SABER APRENDER – A higienizar a vida com profundidade

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Os desafios não continuam apenas com o aumento do número de novos casos de coronavírus. Há, agora, a perspectiva aberta pelas diversas vacinas de começarmos a sair desta pandemia, mas a sua distribuição não será fácil. E, falta ainda começarem a desenvolverem-se os tratamentos para aqueles que contraiem o vírus. Mas se todos os desafios fossem biológicos! Há ainda os sociais e, sobretudo, os espirituais. Sairemos desta pandemia com uma vida espiritual mais profunda?

Um dos maiores motivos de indignação e inconformismo que me têm chegado por amigos é o da relação entre a higienização (limpeza das mãos) e a purificação (limpeza da alma), sobretudo na experiência que se faz na Sagrada Comunhão. Há quem coloque em questão se as pessoas acreditam na presença real de Deus na Eucaristia pelo excesso de preocupação que vêm na Igreja em relação à higienização. Felizmente, as duas coisas não são contrárias, mas complementam-se.

Quando estava na missa e pensava nesta — aparente — contradição, ao higienizar as mãos, antes de receber Jesus presenta na Hóstia Consagrada, pensei como este gesto dignifica o sacramento e, questionei, se antes da pandemia já o devíamos fazer. O higienizar das mãos pode ser um gesto de purificação como faz, por exemplo, o sacerdote antes da consagração ao lavar as mãos. Por isso, ao contrário do que as pessoas possam pensar, o cuidado que a Igreja tem com a higienização em geral, além de ir ao encontro das normas definidas pela DGS, tornando-se num testemunho social e cultural, revela, inesperadamente, uma oportunidade de aprofundamento espiritual. Ter as mãos limpas para tocar o Senhor, recebê-Lo e deixar que Ele me transforme a partir de dentro parece ter sentido e significado. O que pode estar por detrás da ideia de que higienizar é não acreditar na presença de Deus na comunhão por ser outra coisa, e mais séria: uma ideia errada da acção de Deus.

Uma das visões da acção de Deus é a de este ser intervencionista. Isto é, a de Deus como Alguém que intervém directamente nos processos deste mundo. Até hoje, não vi qualquer sinal disso que não fosse em Jesus. O que vemos nos milagres não são coisas fantásticas que não conseguimos explicar cientificamente, mas experiências que desafiam, profundamente, a nossa visão do mundo. O milagre da Sagrada Comunhão está mais na transformação da vida interior, de onde tudo parte e para onde tudo se dirige, do que numa acção intervencionista no sentido físico e biológico do termo. Mas quer isto dizer que a transubstanciação não é uma realidade física?

A Consagração Eucarística, na minha experiência como cientista e crente, vai muito, mas muito para além de uma questão de realidade física, tocando antes o âmago da realidade em si mesma. Isto é, reconhecendo que a Realidade é uma eterna supresa, Jesus presente na Eucaristia toca TODA a Realidade, com as suas múltiplas e insondáveis manifestações, relações, e não um aspecto particular da mesma. Ou seja, a grandeza da Eucaristia está no facto de ser um Mistério maior que o tamanho do Universo (conhecido e desconhecido), e estar tão próximo de cada um de nós que até o podemos comer.

A vida interior, onde a Eucaristia mais exerce a sua acção, fica em perigo quando damos corpo a ideias contrastantes como a higienização das mãos e a higienização da alma. Pois, significa que nos desligamos da questão fundamental que vivemos no tempo presente — «Senhor, o que me queres dizer com tudo isto?»

Se metade da minha cara se tapa, mais terei de falar com a metade que os outros vêem.

Se me sinto sufocado com a máscara, posso oferecer esse sofrimento pela conversão dos pecadores.

Se tenho medo da proximidade dos outros pelo risco de ser contagiado, posso lembrar-me de que a distância é um simples dar espaço para que o outro se sinta seguro e amado.

Se acredito, realmente, que Jesus está presente na Eucaristia, não é a preocupação da Igreja com a higienização que me leva a colocar essa presença em questão.

Ou abraçamos a oportunidade que a pandemia nos dá de ter uma vida plena e profunda, que não se deixa esmorecer com os detalhes, mas usa-os como passos no caminho de santificação pessoal e colectiva, ou estamos a perder o nosso tempo de vida espiritual.

A acção de Deus ocorre nos processos, não nos meios, ou fins. Como cientista, o maior desafio não está em produzir artigos para aumentar as métricas pelas quais sou avaliado, mas em manter puro o desejo de saber e a curiosidade em relação a tudo o que existe no mundo. Os processos são o que realmente gera dinâmica neste mundo. Resultam do cruzamento de inúmeras histórias, e ninguém sabe por onde tudo começou, e para onde tudo se dirige. É um jogo infinito como infinito é Aquele que o criou. Deus intervém a partir do interior dos processos. Daí que não seja muitas vezes evidente o seu agir, uma vez que o não-intervencionismo implica a discrição, o silêncio, o respeito pelo espaço e a serenidade sem tempo.

Eu compreendo que não vivemos num tempo fácil. Parece que tudo desmorona à nossa volta. Até os rituais a que estávamos habituado parecem ser postos em causa. Mas o que devíamos por em causa é a vida antes da pandemia. O que a pandemia mostrou é que não estávamos preparados, ou suficientemente desapegados da vida anterior, para acolher a vontade de Deus no momento presente.

Não baixemos os braços. Aproveitemos esta oportunidade para trabalhar em nós a profundidade espiritual. Peçamos a Deus a luz para entender o essencial de cada aspecto da nossa vida. Seja na doença, na prevenção, na distância, ou higienização.

«Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti.»

É o que dizia Santo Agostinho, e é o que podemos dizer, hoje, em cada momento de oração. A inquietude pode ser o sinal de que algo em mim tem de mudar. A inquietude tira-me do conformismo de uma vida sem dificuldades. Talvez o repouso em Deus se encontre nos mais pequenos e conscientes gestos de amor. Nem que seja com o higienizar das mãos antes de O receber.

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