SABER APRENDER – A descobrir as cinzas digitais

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

A quaresma é um período de reflexão profunda sobre o que realmente tem valor na nossa vida. E sempre me pareceu curioso começar com as cinzas. Pó, muitas vezes desprezado, mas que nos lembra sermos pó das estrelas. Pensar que também Jesus era feito do pó das estrelas eleva o significado que as cinzas podem ter na sociedade virtualizada que temos hoje. Os valores vivem mais da realidade física, do pó, do que da sua virtualização. Porém, é inegável que a vida humana se orienta muito por essa virtualização. E nesse sentido questionei-me sobre o que poderão ser, e como descobrir as cinzas digitais deste tempo.

Como estamos num período em que não podemos, ainda, realizar celebrações presenciais, o gesto das imposição das cinzas não se realizará. E só quem estiver demasiado apegado aos sinais sensíveis e visíveis é que terá mais dificuldade em aceitar a impossibilidade de viver essa manifestação de fé como desejaria. Quando o sacerdote faz o sinal da cruz com as cinzas, pronuncia as palavras — «arrependei-vos e acreditai no Evangelho.» A sabedoria milenar escrita no Livro do Génesis de que «tu és pó e ao pó voltarás» (Gn 3, 19), reconhece a materialidade da nossa vida e o seu carácter transitório. E cada um de nós é feito do pó que fez parte de coisas mais inimagináveis da história deste planeta. Por isso, há uma ligação intrínseca entre este pó que somos e aquilo que esse pó foi no passado. Tudo a nós se liga, e nós estamos ligados a tudo por sermos pó.

A interconectividade, os relacionamentos, fazem de tal forma parte da nossa natureza que nos descobrimos, a cada momento, como seres relacionais. Por isso, não é de admirar que a conectividade digital que extraíu muita da fricção aos relacionamentos tenha evoluído tanto na última década. Se esta noção de sermos pó das estrelas está na nossa origem, no tempo da quaresma, importa pensar sobre as nossas origens e examinarmos a vida à sua luz.

Na origem da vida profunda, alimentada pelo crescimento e amadurecimento espirituais, está o reconhecimento do ser humano ter sido criado à imagem de Deus. Por isso, a imagem que temos de Deus influi muito sobre a imagem que temos de nós próprios. Em Deus-Trindade nada se consegue compreender ausente do elemento relacional. Por isso, toda a Sua criação está envolta de uma dinâmica relacional sem a qual não é possível compreender de onde vimos, onde estamos e para onde vamos.

Criados à imagem de Deus, e criados diferentes nas expressões masculina e feminina do ser humano, a comunhão da nossa diversidade é um reflexão da comunhão profunda que Jesus nos revela ser o cerne da Trindade. O teólogo australiano Denis Edwards, no seu livro ”Made from stardust”, afirma que — «todos os elementos químicos na mão e cérebro humanos foram forjados na fornalha das estrelas. (…) Nós somos netos das supernovas. Nós somos, de facto, feitos de pó das estrelas.»

Como a molécula de ADN que nos torna únicos não apareceu do nada, mas provém de uma evolução na Terra com milhares de milhões de anos, sem esse tempo, e sem a evolução do nosso ADN, não existiríamos como somos. Através da evolução do ADN, cada um de nós liga-se à rede de relacionamentos que ocorreram ao longo da história do planeta. Assim, como diz Edwards, «os nossos corpos podem ser pensados como fósseis vivos, relíquias do movimento evolucionário que começou com a primeira expressão de vida nas algas verde-azuis, e continua em nós.» Todos fazemos parte de um contínuo que vem e que vai.

O físico Paul Davies diz, também, que — «a ciência pode explicar todos os passos pelos quais o universo evolui em relação ao seu destino, mas isso deixa, ainda, espaço para haver um significado por detrás da existência.» O sinal que as cinzas representa apela-nos a procurar, particularmente neste tempo, esse significado. E não chega usar o cliché de que encontramos o significado em Deus. Pois, afirmá-lo não quer dizer que compreendemos o que estamos a afirmar. Caso contrário, por que razão haveríamos de insistir na vivência da quaresma todos os anos litúrgicos? Por outro lado, a virtualização da vida introduz um elemento sem corpo aos nossos corpos. Bastaria pensar na enorme quantidade de relacionamentos virtuais que vivemos des-incorporados, mas reais, porque nos afectam de inúmeras maneiras.

Cinzas. Pó. Um apelo ao arrependimento. Um apelo à conversão. O que pode significar isso na era digital? Podemos associar as cinzas e o pó aos elementos base que constituem a nossa vida. E não me refiro somente aos materiais. Os nossos pensamentos, actos e relacionamentos constituem-nos mais do que a matéria. Existem pensamentos, actos e relacionamentos que nos impedem de ser aquilo que Deus nos chama a ser. E aquilo que Deus nos chama a ser não está pré-definido porque todos somos chamados ao amor. Ora, o amor transforma-nos por dentro a cada momento de descoberta de algo novo sobre nós, transformando, por isso, o nosso pensar, fazer ou relacionar e, consequentemente, a compreensão daquilo que Deus nos chama a ser. Isto é, qual a Sua vontade para nós.

A desincorporação da nossa vida em duas facetas — a real e a virtual — veio expandir, inesperadamente, o horizonte dos pensamentos, dos actos e dos relacionamentos. Os fluxos de informação excessivos levam-nos, hoje, a ter uma grande dificuldade em distinguir facto de ficção. A capacidade de influenciar digitalmente quem está longe, levou-nos a agir à distância, por exemplo, com jogos como a baleia-azul que levaram crianças a cometer suicídio. E os relacionamentos começaram a estabelecer-se com quem nunca conhecemos fisicamente, superficializando os relacionamentos estabelecidos com quem conhecemos pessoalmente (por vezes, dentro da mesma casa). De tal modo que, em muitos relacionamentos, prevalece mais a mensagem escrita editável, sem voz, ou cara, do que o encontro com o outro. Mas a solução não está em regredir, ou eliminar, a faceta virtual da nossa vida. Há que renascer, também, das cinzas virtuais.

As cinzas são um convite à purificação dos nossos pensamentos, actos e relacionamentos. O jejum que fazemos de certos alimentos com o sentido de purificação da vida real, inspira a um jejum adaptado à purificação, também, da nossa vida virtual. O período da quaresma oferece uma oportunidade de fazer um sério exame de consciência à nossa vida virtual.

Eu comecei a fazer esta experiência com uma simples alteração das cores do meu ecrã, e eliminação de algumas aplicações que me mantinham demasiado tempo com o telemóvel na mão. A cor do meu ecrã, agora, é cinzento (carreguei 3x seguidas no botão Home do iPhone). São parte das cinzas digitais que me recordam o essencial do arrependimento e de orientar mais os meus pensamentos, actos e relacionamentos para a profundidade do Evangelho. Algo a saber aprender durante este tempo.


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