SABER APRENDER – A ser livre nas escolhas

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Estou dentro de Lisboa, ou encontro-me no Porto, ou Coimbra, não importa. Se precisar de me deslocar de um lado ao outro da cidade, ainda que saiba o caminho, por causa do trânsito, basta colocar o destino na App dos Mapas do smartphone e fico a saber qual o trajecto mais rápido e com menos trânsito. Se porventura me enganar, a App é suficientemente inteligente (mais do que eu que não percebi qual a saída certa) e adapta o trajecto, ao mesmo tempo que continua a ter em conta o trânsito. Este é o exemplo mais claro do impacte que a Inteligência Artificial ou mais conhecida por IA, tem na nossa vida. São tecnologias fascinantes e úteis, mas será que temos o controlo sobre elas?

Foto de Xu Haiwei em Unsplash

Nas redes sociais, os algoritmos são cada vez mais próximos de uma IA com redes neuronais digitais que abrem às máquinas a possibilidade de aprenderem muito (Machine Learning) sobre o nosso comportamento. Assim, se muitas pessoas clicarem num determinado link do Facebook, Instagram ou até de um site de jornal digital, o algoritmo associa o conteúdo clicado ao nosso comportamento. De cada vez que alguém que a IA identifica uma pessoa com um comportamento próximo da que clicou no link, mais facilmente lhe mostra o conteúdo e lhe convida ao dito clique. O reverso de recebermos a informação de que estávamos à espera é que a máquina começa a perceber o nosso comportamento e a saber como influenciá-lo.

Os anúncios existem para chamar a nossa atenção e despertar a curiosidade de uma pessoa por cada mil que os vêem. Por isso, a partir do momento em que nos percebemos de como os anúncios passavam pelos olhos de milhares de milhões de pessoas presentes nas redes sociais, essas tornaram-se a maior fonte de receita das grandes empresas de Social Media. Mas qual a melhor estratégia para captar e competir pela nossa atenção? É aqui que entra a IA. Ao analisar o nosso comportamento, coloca-nos milhares de etiquetas de modo a apresentar-nos conteúdos se estivermos dentro do grupo alvo definido pelo anunciante. Esta situação parece ser uma adaptação criada pela IA para ir ao encontro das nossas necessidades e desejos, mas não é bem assim.

O cientista de computação da Universidade americana de UC Berkeley, Stuart Russell diz que — «os algoritmos dos social media produziram uma catástrofe da Inteligência Artificial ao nível civilizacional que ninguém esperava: a danificadora polarização da sociedade.» E tudo pela estratégia de captação da nossa atenção que perde a inocência quando aprofundamos o seu impacto sobre o nosso comportamento. Sobre o desafio de captar a nossa atenção, Russell diz que —

«A solução simples consiste em apresentar items que o utilizador gosta de clicar, certo? Errado. A solução consiste em mudar a preferência do utilizador, de modo a que se tornem mais previsíveis. Um utilizador mais previsível pode ser alimentado de items que têm maior probabilidade de serem por ele clicados, gerando receita. (…) Como qualquer entidade racional, o algoritmo aprende o modo de modificar o estado ambiental — neste caso, a mente do utilizador — de modo a maximizar a receita.»

Na análise de Ned Desmond, COO da TechCrunch, num artigo que escreveu para a First Things, «em vez que conformarmos o produto às necessidade do utilizador, os algoritmos das redes sociais manipulam os sujeitos.» Ainda existe o livre arbítrio na Era Digital? Se através dos algoritmos, grandes empresas ou interesses privados têm o poder de influenciar o nosso modo de pensar e decidir, o risco para o sistema democrático, que depende do pressuposto de que a opinião das pessoas é livre e informada, cresce na direcção do colapso.

Na Europa, o Regulamento de Protecção de Dados Gerais (GDPR – General Data Protection Regulation) pretendia devolver às pessoas a capacidade de tomarem decisões por si mesmas, em vez de serem impulsionadas pelas sugestões dos algoritmos a quem damos “livre” acesso às marcas digitais que deixamos pela net e que se associam ao nosso comportamento. O artigo 22 deste regulamento chega mesmo ao ponto de explicitar que — «O titular dos dados tem o direito de não ficar sujeito a nenhuma decisão tomada exclusivamente com base no tratamento automatizado, incluindo a definição de perfis, que produza efeitos na sua esfera jurídica ou que o afete significativamente de forma similar.» Em suma, não é uma IA qualquer que decide se algo é, ou não é, bom para mim, como uma oferta de emprego ou um produto. A decisão cabe a cada um. Mas será essa a vontade das pessoas?

Sejamos honestos. Dá jeito que uma IA faça o trabalho de seleccionar aquilo que poderá ir ao encontro dos nossos interesses. A quantidade de informação disponível é tal que se o processo de decisão daquilo que me é apresentado cabe a mim, o preço pago pelo livre arbítrio será afogar-me no mar da oferta e sufocar pela indecisão. Mas como diz Ned Desmond — «temos uma breve janela para manter o génio IA na lâmpada das nossas escolhas. Se falharmos na compreensão da ameaça e legislar de acordo com isso, virá o dia em que as IAs farão as escolhas por nós, sem nos perguntar, ou dar-nos conhecimento disso, ou pedir o nosso consentimento.» Em causa está a liberdade mais profunda do ser humano que considero ser o traço mais límpido de sermos criação de Deus. Aliás, um mundo sem Deus será dominado pelos algoritmos.

O jornalista Walter Isaacson no seu livro “Os Inovadores” diz que «a inteligência artificial não tem de ser o cálice sagrado da informática. O objectivo será, portanto, encontrar maneiras de optimizar a colaboração entre as capacidades humanas e as da máquina, formar uma parceria onde deixamos as máquinas fazer o que fazem melhor, e elas deixam-nos fazer o que fazemos melhor.» Só há um cálice sagrado aceite por todo o ser humano, independentemente das suas convicções: o cálice da relacionalidade.

Beber do relacionamento com o outro ajuda-nos a orientar pelo mar de decisões que temos de tomar, e na partilha recíproca do resultado das nossas escolhas encontramos o barómetro que assegura uma vivência autêntica da nossa liberdade. Uma liberdade condicionada pelas limitações naturais da vida, mas incondicional nos actos de amor que pode realizar para com os outros que, sabendo-se amados, dão-se conta de serem, realmente, livres.


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