SABER APRENDER – Que o tempo não existe

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Sentado num banco de um grande edifício, talvez uma Igreja, Galileu olhava para um candelabro que oscilava. Apesar da distância entre o vai e vem diminuir, ele notou que as oscilações pareciam ser iguais. Então, teve a ideia de contar o número de pulsações em cada oscilação e reparou que a quantidade de batimentos cardíacos era a mesma. Diz a história (porque esta é uma história que não se sabe se aconteceu ou não) que foi este o momento em que, pela primeira vez, um cientista introduziu o tempo nas equações. O curioso é que esta simples experiência de Galileu acaba de mostrar que o tempo não existe.

Foto de Adrien King em Unsplash

Quando li esta história no excelente livro do físico quântico Carlo Rovelli “A realidade não é o que parece” (Contraponto, 2019), não era a primeira vez que lia algo do género. Um outro físico, Julian Barbour, havia manifestado a mesma intuição dizendo que o tempo é a medida da mudança. Ou seja, na medida em que algo muda fazemos uma experiência de tempo. E talvez por isso quando nada muda parece que o tempo pára. Mas, a realidade parece ser que o tempo nasce apenas quando algo muda.

Para ilustrar as implicações do tempo não existir por si mesmo, mas como um construto humano, Carlo Rovelli dá a seguinte imagem — «…a dança da Natureza não se desenrola ao ritmo da baqueta de um único director de orquestra que marque um tempo universal: cada pessoa dança independentemente com os vizinhos, seguindo um ritmo próprio.» — Ou seja, na história de Galileu, a experiência de tempo provém de uma relação entre as batidas cardíacas e a oscilação do candelabro, não que as batidas cardíacas ocorram no tempo e a oscilação do candelabro ocorra, também, no tempo. Existe, sim, é uma relação entre as batidas cardíacas e as oscilações, sendo essa interacção que gera uma experiência de tempo. No fundo são as relações que nos mudam constantemente que geram o tempo.

É muito difícil sair da habitual ideia que temos de tempo porque a cultura humana vive de relógios e andamos sempre atrás das horas, minutos e segundos. Somos muito submissos ao tempo cronológico. A mudança subjacente a esta ideia de tempo como fruto da relação entre coisas é, realmente, uma mudança simples, mas o salto na maneira de pensar é gigantesco. Daí que Rovelli sugira que — «temos de aprender a pensar o mundo não como algo que muda no tempo, mas de qualquer outro modo. As coisas só mudam em relação umas com as outras.» — esta ideia proveniente da visão do mundo que a mecânica quântica suscita é profundíssima, pois, de certo modo, diz que a realidade não existe senão a partir das relações que todas as coisas têm entre si.

Nesta nova perspectiva, o calendário não marca o tempo, mas os momentos em que esperamos interagir com algo (um prazo a cumprir) ou alguém (uma reunião ou encontro). E como cada pessoa tem o seu calendário, a experiência de tempo gera-se na procura de consonância dos vários ritmos entre as pessoas. Quando alguém diz “não tenho tempo”, nesta nova visão em que o tempo não existe, o que está a dizer é que a sua vida passa por outras interacções e, talvez, não tenha chegado o momento certo para interagir com aquilo que a leva a responder — “não tenho tempo.” Mas não é um momento, um tempo?

Com a história, momento e tempo tornaram-se uma só noção, mas a raiz latina da palavra — momentum — significa mudança, e essa não ocorre por si mesma, mas sempre em relação com outra coisa. Tudo no mundo está sempre, sempre a mudar. Umas vezes notamos mais, e outras vezes notamos menos, mas se usarmos a palavra “momento” para expressar a experiência de tempo, a ideia é a de gradualmente começarmos a focar a nossa atenção mais nas interacções e relações, do que em algo que não existe como o tempo.

Há uma consequência delicada com esta mudança de perspectiva. Quando alguém diz não ter tempo, pode significar que não está interessado naquilo que estamos a propor, ou mesmo em interagir connosco, mas não devemos ser precipitados. Pode ser que o número de interacções tenha atingido um limite que lhe permite, ainda, conseguir dar resposta a tudo o que exige a sua atenção. Pois, a qualidade do tempo está na dedicação que damos às relações que estabelecem os nossos ritmos de vida.

Se olhar à minha volta, e para o meu próprio pulso, vejo como a maior parte das pessoas deixa fragmentar a sua vida submissa ao tempo cronológico. E se não usarmos relógio, o mais comum é ser o telemóvel o nosso relógio. Aqueles números que parecem ajudar as pessoas a organizar a sua vida, subtilmente, dominam mais do que seria suposto. Mas quem vive sem tempo, vive para os relacionamentos? Pode ser que sim. Pode ser que não. O que quero mudar em mim pode não corresponder ao que o outro quer mudar quando interagir comigo. Por isso, encontrarmos juntos o tempo certo, ou melhor, as interacções certas, será sempre um desafio e isso exige uma outra inversão de pensamento que a mecânica quântica sugere,

«Não são as coisas que podem entrar em relação, mas são as relações que dão origem à noção de “coisa”.» (Carlo Rovelli)

Carlo Rovelli escreve este livro em 2014, mas achei curioso como em 2011 lembro-me de uma curta (talvez a mais curta) entrada no meu blog dedicada ao diálogo entre ciência e fé onde escrevi (link😉 — «Uma coisa existe como tal enquanto possibilidade de relação …» E o que me levou a intuir algo que a mecânica quântica está a revelar foi a relacionalidade como a marca de Deus-Trindade neste Universo. Por isso, uma coisa, qualquer coisa, não podia existir por si mesma como muitas vezes a filosofia defendeu, mas seriam os relacionamentos a definir as coisas e o que essas realmente são.

O nosso pensamento está ainda muito voltado para as coisas, mas o que Deus sempre nos convidou, e agora também a mecânica quântica, é a cuidar bem dos relacionamentos se quisermos saber aprender a viver bem a experiência do tempo que nos é dado, mais marcado pelas mudanças recíprocas, do que pelos ponteiros de um relógio.


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