SABER APRENDER – A ver a net com olhos ciberteológicos

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

A internet não é um meio de evangelização, mas um contexto onde podemos evangelizar. Esta é uma ideia-chave que encontrei recentemente ao ler o livro “Cybertheology” (Ciberteologia) do P. Antonio Spadaro S.J., editor da revista italiana La Civiltà Cattolica. Neste sentido, não importa o modo como usamos a internet. Importa, sim, como viver bem na era da internet. Como diz Spadaro, a internet é — «o contexto no qual a fé é chamada a expressar-se, não através de uma mera vontade de estar presente, mas pela compatibilidade entre o Cristianismo e a vida dos seres humanos.» Agora que caminhamos a passos largos para as Jornadas Mundiais da Juventude, um dos argumentos mais escutados orienta-se para a importância de estarmos presentes na web e nas redes sociais por serem onde estão os jovens. A leitura ciberteológica de Spadaro sugere um caminho mais interessante e profundo.

Foto de Sigmund em Unsplash

Já pensaram que ao dizermos — “salvar um ficheiro”, “converter uma imagem” ou “justificar o texto”, estamos a usar termos típicos de uma linguagem teológica no âmbito informático? Poderíamos dizer antes que vamos “armazenar um ficheiro”, “alterar o tipo de imagem” e “alinhar um texto”, mas o mais comum será usarmos os termos anteriores. Com a internet acontece algo semelhante. Pensamos nessa como um instrumento de comunicação e um modo de nos ligarmos uns aos outros através da informação que partilhamos, mas essa assemelha-se mais ao ambiente que nos rodeia. O ciberespaço ajuda-nos a compreender como somos finitos. Quando nesse mergulhamos, o mundo estende-se e, em alguns jogos como o minecraft, pode assemelhar-se mesmo a um espaço infinito. Isso significa que deste contraste experimentado na internet entre a nossa finitude e algo (aparentemente) infinito, a espiritualidade e a tecnologia podem intersectar-se.

Spadaro diz que — «a internet é um plano da existência que se está a tornar, cada vez mais, integrado com os outros planos da existência humana; já não temos a percepção dos meios digitais que nos rodeiam como entidades separadas, mas misturadas com o nosso ambiente ao ponto de que já não nos damos conta deles.» É normal usar-se um GPS em vez de perguntar o caminho a alguém, ou já não sentimos fazer muito sentido explicarem-nos o caminho para chegar a casa de uns amigos, bastando enviarem-nos a morada ou um pin (isto é, coordenadas GPS por mensagem ou aplicação própria). Para muitas pessoas envolvidas nas redes sociais, o ambiente exterior torna-se um pretexto para a próxima foto a partilhar com as pessoas que nos seguem ou com os nossos amigos. Ou mesmo a foto mais banal serve para manifestar naquele ambiente internético como estou a “ser real” (be real, que é mais uma App de redes sociais).

Aquilo que somos, e o modo como nos vamos transformando ao longo da vida, está profundamente afectado pelo ambiente à nossa volta. Basta pensar que se houver três a quatro pessoas que, de repente, olham para o céu, todos faremos o mesmo. Por isso, a internet como ambiente no qual a maior parte da população humana mergulha, irá mudar o modo de sermos humanos. E isso acontece com tal alcance que já não são os nossos meios de comunicar que se transformam, mas a nossa pessoa e a cultura a que pertencemos. Talvez por esse motivo estejamos a assistir a uma certa uniformização cultural que pode levar à perda de alguma humano-diversidade com reflexo na vida espiritual.

Se pensarmos bem, a experiência cristã é um evento comunicativo. A Palavra de Deus, as meditações dos santos, e até as palavras do Papa que nos chegam em tempo real são parte do anúncio da Boa Nova que nos alimenta espiritualmente. E uma segunda parte do evento comunicativo acontece através dos nossos relacionamentos de comunhão uns com os outros. Deus em nós e entre nós. Por isso, a Palavra ou a comunhão não são meios de chegar à vida em Deus, mas são já um viver em Deus. Daí que Spadaro chame à atenção de que — «a Web não é um novo meio de evangelização, mas antes, e acima de tudo, um contexto…» — como referi no início. Pensemos, por exemplo, no botão de reset de um computador.

A conversão no contexto da nossa união com Deus vai muito para além de acreditar n’Ele ou não. A conversão mais profunda ocorre na passagem entre “não comunicar” e “comunicar”. Quando não “comunicamos” com Deus, é difícil compreender o Seu modo de ser e estar, a Sua existência. Quando estamos com dificuldades em comunicar com o nosso computador porque esse se encontra bloqueado, fazemos reset. É um botão muito simples e prático conotado com abertura e restauro de uma relação comunicativa com o nosso computador. Se a conversão fosse a redenção da incomunicabilidade, re-iniciar (reset) o computador, no seu sentido metafórico, seria a abertura e restauro de um relacionamento de comunicação que expressaria uma conversão tecnológica. Analogamente, diz Spadaro, «iluminamos a conversão teológica através do significado original de re-abrir uma relação quebrada para re-estabelecer um contacto que gera sentido.»

O que consumimos através da internet é, hoje, o “pão” diário de milhares de milhões de pessoas. Durante o dia recebemos “partículas culturais” que nos transformam por dentro ao influenciar as nossas opiniões, modos de nos comportarmos, ideias que se modificam, sentimentos que se experimentam, e tudo através de um meme, vídeo, mensagem, post, etc. Não seria mais fácil compreender a internet como um veículo de memes, vídeos, mensagens e posts sobre temas espirituais que possam servir de alimento para a nossa vida cristã? Qual a necessidade de mudar o paradigma para um que seja mais ciberteológico, como seria o caso da internet como contexto?

Saber aprender a ver a net com olhos ciberteológicos permite uma leitura mais profunda daquilo que a internet representa para a nossa vida, ajudando-nos a tomar mais consciência de como esse contexto nos afecta. E se estamos mais conscientes dos ambientes, mais livres somos de estarmos neles ou de sairmos. Imaginam aquela sensação de entrar numa sala para uma conferência. Sentamo-nos e aguardamos pela palestra. Quando começa, apercebemo-nos de que estamos na sala errada. Ooops. Quem tem coragem de se levantar e sair porque o assunto, realmente, não é do seu interesse? O mais comum é aguentarmos a sessão por termos vergonha de sair da sala. Hoje, não acontece o mesmo com os grupos WhatsApp? Não estamos em alguns grupos porque temos vergonha de sair e nos perguntarem qual a razão? Seremos livres espiritualmente nesse contexto que é, hoje, a internet?

Os ambientes de espiritualidade como uma missa ou noite de oração são livres. Podemos entrar na Igreja ou sala de encontro, como podemos sair porque a liberdade é um dos maiores dons (se não o maior) que Deus nos deu. Enquanto não chegarmos ao ponto de nos sentirmos livres de entrar e sair do contexto internético que muitas vezes habitamos, muito há ainda que evoluir para que a internet possa servir de ambiente de evangelização.


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