Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Uma formiga hoje é muito semelhante a uma formiga que tenha pisado a Terra há milhões de anos, mas relativamente aos seres humanos não é bem assim. Somos pessoas evolutivas que se formam em duas fases. Numa primeira fase descobrimo-nos diferentes uns dos outros como pessoas únicas. Numa segunda fase, descobrimo-nos como parte da mesma comunidade e integramo-nos na partilha de estilos de vida. Estas duas fases expressam o que poderíamos esperar de um ser humano criado à imagem de um Deus-Trindade que é unidade na diversidade. Por que razão, então, vemos pessoas a pensarem mais em si do que neste equilíbrio entre serem diferenciação e integração como parte da sua evolução? E qual o lugar da dimensão religiosa (diferente da espiritual) na vida de uma pessoa evolutiva?
Ao longo desta era secular, a esfera da experiência pessoal religiosa tem sido remetida para o indivíduo e esfera privada. Também os produtos que agora são lançados procuram ser, o mais possível, adaptados a cada pessoa. Tudo a pensar na fase de diferenciação da pessoa evolutiva, ampliado pela extensão da realidade física à aumentada ou virtual através de ecrã diante dos nossos olhos. O resultado pode-se observar pelas ruas das nossas cidades, onde uma grande parte das pessoas que vive sistematicamente diante de um ecrã, alhea-se do mundo que está ao seu redor. Poderíamos dizer que, muito embora se reconheça a importância da fase da integração, a maior ênfase está na fase da diferenciação e a vida das pessoas evolutivas acaba por tornar-se individualista.
O individualista é aquele que tende a pensar somente em si próprio, subvertendo o significado da palavra que lhe dá origem: indivíduo. Peter Abbs que foi editor de poesia da revista ecológica Resurgence, fez notar como a palavra indivíduo, originalmente, queria dizer indivisível no mesmo sentido em que consideramos Deus como Trindade. Diz Abbs que —
«a gradual inversão do significado da palavra ‘indivíduo’, movendo-se do que é indivisível e colectivo, para o que é divisível e distinto, leva, surrateiramente, consigo mesmo, o desenvolvimento histórico da auto-consciência.»
Ou seja, se não fosse a diferenciação que nos distingue uns dos outros seria difícil desenvolvermos a consciência que temos de nós próprios, mas o problema reside em parar aqui.
A individualidade é uma noção diferente. No dicionário encontramos esta palavra como a qualidade do que existe como indivíduo, logo, indivísível. Porém, se a considerássemos como uma síntese entre indivi(so) e dualidade poderíamos contemplar um significado um pouco diferente daquele que encontramos nos dicionários. Por outro lado, por dualidade poderíamos entender uma unidade indivisível de dois elementos distintos e inseparáveis cuja tensão entre si, e relacionamento, lhe conferem uma riqueza e dinamismo incomparáveis. Não só o indiviso em cada pessoa a tornaria única, como a dualidade expressaria como cada ser humano personaliza-se na medida em que vive em unidade dentro de si, com os outros e o ambiente à sua volta.
Neste sentido, se uma vida individualista faz a pessoa evolutiva regredir, será que uma mística da individualidade poderia inverter essa tendência tornando a vida “individualística”? Uma vez mais, estamos limitados pelo significado das palavras porque pensava em individualística como a síntese de individualidade com a sua mística, mas o “-ística” significa que se refere ao sujeito cuja palavra termina em “-ista”, ou seja, individualista. Jogos de palavras, e novos sentidos para as mesmas palavras, fazem parte do jogo infinito que é compreender o significado que a nossa vida tem para os outros e para o mundo. Um significado feito de acções motivadas pela vivência das palavras e respectivas consequências que pensamos afectarem apenas a nossa pessoa e não os outros. Mas no âmbito de uma visão evolutiva de pessoa, e de uma mística da individualidade, desde crianças que deveríamos aprender a ligar as acções às consequências, o que não tem acontecido. Quando damos de comer a uma criança, não estamos muito preocupados em ensinar-lhe que isso implica produzir lixo, muitas vezes lançado ao mar, afectando a sobrevivência do peixe que antes havíamos colocado no seu prato para comer.
Parece-me que uma mística da individualidade coloca a procura de sentido e significado para a vida da pessoa nos relacionamentos que estabelece com tudo e todos à sua volta. Porém, o que assistimos com a crescente dependência dos meios digitais, considerados cada vez mais como as principais fontes de informação para a aprendizagem e definição de cada um como pessoa, é uma tendência para o abstracto.
Quando a nossa aprendizagem assenta em informação abstracta, não existe risco, ou experiência directa com as coisas e outras pessoas. Numa rede social não se experimenta como tudo no universo é interdependente apesar de podermos ser informados disso. E com a digitalização, o tipo de experiência que fazemos começa a alterar fisicamente o nosso cérebro, de tal modo que se torna cada vez mais difícil viver sem o que é digital. E a pessoa evolutiva que crescia pela curiosidade, ideias e interacções com as coisas deste mundo, começa a ter o seu sistema cognitivo programado para uma vida desencarnada da realidade material. E isso deveria levar-nos a questionar se muito do nosso cansaço não se deve à falta de uma mística da individualidade que nos impulsiona a viver mais intensamente relacionamentos reais e menos os virtuais.
Tudo o que sugeri até aqui é debatível. O impacte que a digitalização tem nas nossas vidas, independentemente de ser positivo ou negativo, é inegável. Se a internet faltasse, não conseguiríamos aceder à nossa informação bancária sem estar numa fila interminável, comunicar com os familiares que estão longe, ou até resolver um problema com a impressora da nossa mãe usando um telemóvel e fazendo uma ligação remota, como me aconteceu uma vez. O desenvolvimento digital é extraordinário e tem valor, mas quando penetra na esfera evolutiva da pessoa, afectando a síntese entre o que a diferencia e a integra com os outros que provém do contacto com o que é real, há que parar e examinar.
À vivência espiritual (mística) da pessoa evolutiva como indivíduo-indivisível e, por isso, único, alia-se a psicologia do interesse que temos por essa pessoa e pelo que ela está a viver. Percorremos um caminho juntos porque evoluímos juntos. Assim, saber aprender a ser misticamente evolutivo abre a dimensão religiosa de cada pessoa a uma esfera que está para além da privada e individual, sem colidir com as escolhas do outro, diferente de mim. A dimensão religiosa da pessoa evolutiva é comunitária e social. Comunitária com aqueles com quem partilhamos uma vida comum. Social com aqueles com quem partilhamos um objectivo comum. Não deixa de ser curioso que as formigas parecem ser um pouco assim. A sua inteligência colectiva é admirável. Se nos apercebêssemos que em nós, pessoas evolutiva, para além da inteligência, ou consciência, a espiritualidade poderia ser, também, colectiva, que novidade poderia emergir dessa complexidade?
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