Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
O ateísmo não pode ser um mal. Se pensar no mal, penso no demónio, e não tenho dúvidas de que esse acredita em Deus. Mas não deixa de ser curioso que a conhecida Universidade de Harvard tenha no final de agosto de 2021 escolhido um “ateu devoto” como responsável dos capelães das comunidades cristãs, judaicas, hindus e muitas outras. As razões para esta escolha ligam-se à necessidade de uma resposta ao crescente número de jovens que não se identifica com qualquer tradição religiosa. Será, por isso, a ausência de religião o que responde ao desejo de uma vida profunda como manifestação da dimensão espiritual do ser humano?
Uma ateu devoto é um humanista que procura o bem em cada pessoa e uma vida ética em respostas que não encontra em Deus, mas uns nos outros. Porém, o ateísmo de Greg Epstein tem gerado linhas de comunicação entre fés diferentes, contrariando uma cultura de guerra possível entre experiências religiosas. Ele assenta a sua acção num diálogo que vive no desconforto da exigência de colaboração na diferença, em vez do maior conforto gerado pelos ambientes onde estamos todos de acordo. Como diz um estudante de Harvard — «a liderança de Greg não se deve à teologia. Deve-se à cooperação entre pessoas com fés diferentes e juntar pessoas que não se consideram, habitualmente, como religiosas.» Mas, como disse; o bispo americano Robert Barron, se a “capelania” que coordena os líderes religiosos das comunidades universitárias não tem qualquer religião, não será isso um sinal de que a religião não tem significado algum?
Na prática, esta decisão da Universidade de Harvard indica que não importa em que é que acreditamos, desde que sejamos boas pessoas. A religião no contexto desta capelania ateísta considera que o religioso prefere o sentimento de absoluta dependência a uma determinada estrutura da fé, ao que Schleiermacher designou como um «sentido e gosto pelo infinito», e ao que Hegel replicou com — «Se Schleiermacher estiver correcto, então, o meu cão é o perfeito Cristão!» E este acaba por ser o que resultaria em situações como a deste capelão ateu, onde não interessa crer em Deus para se ser “religioso”. Segundo o bispo Barron não faz sentido haver religião sem crer na existência de Deus, seja que conceito for mediante a diversidade de experiências religiosas, mas designar como capelão alguém que não acredita em Deus é sinal de falta de respeito próprio pela experiência religiosa, e demonstração de alguma vergonha do valor da própria religião para a vida profunda, de tal modo que a única solução para nos entendermos é escolher alguém que não partilha de qualquer religião.
Com os crescentes escândalos na Igreja Católica, e as visões prescritivas da experiência religiosa em contraposição à experiência humana de muitas pessoas, é natural que situações como esta possam acontecer e deixar-nos perplexos. Ou até nos levam a concordar em nome de uma visão da fé mais aberta aos outros, sobretudo aqueles que não crêem em Deus, de tal modo que: talvez fosse bom encontrar ateus para outros cargos “religiosos”, uma vez que não estão limitados pela imposição das doutrinas religiosas, quem sabe, evitando o escamotear de situações como os abusos de poder, etc. Quer isto dizer que a religião é um mal? Ou que o “religar” do ser humano a Deus que está na génese da palavra religião seria melhor se se “desligar”?
O ateísmo não é um perigo para a religião, mas antes o indiferentismo. Muitas vezes confunde-se a diversidade de experiências religiosas com a confusão mental de não sabermos quem é o verdadeiro Deus. Se a Realidade é uma só, e Deus “a” Realidade Última que dá sentido e significado a toda e qualquer existência, por que razão não existe uma só Religião? Eu compreendo as reservas do bispo Barron, e compreendo a decisão dos capelães de Harvard ao reconhecer no ateu alguém que os pode ligar, mas no meio de todo este rebuliço alguém se questiona o que Deus quer dizer-nos com tudo isto?
O desafio que o ateu representa para o crente é o de que talvez o crente pense menos em Deus do que poderia e, na prática, arrisca-se a que a sua fé religiosa num mundo pleno de tantas coisas atractivas se torne superficial. O diálogo entre as religiões é uma enorme fonte de riqueza para a descoberta da própria religião. No caso cristão que conheço melhor, corresponde ao que chamamos de sementes do Verbo através das quais Deus caminha connosco das formas mais criativas, acompanhando a história cultural multifacetada da humanidade .
A tendência para o desligar da experiência religiosa está na sua superficialidade quando restrita a prescrições em nome de uma doutrina incapaz de continuar o seu caminho de profundidade a par com a evolução dos tempos. A existência de Deus é um pressuposto de muitas religiões e, talvez por isso, se tenha tornado uma experiência mais intelectual do que incarnada na vida quotidiana onde as dores se misturam com os significados.
Também eu pensava que Deus era um pressuposto da minha crença n’Ele até explorar a fé como a busca de uma vida profunda em Deus através das dúvidas. Isto é, das incompreensões de determinadas coisas acontecerem e outras não, do desconforto gerado pela diferença de experiências de vida e de religião do outro, ou dos sofrimentos para os quais é-me difícil encontrar outro consolo senão chorar com quem chora e cantar o silêncio orante de quem espera em Deus a conversão da dor em amor.
As experiências de Deus que levam muitas pessoas a desconsiderar a religião são, frequentemente, as do sentimento de um certo abandono da parte de Deus. Pedimos e não recebemos, mas será que ponderamos que o nosso pedido não seria o melhor para nós? Ou será que colocar as coisas desta maneira é dar uma desculpa para a incompreensão que fazemos do modo como Deus age? O ateísmo é a demonstração que eu sempre precisei da existência de Deus por acreditar que Ele nos fez realmente livres. Por isso, se não houvesse quem não acreditasse na Sua existência, a minha crença em Deus seria posta em causa. Por outro lado, dado que Deus é um Mistério insondável, e a vida faz-se de coisas cada vez mais concretas, a experiência religiosa tem outras exigências e outras potencialidades quando procura ligar estes dois pólos. Algo a descobrir com caminhos como o sinodal que pretendemos fazer juntos.
Poucos estão cientes de que também Jesus sentiu o abandono paradoxal do Pai, de Deus (Mt 27, 46), de quem disse serem um só (Jo 10, 30). Por isso, o sentimento da ausência de Deus não é novo no âmbito das experiências religiosas mais profundas e transformativas, mas o convite que o testemunho de Jesus nos faz em épocas de viragem cultural (como a nossa) é a saber aprender a procura de Deus, com criatividade e profundidade, até mesmo com os ateus.
Para acompanhar o que escrevo pode subscrever a Newsletter Escritos em https://tinyletter.com/miguelopanao
;