunho de quão «ardentemente desejavam ouvir aquelas palavras que só os lábios dum sacerdote podiam eficazmente pronunciar».214 Precisamente nesta perspectiva, considerando o bem incomparável que deriva da celebração do sacrifício eucarístico, peço a todos os sacerdotes uma efectiva e concreta disponibilidade para visitarem, com a maior assiduidade possível, as comunidades que estão confiadas ao seu cuidado pastoral, a fim de não ficarem demasiado tempo sem o sacramento da caridade. UMA FORMA EUCARÍSTICA DA EXISTÊNCIA CRISTÃ, A PERTENÇA ECLESIAL 76. A importância do domingo como dia da Igreja (dies Ecclesiæ) traz-nos à mente a relação intrínseca entre a vitória de Jesus sobre o mal e a morte, e a nossa pertença ao seu corpo eclesial; no dia do Senhor, com efeito, todo o cristão reencontra também a dimensão comunitária da sua existência redimida. Participar na acção litúrgica, comungar o Corpo e o Sangue de Cristo significa, ao mesmo tempo, tornar cada vez mais íntima e profunda a própria pertença àquele que morreu por nós (1Cor 6,19s; 7,23). Verdadeiramente, quem se nutre de Cristo, vive por Ele. Compreende-se o sentido profundo da comunhão dos santos (communio sanctorum), relacionando-a com o mistério eucarístico. A comunhão tem sempre e inseparavelmente uma conotação vertical e uma horizontal: comunhão com Deus e comunhão com os irmãos e irmãs. Estas duas dimensões encontram-se misteriosamente no dom eucarístico. «Onde se destrói a comunhão com Deus, que é comunhão com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo, destrói-se também a raiz e a fonte da comunhão entre nós. E onde a comunhão entre nós não for vivida, também a comunhão com o Deus-Trindade não é viva nem verdadeira».215 Chamados, pois, a ser membros de Cristo e consequentemente membros uns dos outros (1Cor 12,27), constituímos uma realidade ontologicamente fundada no Baptismo e alimentada pela Eucaristia, realidade essa que exige ter expressão sensível na vida das nossas comunidades. A forma eucarística da vida cristã é, sem dúvida, eclesial e comunitária. Através da diocese e das paróquias, enquanto estruturas basilares da Igreja num território particular, cada fiel pode fazer experiência concreta da sua pertença ao Corpo de Cristo. As associações, os movimentos eclesiais e novas comunidades – com a vivacidade dos carismas que lhes foram concedidos pelo Espírito Santo para o nosso tempo – bem como os institutos de vida consagrada têm a missão de oferecer a sua contribuição específica para favorecer nos fiéis a percepção desta sua pertença ao Senhor (Rm 14,8). O fenómeno da secularização, que apresenta – não por acaso – traços fortemente individualistas, logra seus efeitos deletérios sobretudo nas pessoas que se isolam por escasso sentido de pertença. Desde os seus inícios, sempre o Cristianismo implica uma companhia, uma trama de relações continuamente vivificadas pela escuta da Palavra e pela celebração eucarística e animadas pelo Espírito Santo. Espiritualidade e cultura eucarística 77. Os padres sinodais afirmaram, significativamente, que «os fiéis cristãos precisam duma compreensão mais profunda das relações entre a Eucaristia e a vida quotidiana. A espiritualidade eucarística não é apenas participação na Missa e devoção ao Santíssimo Sacramento; mas abraça a vida inteira».216 Um tal realce assume actualmente particular significado para todos nós; é preciso reconhecer que um dos efeitos mais graves da secularização, há pouco mencionada, é ter relegado a fé cristã para a margem da existência, como se fosse inútil para a realização concreta da vida dos homens; a falência desta maneira de viver «como se Deus não existisse» está agora patente a todos. Hoje torna-se necessário redescobrir que Jesus Cristo não é uma simples convicção privada ou uma doutrina abstracta, mas uma pessoa real cuja inserção na história é capaz de renovar a vida de todos. Por isso, a Eucaristia, enquanto fonte e ápice da vida e missão da Igreja, deve traduzir-se em espiritualidade, em vida «segundo o Espírito» (Rm 8,4s; cf. Gl 5,16.25). É significativo que São Paulo, na passagem da Carta aos Romanos onde convida a viver o novo culto espiritual, apele ao mesmo tempo para a necessidade de mudar a própria forma de viver e pensar: «Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para saberdes discernir, segundo a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito» (12,2). Deste modo, o Apóstolo das Gentes põe em evidência a ligação entre o verdadeiro culto espiritual e a necessidade duma nova maneira de compreender a existência e orientar a vida. Constitui parte integrante da forma eucarística da vida cristã a renovação da mentalidade, pois «assim já não seremos crianças inconstantes, levadas ao sabor de todo o vento de doutrina» (Ef 4,14). Eucaristia e evangelização das culturas 78. Daquilo que ficou dito, segue-se que o mistério eucarístico nos põe em diálogo com as várias culturas, mas de certa forma também as desafia.217 É preciso reconhecer o carácter intercultural deste novo culto, desta logiké latreía: a presença de Jesus Cristo e a efusão do Espírito Santo são acontecimentos que podem encontrar-se de forma duradoura com qualquer realidade cultural a fim de a fermentar evangelicamente. Em consequência disto mesmo, temos a obrigação de promover convictamente a evangelização das culturas, na certeza de que o próprio Cristo é a verdade de todo o homem e da história humana inteira. A Eucaristia torna-se critério de valorização de tudo o que o cristão encontra nas diversas expressões culturais; num processo importante como este, podem revelar-se de grande significado as palavras de São Paulo quando, na sua I Carta aos Tessalonicenses, convida a «avaliar tudo e conservar o que for bom» (5,21). Eucaristia e fiéis leigos 79. Em Cristo, cabeça da Igreja seu corpo, todos os cristãos formam uma «raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus para anunciar os louvores d’Aquele que os chamou das trevas à sua luz admirável» (1Ped 2,9). A Eucaristia, enquanto mistério a ser vivido, oferece-se a cada um de nós na condição concreta em que nos encontramos, fazendo com que esta mesma situação vital se torne um lugar onde viver diariamente a novidade cristã. Se o sacrifício eucarístico alimenta e faz crescer em nós tudo o que já nos foi dado no Baptismo, pelo qual todos somos chamados à santidade,218 então, isso deve transparecer e manifestar-se precisamente nas situações ou estados de vida em que cada cristão se encontra; tornamo-nos dia após dia culto agradável a Deus, vivendo a própria vida como vocação. O próprio sacramento da Eucaristia, a partir da convocação litúrgica, compromete-nos na realidade quotidiana a fim de que tudo seja feito para glória de Deus. E, dado que o mundo é «o campo» (Mt 13,38) onde Deus coloca os seus filhos como boa semente, os cristãos leigos, em virtude do Baptismo e da Confirmação e corroborados pela Eucaristia, são chamados a viver a novidade radical trazida por Cristo precisamente no meio das condições normais da vida; 219 devem cultivar o desejo de ver a Eucaristia influir cada vez mais profundamente na sua existência quotidiana, levando-os a serem testemunhas reconhecidas como tais no próprio ambiente de trabalho e na sociedade inteira.220 Dirijo um particular encorajamento às famílias a haurirem inspiração e força deste sacramento: o amor entre o homem e a mulher, o acolhimento da vida, a missão educadora aparecem como âmbitos privilegiados onde a Eucaristia pode mostrar a sua capacidade de transformar e encher de significado a existência.221 Os pastores nunca deixem de apoiar, educar e encorajar os fiéis leigos a viverem plenamente a própria vocação à santidade no meio deste mundo que Deus amou até ao ponto de dar o Filho para sua salvação (Jo 3,16). Eucaristia e espiritualidade sacerdotal 80. A forma eucarística da existência cristã manifesta-se, sem dúvida, de modo particular no estado de vida sacerdotal. A espiritualidade sacerdotal é intrinsecamente eucarística; a semente desta espiritualidade encontra-se já nas palavras que o Bispo pronuncia na liturgia da ordenação: «Recebe a oferenda do povo santo para a apresentares a Deus. Toma consciência do que virás a fazer; imita o que virás a realizar, e conforma a tua vida com o mistério da cruz do Senhor».222 Para conferir à sua existência uma forma eucarística cada vez mais perfeita, o sacerdote deve reservar, já no período de formação e depois nos anos sucessivos, amplo espaço para a vida espiritual.223 É chamado a ser continuamente um autêntico perscrutador de Deus, embora ao mesmo tempo permaneça solidário com as preocupações dos homens. Uma vida espiritual intensa permitir-lhe-á entrar mais profundamente em comunhão com o Senhor e ajudá-lo-á a deixar-se possuir pelo amor de Deus, tornando-se sua testemunha em todas as circunstâncias mesmo difíceis e obscuras. Para isso, juntamente com os padres do Sínodo, recomendo aos sacerdotes «a celebração diária da Santa Missa, mesmo quando não houver participação de fiéis».224 Tal recomendação é ditada, antes de mais, pelo valor objectivamente infinito de cada celebração eucarística; e é motivada ainda pela sua singular eficácia espiritual, porque, se vivida com atenção e fé, a Santa Missa é formadora no sentido mais profundo do termo, enquanto promove a configuração a Cristo e reforça o sacerdote na sua vocação. Eucaristia e vida consagrada 81. No contexto da relação entre a Eucaristia e as diversas vocações eclesiais, refulge de modo particular «o testemunho profético de mulheres e homens consagrados que encontram, na celebração eucarística e na adoração, a força para o seguimento radical de Cristo obediente, pobre e casto».225 Embora realizem muitos serviços no campo da formação humana e do cuidado pelos pobres, no ensino ou na assistência aos doentes, os consagrados e consagradas sabem que a finalidade principal da sua vida é «a contemplação das coisas divinas e a união assídua com Deus»; 226 a contribuição essencial que a Igreja espera da vida consagrada destina-se muito mais ao ser do que ao fazer. Neste contexto, queria evocar a importância do testemunho virginal precisamente em relação ao mistério da Eucaristia; com efeito, além da ligação com o celibato sacerdotal, o mistério eucarístico apresenta uma relação intrínseca com a virgindade consagrada, enquanto esta é expressão da dedicação exclusiva da Igreja a Cristo, que ela acolhe como seu Esposo com radical e fecunda fidelidade.227 Na Eucaristia, a virgindade consagrada encontra inspiração e nutrimento para a sua dedicação total a Cristo; além disso, aufere da Eucaristia conforto e impulso para ser, no nosso tempo também, sinal do amor gratuito e fecundo que Deus tem pela humanidade. Enfim, é através do seu testemunho específico que a vida consagrada se torna objectivamente apelo e antecipação daquelas «núpcias do Cordeiro» (Ap 19,7-9) que constituem a meta de toda a história da salvação; neste sentido, aquela constitui uma evocação eficaz do horizonte escatológico de que o homem necessita para poder orientar as suas opções e resoluções de vida. Eucaristia e transformação moral 82. Descoberta a beleza da forma eucarística da existência cristã, somos levados a reflectir também sobre as energias morais que, por tal forma, se desencadeiam em apoio da liberdade autêntica e própria dos filhos de Deus. Desejo, assim, retomar um assunto que surgiu no Sínodo: a ligação entre forma eucarística da vida e transformação moral. O papa João Paulo II afirmara que a vida moral «possui o valor de um “culto espiritual” (Rm 12,1; cf. Fl 3,3), que brota e se alimenta daquela fonte inesgotável de santidade e glorificação de Deus que são os sacramentos, especialmente a Eucaristia: com efeito, ao participar no sacrifício da cruz, o cristão comunga do amor de doação de Cristo, ficando habilitado e comprometido a viver esta mesma caridade em todas as suas atitudes e comportamentos de vida».228 Em suma, «no próprio “culto”, na comunhão eucarística, está contido o ser amado e o amar por sua vez os outros. Uma Eucaristia que não se traduza em amor concretamente vivido é em si mesma fragmentária».229 Este apelo ao valor moral do culto espiritual não deve ser interpretado em chave moralista; é, antes de mais, a descoberta feliz do dinamismo do amor no coração de quem acolhe o dom do Senhor, abandona-se a Ele e encontra a verdadeira liberdade. A transformação moral, que o novo culto instituído por Cristo implica, é uma tensão e um anseio profundo de querer corresponder ao amor do Senhor com todo o próprio ser, embora conscientes da própria fragilidade. Aquilo de que estamos a falar aparece claramente no relato evangélico de Zaqueu (Lc 19,1-10): depois de ter hospedado Jesus na sua casa, o publicano sente-se completamente transformado; decide dar metade dos seus haveres aos pobres e restituir quatro vezes mais a quem roubou. A tensão moral, que nasce do acto de hospedar Jesus na nossa vida, brota da gratidão por se ter experimentado a imerecida proximidade do Senhor. Coerência eucarística 83. É importante salientar aquilo que os padres sinodais designaram por coerência eucarística, à qual está objectivamente chamada a nossa existência. Com efeito, o culto agradável a Deus nunca é um acto meramente privado, sem consequências nas nossas relações sociais: requer o testemunho público da própria fé. Evidentemente, isto vale para todos os baptizados, mas impõe-se com particular premência a quantos, pela posição social ou política que ocupam, devem tomar decisões sobre valores fundamentais como o respeito e defesa da vida humana desde a concepção até à morte natural, a família fundada sobre o matrimónio, entre um homem e uma mulher, a liberdade de educação dos filhos e a promoção do bem comum em todas as suas formas.230 Estes são valores não negociáveis. Por isso, cientes da sua grave responsabilidade social, os políticos e os legisladores católicos devem sentir-se particularmente interpelados pela sua consciência rectamente formada a apresentar e apoiar leis inspiradas nos valores impressos na natureza humana.231 Tudo isto tem, aliás, uma ligação objectiva com a Eucaristia (1Cor 11,27-29). Os bispos são obrigados a recordar sem cessar tais valores; faz parte da sua responsabilidade pelo rebanho que lhes foi confiado.232 EUCARISTIA, MISTÉRIO ANUNCIADO Eucaristia e missão 84. Na homilia, durante a celebração eucarística com que solenemente dei início ao meu ministério na Cátedra de Pedro, disse: «Não há nada de mais belo do que ser alcançado, surpreendido pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada de mais belo do que conhecê-lo e comunicar aos outros a amizade com Ele».233 Esta afirmação cresce de intensidade, quando pensamos no mistério eucarístico; com efeito, não podemos reservar para nós o amor que celebramos neste sacramento: por sua natureza, pede para ser comunicado a todos. Aquilo de que o mundo tem necessidade é do amor de Deus, é de encontrar Cristo e acreditar nele. Por isso, a Eucaristia é fonte e ápice não só da vida da Igreja, mas também da sua missão: «Uma Igreja autenticamente eucarística é uma Igreja missionária».234 Havemos, também nós, de poder dizer com convicção aos nossos irmãos: «Nós vos anunciamos o que vimos e ouvimos, para que estejais também em comunhão connosco» (1Jo 1,2-3). Verdadeiramente, não há nada de mais belo do que encontrar e comunicar Cristo a todos! Aliás, a própria instituição da Eucaristia antecipa aquilo que constitui o cerne da missão de Jesus: Ele é o enviado do Pai para a redenção do mundo (Jo 3,16-17; Rm 8,32). Na Última Ceia, Jesus entrega aos seus discípulos o sacramento que actualiza o sacrifício que Ele, em obediência ao Pai, fez de si mesmo pela salvação de todos nós. Não podemos abeirar-nos da mesa eucarística sem nos deixarmos arrastar pelo movimento da missão que, partindo do próprio Coração de Deus, visa atingir todos os homens; assim, a tensão missionária é parte constitutiva da forma eucarística da existência cristã. Eucaristia e testemunho 85. A missão primeira e fundamental, que deriva dos santos mistérios celebrados, é dar testemunho com a nossa vida. O enlevo pelo dom que Deus nos concedeu em Cristo, imprime à nossa existência um dinamismo novo que nos compromete a ser testemunhas do seu amor. Tornamo-nos testemunhas quando, através das nossas acções, palavras e modo de ser, é Outro que aparece e se comunica. Pode-se afirmar que o testemunho é o meio pelo qual a verdade do amor de Deus alcança o homem na história, convidando-o a acolher livremente esta novidade radical. No testemunho, Deus expõe-se, por assim dizer, ao risco da liberdade do homem. O próprio Jesus é a testemunha fiel e verdadeira (Ap 1,5; 3,14); veio para dar testemunho da verdade (Jo 18,37). Nesta ordem de ideias, apraz-me retomar um conceito caro aos primeiros cristãos mas que nos interpela também a nós, cristãos de hoje: o testemunho até ao dom de si mesmo, até ao martírio, sempre foi considerado, na história da Igreja, o apogeu do novo culto espiritual: «Oferecei os vossos corpos» (Rm 12,1). Pense-se, por exemplo, na narração do martírio de São Policarpo de Esmirna, discípulo de São João: o seu caso, dramático, é todo ele descrito como uma liturgia; mais ainda, como se o próprio mártir se tornasse Eucaristia.235 Pensemos também na consciência eucarística que Inácio de Antioquia exprime tendo em mente o seu martírio: considera-se «trigo de Deus» e, pelo martírio, deseja transformar-se em «pão puro de Cristo».236 O cristão, quando oferece a sua vida no martírio, entra em plena comunhão com a Páscoa de Jesus Cristo e, assim, ele mesmo se torna Eucaristia com Cristo. Não faltam, ainda hoje, à Igreja, os mártires, nos quais se manifesta de modo supremo o amor de Deus. E, mesmo que não nos seja pedida a prova do martírio, sabemos, porém, que o culto agradável a Deus postula intimamente esta disponibilidade 237 e encontra a sua realização no feliz e convicto testemunho perante o mundo duma vida cristã coerente, nos diversos sectores onde o Senhor nos chama a anunciá-lo. Jesus Cristo, único Salvador 86. Sublinhar a ligação intrínseca entre Eucaristia e missão faz-nos descobrir também o conteúdo supremo do nosso anúncio. Quanto mais vivo for o amor pela Eucaristia, no coração do povo cristão, tanto mais clara lhe será a incumbência da missão: levar Cristo; não meramente uma ideia ou uma ética nele inspirada, mas o dom da sua própria Pessoa. Quem não comunica a verdade do Amor ao irmão, ainda não deu bastante. A Eucaristia, enquanto sacramento da nossa salvação, chama-nos assim, inevitavelmente, à unicidade de Cristo e da salvação por Ele realizada a preço do seu sangue. Por isso, do mistério eucarístico acreditado e celebrado nasce a exigência de educar constantemente a todos para o trabalho missionário, cujo centro é o anúncio de Jesus, único Salvador.238 Isto impedirá de confinar, em chave meramente sociológica, a obra decisiva de promoção humana que todo o processo de evangelização autêntico sempre implica. Liberdade de culto 87. Neste contexto, desejo dar voz àquilo que os padres referiram, durante a Assembleia sinodal, a propósito das graves dificuldades criadas à missão das comunidades cristãs que vivem em condições de minoria ou mesmo de privação da liberdade religiosa.239 Devemos verdadeiramente dar graças ao Senhor por todos os bispos, sacerdotes, pessoas consagradas e leigos que se prodigalizam a anunciar o Evangelho e vivem a sua fé sob risco da própria vida. Não são poucas as regiões do mundo onde o simples acto de ir à igreja constitui um testemunho heróico que expõe a vida da pessoa à marginalização e à violência. Nesta ocasião, quero também reiterar a solidariedade da Igreja inteira a quantos sofrem por falta de liberdade de culto. Nos lugares onde não há a liberdade religiosa, sabemos que falta, no fim de contas, a liberdade mais significativa, pois é na fé que o homem exprime a decisão íntima relativa ao sentido último da própria existência; por isso, rezemos para que se alargue o espaço da liberdade religiosa em todos os Estados, a fim de os cristãos e os membros das outras religiões poderem livremente viver as suas convicções, pessoalmente e em comunidade. EUCARISTIA, MISTÉRIO OFERECIDO AO MUNDO Eucaristia, Pão repartido para a vida do mundo 88. «O Pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo» (Jo 6,51). Com estas palavras, o Senhor revela o verdadeiro significado do dom da sua vida por todos os homens; as mesmas mostram-nos também a compaixão íntima que Ele sente por cada pessoa. Na realidade, os Evangelhos transmitem-nos muitas vezes os sentimentos de Jesus para com as pessoas, especialmente doentes e pecadores (Mt 20,34; Mc 6,34; Lc 19,41). Ele exprime, através dum sentimento profundamente humano, a intenção salvífica de Deus que deseja que todo o homem alcance a verdadeira vida. Cada celebração eucarística actualiza sacramentalmente a doação que Jesus fez da sua própria vida na cruz por nós e pelo mundo inteiro. Ao mesmo tempo, na Eucaristia, Jesus faz de nós testemunhas da compaixão de Deus por cada irmão e irmã; nasce assim, à volta do mistério eucarístico, o serviço da caridade para com o próximo, que «consiste precisamente no facto de eu amar, em Deus e com Deus, a pessoa que não me agrada ou que nem conheço sequer. Isto só é possível realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro que se tornou comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento. Então, aprendo a ver aquela pessoa já não somente com os meus olhos e sentimentos, mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo».240 Desta forma, nas pessoas que contacto, reconheço irmãs e irmãos, pelos quais o Senhor deu a sua vida amando-os «até ao fim» (Jo 13,1). Por conseguinte, as nossas comunidades, quando celebram a Eucaristia, devem consciencializar-se cada vez mais de que o sacrifício de Jesus é por todos; e, assim, a Eucaristia impele todo o que acredita nele a fazer-se «pão repartido» para os outros e, consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais justo e fraterno. Como sucedeu na multiplicação dos pães e dos peixes, temos de reconhecer que Cristo continua, ainda hoje, exortando os seus discípulos a empenharem-se pessoalmente: «Dai-lhes vós de comer» (Mt 14,16). Na verdade, a vocação de cada um de nós consiste em ser, unido a Jesus, pão repartido para a vida do mundo. As implicações sociais do mistério eucarístico 89. A união com Cristo, que se realiza no sacramento, habilita-nos também a uma novidade de relações sociais: «a “mística” do sacramento tem um carácter social, porque (…) a união com Cristo é, ao mesmo tempo, união com todos os outros aos quais Ele se entrega. Eu não posso ter Cristo só para mim; posso pertencer-lhe somente unido a todos aqueles que se tornaram ou hão-de tornar seus».241 A propósito, é necessário explicitar a relação entre mistério eucarístico e compromisso social. A Eucaristia é sacramento de comunhão entre irmãos e irmãs que aceitam reconciliar-se em Cristo, o qual fez de judeus e gentios um só povo, destruindo o muro de inimizade que os separava (Ef 2,14). Somente esta tensão constante à reconciliação permite comungar dignamente o Corpo e o Sangue de Cristo (Mt 5,23-24).242 Através do memorial do seu sacrifício, Ele reforça a comunhão entre os irmãos e, de modo particular, estimula os que estão em conflito a apressar a sua reconciliação, abrindo-se ao diálogo e ao compromisso em prol da justiça. A restauração da justiça, a reconciliação e o perdão são, sem dúvida alguma, condições para construir uma verdadeira paz; 243 desta consciência nasce a vontade de transformar também as estruturas injustas, a fim de se restabelecer o respeito da dignidade do homem, criado à imagem e semelhança de Deus; é através da realização concreta desta responsabilidade que a Eucaristia se torna na vida o que significa na celebração. Como já tive ocasião de afirmar, não é missão própria da Igreja tomar nas suas mãos a batalha política para se realizar a sociedade mais justa possível; todavia, ela não pode nem deve ficar à margem da luta pela justiça. A Igreja «deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar».244 Na perspectiva da responsabilidade social de todos os cristãos, os padres sinodais lembraram que o sacrifício de Cristo é mistério de libertação que nos interpela e provoca continuamente; dirijo, pois, um apelo a todos os fiéis para que se tornem realmente obreiros de paz e justiça: «Com efeito, quem participa na Eucaristia deve empenhar-se na edificação da paz neste nosso mundo marcado por muitas violências e guerras, e, hoje de modo particular, pelo terrorismo, a corrupção económica e a exploração sexual»; 245 problemas, estes, que geram por sua vez outros fenómenos degradantes que causam viva preocupação. Sabemos que estas situações não podem ser encaradas de modo superficial. Precisamente, em virtude do mistério que celebramos, é preciso denunciar as circunstâncias que estão em contraste com a dignidade do homem, pelo qual Cristo derramou o seu sangue, afirmando assim o alto valor de cada pessoa. O alimento da verdade e a indigência do homem 90. Não podemos ficar inactivos perante certos processos de globalização, que não raro fazem crescer desmesuradamente a distância entre ricos e pobres a nível mundial. Devemos denunciar quem delapida as riquezas da terra, provocando desigualdades que bradam ao Céu (Tg 5,4). Por exemplo, é impossível calar diante das «imagens impressionantes dos grandes campos de deslocados ou refugiados – em várias partes do mundo – amontoados em condições precárias para escapar a sorte pior, mas carecidos de tudo. Porventura estes seres humanos não são nossos irmãos e irmãs? Os seus filhos não vieram ao mundo com os mesmos legítimos anseios de felicidade que os outros?»246 O Senhor Jesus, pão de vida eterna, incita a tornarmo-nos atentos às situações de indigência em que ainda vive grande parte da humanidade: são situações cuja causa se fica a dever, frequentemente, a uma clara e preocupante responsabilidade dos homens. De facto, «com base em dados estatísticos disponíveis, pode-se afirmar que bastaria menos de metade das somas imensas globalmente destinadas a armamentos para tirar, de forma estável, da indigência o exército ilimitado dos pobres. Isto interpela a consciência humana. Às populações que vivem sob o limiar da pobreza, mais por causa de situações que dependem das relações internacionais políticas, comerciais e culturais do que por circunstâncias incontroláveis, o nosso esforço comum verdadeiramente pode e deve oferecer-lhes nova esperança».247 O alimento da verdade leva-nos a denunciar as situações indignas do homem, nas quais se morre à míngua de alimento por causa da injustiça e da exploração, e dá-nos nova força e coragem para trabalhar sem descanso na edificação da civilização do amor. Desde o princípio, os cristãos tiveram a preocupação de partilhar os seus bens (Act 4,32) e de ajudar os pobres (Rm 15,26). O peditório que se realiza nas assembleias litúrgicas constitui viva reminiscência disso mesmo, mas é também uma necessidade muito actual. As instituições eclesiais de beneficência, de modo particular a Caritas nos seus vários níveis, realizam o valioso serviço de auxiliar as pessoas em necessidade, sobretudo os mais pobres. Tirando inspiração da Eucaristia, que é o sacramento da caridade, aquelas tornam-se a sua expressão concreta; por isso, merecem todo o aplauso e estímulo pelo seu empenho solidário no mundo. A doutrina social da Igreja 91. O mistério da Eucaristia habilita-nos e impele-nos a um compromisso corajoso nas estruturas deste mundo para lhes conferir aquela novidade de relações que tem a sua fonte inexaurível no dom de Deus. O pedido que repetimos em cada Missa: «O pão nosso de cada dia nos dai hoje», obriga-nos a fazer tudo o que for possível, em colaboração com as instituições internacionais, estatais, privadas, para que cesse ou pelo menos diminua, no mundo, o escândalo da fome e da subnutrição que padecem muitos milhões de pessoas, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento. Particularmente o leigo cristão, formado na escola da Eucaristia, é chamado a assumir directamente a sua responsabilidade político-social; a fim de poder desempenhar adequadamente as suas funções, é preciso prepará-lo através duma educação concreta para a caridade e a justiça. Para isso, como foi pedido pelo Sínodo, é necessário que, nas dioceses e comunidades cristãs, se dê a conhecer e incremente a doutrina social da Igreja.248 Neste precioso património, nascido da mais antiga tradição eclesial, encontramos os elementos que orientam, com profunda sabedoria, o comportamento dos cristãos nas questões sociais em ebulição. Amadurecida durante toda a história da Igreja, esta doutrina caracteriza-se pelo seu realismo e equilíbrio, ajudando assim a evitar promessas enganadoras ou vãs utopias. Santificação do mundo e defesa da criação 92. Enfim, para desenvolver uma espiritualidade eucarística profunda, capaz de incidir significativamente também no tecido social, é necessário que o povo cristão, ao dar graças por meio da Eucaristia, tenha consciência de o fazer em nome da criação inteira, aspirando assim à santificação do mundo e trabalhando intensamente para tal fim.249 A própria Eucaristia projecta uma luz intensa sobre a história humana e todo o universo. Nesta perspectiva sacramental, aprendemos dia após dia que cada acontecimento eclesial possui o carácter de sinal, pelo qual Deus se comunica a si mesmo e nos interpela. Desta maneira, a forma eucarística da existência pode verdadeiramente favorecer uma autêntica mudança de mentalidade no modo como lemos a história e o mundo. Para tudo isto nos educa a própria liturgia quando o sacerdote, durante a apresentação dos dons, dirige a Deus uma oração de bênção e súplica a respeito do pão e do vinho, «fruto da terra», «da videira» e do «trabalho do homem». Com estas palavras, o rito, além de envolver na oferta a Deus toda a actividade e canseira humana, impele-nos a considerar a terra como criação de Deus, que produz quanto precisamos para o nosso sustento. Não se trata duma realidade neutral, nem de mera matéria a ser utilizada indiferentemente segundo o instinto humano; mas coloca-se dentro do desígnio amoroso de Deus, segundo o qual todos nós somos chamados a ser filhos e filhas de Deus no seu único Filho, Jesus Cristo (Ef 1,4-12). As condições ecológicas em que a criação subjaz em muitas partes do mundo suscitam justas preocupações, que encontram motivo de conforto na perspectiva da esperança cristã, pois esta compromete-nos a trabalhar responsavelmente na defesa da criação; 250 de facto, na relação entre a Eucaristia e o universo, descobrimos a unidade do desígnio de Deus e somos levados a individuar a relação profunda da criação com a «nova criação» que foi inaugurada na ressurreição de Cristo, novo Adão. Dela participamos já agora em virtude do Baptismo (Cl 2,12s), abrindo-se assim à nossa vida cristã, alimentada pela Eucaristia, a perspectiva do mundo novo, do novo céu e da nova terra, onde a nova Jerusalém desce do Céu, de junto de Deus, «bela como noiva adornada para o seu esposo» (Ap 21,2). Utilidade dum Compêndio Eucarístico 93. No termo destas reflexões em que, de boa vontade, me detive sobre as indicações surgidas no Sínodo, desejo acolher também o pedido que os padres apresentaram para ajudar o povo cristão a crer, celebrar e viver cada vez melhor o mistério eucarístico. Cuidado pelos Dicas

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