SABER APRENDER – A escrever

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Durante esta pandemia, as pessoas sonham com a covid-19, vivem ansiosas, tristes por não poderem estar do mesmo modo com os que mais amam, e a sensação que dá é a da necessidade de uma terapia social e relacional depois de tudo isto terminar. Há quem não consiga sair da solidão que vive quando está confinado. Porém, creio que todos temos a solução para lidar com todas estas dificuldades na mão. Literalmente. Basta voltar a (manu-)escrever.

Foto de Jessica Delp em Unsplash

Escrever com a mão é uma forma de pensar, de nos libertarmos das nossas preocupações e de nos organizarmos interiormente. Escrever, pensar e aprender são o mesmo. E não é algo reservado a quem tem pensamentos muito profundos, ou se considera muito conhecedor das artes e ciências humanas, ou quem acha ser uma alma sensível e com dom para os jogos de palavras. Não. Escrever, para quem aprendeu ou pode vir a aprender, é pensar no papel.

O novo livro de Barak Obama, ”Uma Terra Prometida”, foi escrito à mão. J.K. Rowling, autora da série Harry Potter, escreveu as mais de 150 páginas de “Os Contos de Beedle, o Bardo” à mão. Também outros grandes escritores, como F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, escreviam à mão por ser um processo de atenção plena que encoraja a serenidade e a criatividade. Escrever à mão afecta tanto o nosso cérebro, como a nossa interioridade.

Os investigadores Karin James e Laura Engelhardt, da Universidade de Indiana nos EUA, realizaram um estudo que demonstrou como a escrita à mão se correlaciona com a capacidade de uma criança em aprender a ler. Aliás, as zonas activadas no cérebro pela escrita à mão são semelhantes às activadas durante uma meditação.

O movimento caligráfico da mão pode ser repousante e despertar em nós a criatividade, desenvolvendo ainda a capacidade de concentração. Em 1985, o escritor Robert Stone, numa entrevista para a Paris Review, partilha que — «escrevo à mão para ser preciso. Na máquina de escrever ou no processador de texto, podes-te apressar a algo que não deve ser apressado. Podes perder a nuance, a riqueza, e a lucidez. A caneta impele à lucidez.»

Ou como diz William Zinsser, autor de ”Writing to Learn”, «escrever organiza e clarifica os nossos pensamentos. Escrever é o modo como pensamos sobre um determinado assunto e tornamo-lo nosso. Escrever permite-nos perceber o que sabemos — e o que não sabemos — sobre seja o que for que estamos a aprender. Colocar uma ideia em palavras escritas é como descongelar o vidro do carro; a ideia, tão vaga no meio de uma neblina cerrada, lentamente, começa a transformar-se numa forma sensível.» Por isso, este autor sugere que um dos melhores modos de aprender seja o que for é escrever sobre isso.

Por outro lado, a essência de escrever é re-escrever. Por isso, cada texto é como se fosse um organismo em permanente evolução. Mas com a gradual intromissão dos ecrãs no tempo de escrita, fomos perdendo a capacidade de raciocínio que essa desenvolvia, assim como se tem reduzido a capacidade de prestar atenção. Porém, voltar a escrever trabalha a neuroplasticidade do nosso cérebro e podemos voltar a desenvolver essas capacidades.

A pandemia obriga-nos a um sério exame de consciência sobre o que valorizamos na vida, e se esses valores nos movem na direcção de uma vida profunda.

Lembro-me de haver um tempo há, talvez, uns dez anos, em que a minha escrita restringia-se somente a teclados. Cheguei mesmo a pensar se seria capaz de assinar um documento. Aliás, quando isso acontecia, sentia que a letra tremia como se tivesse as mãos emperradas e descontroladas. Depois, quando iniciei a experiência de escrever todos os dias três páginas sobre aquilo que quisesse, sem filtros, — as páginas matinais — notava como a legibilidade da letra se relacionava com o meu estado de alma. Se estava mais ansioso ou preocupado, ou cansado, a letra era quase ilegível, a mão doía, e até aumentava o tamanho para acabar de escrever. Hoje, passados vários meses, tenho feito a experiência da lentidão caligráfica. Quando diminuímos a velocidade, encontramos uma paz surpreendente, um desejo crescente de beleza, e até começamos a modificar o modo como escrevemos algumas letras para que o texto fique mais belo caligraficamente. A mente sereniza-se e clarifica-se.

As pessoas que pensam ter muito que fazer e não vêem valor nesta prática, possuem uma resistência natural à ideia. Ou dizem ser melhor escrever nos dispositivos porque tudo fica mais “partilhável”, sincronizado em todos os aparelhos, e não corremos o risco de perder as ideias que temos ao longo do dia. Mas a ideia é outra. Não a de substituir as vantagens que as novas tecnologias permitem, mas a de desenvolver a escrita à mão como uma prática de vida profunda.

Quem escreve na solitude, realiza por instantes um encontro com o seu interior. Há quanto tempo não te encontras com a tua consciência? Com os teus pensamentos, ideias, preocupações e receios. Quando escrevemos, reencontramo-nos. Por isso, diminuímos, também, o peso da solidão dos confinamentos pelo bem dos outros em tempo de pandemia.

A mão pode tremer, ou doer porque estamos desabituados, mas não importa se a letra é bonita ou feia. O que importa é o momento rico de interioridade que escrever pode ser. Pode, inclusivé, ser um momento de oração e diálogo explícito com Deus. Escrever-Lhe sabemos que lê enquanto escrevemos. Quem sabe se começamos até a escrever algo que sentimos não vir de nós, mas d’Ele dentro de nós.

Saber aprender a escrever é criar um hábito que alimenta uma vida profunda, afastando-nos da superficialidade, ou libertando-nos dos rigorismos farisaicos que nos podem tentar com falsas certezas nestes tempos incertos. Por fim, o que escrevemos deixa um pouco de nós neste mundo. E se o que outros escreveram, muito antes de nós, ajuda-nos a caminhar para uma vida profunda, sem pretensões, quem sabe o que as nossas palavras podem fazer pelas gerações futuras.

 

SABER MAIS

  • James, K. H., & Engelhardt, L. (2012). The effects of handwriting experience on functional brain development in pre-literate children. Trends in neuroscience and education, 1(1), 32-42.(LINK)
  • William Zinsser, “Writing to Leanr”, Harper & Row, 1989.
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