Religiosidade Popular: «Os valores cristãos não são para estar fechados dentro da igreja» – padre Miguel Neto

O mês de junho traz consigo grandes festejos de norte a sul do país. Nas proximidades da celebração dos Santos Populares é convidado da Renascença e da Agência Ecclesia, o diretor da Pastoral do Turismo-Portugal

Foto: Agência ECCLESIA/MC

Os Santos Populares são uma das maiores manifestações coletivas das crenças da religiosidade popular no nosso país, com ou sem relação com o ritual oficial, até pela sua ligação com práticas antigas, que assinalavam a chegada do verão. Pergunto-lhe se esta religiosidade popular deve ser educada e como é que devemos olhar para estas celebrações dos Santos Populares que enchem as nossas cidades

De facto, a religiosidade popular é uma cristianização daquilo que eram as festas que davam início ao verão e aqui no nosso país é sempre algo muito característico e muito identitário até da nossa vivência cristã. Há uma mistura entre aquilo que é a tradição quase civil e a tradição religiosa. Um exemplo disso, perfeitamente, é as festas de Santo António em Lisboa, onde existe aquela tradição dos casamentos, que de um lado são sacramento e do outro lado não são.

Mas é uma face muito visível daquilo que é o cristianismo cultural e daquilo que é a celebração dos nossos valores judaico-cristãos na nossa cultura. É algo que muitas vezes, por uma parte da Igreja mais intelectual ou mais pastoral, no sentido de centrada naquilo que são as estruturas da paróquia, muitas vezes é esquecida, mas é uma ótima forma de aproximar as pessoas daquilo que é a vida concreta da comunidade cristã.

 

Do ponto de vista da reflexão teológica, falta valorizar efetivamente a utilização destes sinais e gestos simbólicos que expressam uma componente profundamente humana e também religiosa?

Sim, falta. Em muitos casos não é determinantemente valorizada, em outros, passa-se até nas paróquias mais antigas. As pessoas preocupam-se mais com os bailaricos, com as festas, com a parte… Não gosto de usar a palavra pagã, mas com a parte que mais profana do que com aquilo que é a questão da dimensão das procissões. E, em muitos específicos do nosso país, também há uma forma de pessoas que têm a sua origem naquele povo, naquela terra, mas que vivem noutras terras mais envolvidas ou mesmo até no estrangeiro, virem porque gostam das festas da sua terra, da sua paróquia, da sua freguesia. É uma forma de rever amigos e de não nos esquecermos do sítio onde nascemos e onde fomos criados.

 

Mas para valorizar essa dimensão de fé, não pode fazer falta mais criatividade. Usando até uma imagem que foi referida no recente congresso eucarístico nacional, a fé também pode cheirar a manjerico?

Não só pode, como deve, porque a fé não é discurso teológico. Vamos la a ver, só há 60 anos é que as pessoas começam a ter acesso a alguns discursos teológicos e algumas intelectualidades de uma forma mais próxima, quer seja pela questão da literacia, do alfabetismo, quer seja pela questão das traduções da Sagrada Escritura no âmbito católico. E a fé sempre cheirou a manjerico, sempre foi uma questão de pessoas mais populares.

 

É uma manifestação da alegria, não é?

É uma manifestação da alegria, e essa ideia de a fé cheirar a manjerico é uma imagem interessante e é uma forma de ver que os valores cristãos estão lá. Isso é algo que é muito importante valorizar cada vez mais, que os valores cristãos não são para estar fechados dentro da Igreja, não são para só alguns intelectuais cristãos ou teólogos os valorizarem.

 

Podemos afirmar que o crescimento do turismo ajudou a recuperar muitas destas práticas que tinham vindo a perder fulgor por força de um maior interesse nas manifestações mais genuínas das diferentes localidades?

Sim, isso é claro. Aquilo que é o turismo, sobretudo o turismo de pessoas que não são portuguesas, gostam muito das festas populares. Eu vejo isso até no Algarve, os turistas acham muito típico e muito genuíno as festas populares, sobretudo nas terras menos turísticas, ou seja, provavelmente nas terras com mais turismo de sol, praia ou vida noturna, uma festa popular não tem assim tanto impacto. Mas começa a haver uma procura por zonas não tão exploradas do turismo de massa, que não tão dependentes do turismo de massa, mas que utilizam estas festas e esta capacidade de ser genuíno, até pela questão da alimentação, porque nessas festas a alimentação é algo muito importante e que muitas vezes têm os pratos típicos e dão aso à exploração da dieta mediterrânica que é muito valorizada pelos turistas.

 

E olhando também para o contexto mais geral, isto que aconteceu é um bom exemplo de que é possível conciliar a preservação das tradições e dos ambientes próprios com a chegada de novos públicos, por assim dizer?

É a prova e é a demonstração de que é uma necessidade. O turismo sendo uma porta cada vez mais valorizada pelos documentos da Santa Sé,  até pela mudança recente do dicastério que foi para o dicastério da nova evangelização; o turismo como porta de entrada na fé cristã, como parte do anúncio da primeira evangelização, é muito importante usar estes campos onde há uma mescla entre fé e convívio, identidade local, para fazer o seu anúncio e demonstrar que a Igreja não é uma Igreja fechada, mas é uma igreja aberta a todos e que faz parte da nossa identidade, claramente.

 

A reapropriação destas festas e tradições também pode gerar conflitos, quando não se preserva a memória que lhes dá a identidade?

Sim. Há aqui duas questões que são muito complexas. Uma tem a ver com o facto de muitas destas festas precisarem de uma ajuda de pessoas exteriores à Igreja, ou seja, pessoas que nós… lá está uma linguagem que é errada, mas que para todos percebemos, de pessoas, de cristãos não praticantes, mas que são pessoas muitas vezes associadas às juntas de freguesia, às câmaras, a comissões de festas que não têm um papel ativo na comunidade cristã, mas que valorizam mais estas festas do que a vivência da Eucaristia, pronto. Aí pode entrar em algum conflito porque querem fazer algumas coisas que não estão de acordo com aquilo que é a fé cristã, e depois essas apropriações até com outros campos de atividades que podem entrar em choque.  Mas eu acho que há espaço para tudo. Há espaço para tudo.

 

Foto: Agência ECCLESIA/MC

E até que ponto a celebração dos Santos Populares também ajuda a diversificar os pontos de interesse ligados ao turismo religioso? Continua a ser necessário apostar na diversificação de locais, até para que não se diga que o turismo religioso se circunscreve a dois ou três locais?

Sim, e isso é muito importante, sobretudo ao nível do interior, fora dos grandes círculos de turismo religioso, Fátima, Braga, que são os círculos maiores, mas também aproveitar essas festas para mostrar aquilo que as terras mais longínquas têm.

Eu acredito que, por exemplo, uma pessoa que vá às festas de Miranda do Douro, ou mesmo às festas dos Tabuleiros a Tomar, depois tem curiosidade em conhecer o templo, tem curiosidade em conhecer o sítio, há um desenvolvimento do turismo, e a Igreja tem de aproveitar essas festas, para além da questão do anúncio, mas também quanto a manter esse cariz tradicional, com as necessárias adaptações…

 

E a Igreja ainda não deu esse passo?

Esse passo não depende tanto da Igreja geral, mas depende da capacidade de execução local. Nós podemos incentivar, podemos nas nossas jornadas falar nisso, e falámos nas últimas, que foi sobre a questão da ecologia, vamos falar nas próximas que vão ser sobre a questão da sustentabilidade e da economia social, mas se não depender do Pároco, ou do Bispo, ou da questão local, nós não conseguimos alterar. É um pouco como o Vaticano, que pode emanar os documentos todos e pode falar sobre muitas coisas, mas quem tem o poder executivo e quem está no terreno, é que tem de esforçar-se por alterar mentalidades e aproveitar isso.

 

Falou agora do Vaticano, e ficamos a conhecer recentemente a mensagem para o Dia Mundial do Turismo de 2024. Nesse texto, a Santa Sé sublinha o potencial do turismo, desta grande movimentação de grandes massas humanas para a construção da paz, por força do intercâmbio cultural, do contacto entre povos, é uma mensagem necessária no momento que vivemos?

É, não é necessária, é imprescindível. É imprescindível, porque o turismo é a habilidade da indústria da paz, porque é através do turismo que nós conseguimos compreender as outras culturas. E repare, há gente que faz muito turismo, mas quer o turismo sem se preocupar em conhecer o outro povo. Isso para já é uma questão que a mim perturba-me particularmente. Como é que as pessoas vão a determinados sítios, por exemplo, ou passear a determinados locais, e não se interrogam sobre a cultura, ou sobre as festas que estão naquela localidade?

 

Ficam numa espécie de bolha, não é?

Por exemplo, eu espanto-me, e já me aconteceu, ver pessoas que vão fazer turismo e que a preocupação deles é saber onde é que está o centro comercial mais próximo. E atualmente, com a globalização que assistimos, há coisas que são iguais, em todos os sítios; em Lisboa, no Porto, no Algarve, em Espanha, em França, ou seja, as mesmas lojas, o mesmo tipo de alimentação. Mas cada vez é mais valorizado aquilo que é o típico e o genuíno daquela localidade. Eu dou sempre o exemplo de um senhor que uma vez foi numa viagem comigo à Itália, e ao final de dois dias reclamou porque não tinha sardinhas assadas e salada à montanheira, que é uma espécie de salada de gaspacho, que é muito típica aqui do Algarve. E só comia massa. Eu disse, desculpe, o senhor veio para a Itália, em Itália come-se massa, não se come sardinhas assadas.

 

Padre Miguel, historicamente a religiosidade cristã sempre se expressou com recurso às peregrinações, e estamos a caminho do ano santo, o jubileu de 2025. Será uma oportunidade para valorizar ainda mais esta dimensão da fé que chega a cada vez mais pessoas, e muitas vezes por motivos não explicitamente religiosos?

Sim, e por isso mesmo nós estamos a tentar fazer um trabalho em conjunto com o Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja e com o Turismo de Portugal, de fornecer alguns subsídios para as pessoas que vão fazer as peregrinações, e que os caminhos de Fátima, os caminhos de Santiago, e que querem algum subsídio mais espiritual. Porque atualmente essas pessoas que fazem esses caminhos, essas peregrinações, muitas delas não têm a vida cristã comunitária, fazem ou por uma questão esotérica, ou por gosto, ou por caminhada, ou por vários motivos.

 

Mas estão a preparar algum guião espiritual para essas pessoas?

Sim, temos esse projeto com o Secretariado Nacional dos Bens Culturais, sim. Já tinha existido, mas nós vamos adaptar e sobretudo torná-lo em suporte informático, porque para uma pessoa que faz uma peregrinação não é muito útil ir com um livro nas mãos.

 

Pergunto-lhe, noutro plano, o Pastoral do Turismo tem-se feito apresentar em grandes palcos e em grandes surtamos direcionados para o setor. Recentemente estivemos na BTL (Bolsa de Turismo de Lisboa), onde também tivemos a oportunidade de fazer reportagem. Que importância tem a participação nestes eventos?

Tem uma importância de fronteira, de a Igreja estar onde se discute o turismo e onde as pessoas que trabalham e pensam em turismo estão. A presença da BTL no pavilhão do turismo religioso é muito importante, essa presença vai ser alargada.

Vamos iniciar um conjunto de reuniões com a Câmara de Ourém, com o Turismo de Portugal e com outras entidades para alimentar e aumentar a presença nos mesmos moldes este ano e no próximo ano. Também recentemente estivemos na INVTUR, que é, por assim dizer, do ponto de vista universitário, que se reúne dois em dois anos na Universidade de Aveiro, o maior congresso, o maior evento do âmbito universitário, do âmbito académico sobre turismo, onde a Pastoral do Turismo foi responsável por um ateliê, entre os vários que estivemos lá para discutir a questão do turismo religioso. Fomos convidados a apresentar um apontamento no Brasil, em conjunto com o Pastoral do Turismo brasileira.

Ou seja, é essencial essa presença porque senão ficamos enclausurados na Igreja e na Sacristia. E as pessoas que pensam, as entidades que tratam do turismo, como o secretário de Estado, com quem vamos ter uma reunião brevemente, que é uma pessoa também católica, praticante, o atual secretário de Estado do Turismo, Pedro Machado, e os âmbitos académicos e governamentais, é muito importante para nós tomarmos consciência das verdadeiras dificuldades e da realidade onde se decide o turismo.

 

Padre Miguel, tem sido uma preocupação da Pastoral do Turismo alertar para os efeitos da chamada pegada turística. Com frequência tem falado da necessidade de uma pastoral “Laudato si”. Encontra também essa preocupação nas instituições, nos municípios, ou as chamadas taxas turísticas são apenas mais uma boa fonte de receita?

São uma boa fonte de receita, e há outras iniciativas, mas há uma preocupação.  A nós, compete-nos simplesmente alertar aqueles que praticam turismo e aqueles que trabalham no turismo, aqueles que vão de férias, a preservar o que encontraram e para quem vier a seguir. Mas, genuinamente, eu noto que há uma preocupação. Nesse congresso em que participamos, na INVTUR, cada vez mais se falava do turismo sustentável e ecológico, e até foi citada a própria “Laudato Si” como um apelo para essa realidade.

 

Vamos ao exemplo português: nós estamos a assistir aquilo que se chama um turismo de massa, e temos tido a preocupação, a prevenção para que essa pegada não seja tão evidente?

Bem, em algumas cidades é difícil. Em Portugal, provavelmente, seria mais difícil. Em Lisboa, no entanto, a pastoral do turismo local tem feito o possível para chamar a atenção. Mas esse fenómeno que se chama “turismofobia”, neste momento, verifica-se sobretudo em Madrid e em Barcelona. Em Barcelona quer-se limitar o turismo, assim como, por exemplo, em Veneza.

 

E há esse risco de chegar essa “turismofobia” a Portugal?

Há, mas em Portugal somos mais resistentes porque, se não for a indústria do turismo, a diferença de números da parte económica da indústria do turismo para a indústria mais seguinte é muito flagrante e se não for a indústria do turismo, temos aqui um dilema. Ou seja, se nós ostracizarmos o turismo, a partir desse momento, também não temos muito mais por onde crescer e para viver.

 

Foto: Agência ECCLESIA/MC

O turismo tem sido a galinha dos ovos de ouro da economia portuguesa, mas este não é um recurso inesgotável. Estamos em risco de desbaratar o recurso, até à exaustão?

Estamos. Por isso é que nós, e algumas entidades, falámos, por exemplo, nas últimas jornadas, sobre a “Laudato Si”, e as próximas é sobre a “Fratelli Tutti”. Ou seja, claro que há e há que criar outras questões para nós conseguimos viver. E depois também há uma outra coisa que tem a ver com a indústria do turismo, que é a inclusão dos imigrantes. Se, pronto, fala-se a política de imigração e é importante a questão de uma política de imigração.

Mas, na região onde eu vivo, no Algarve, se não fossem os imigrantes não havia trabalhadores para o turismo.

 

Recentrando-nos na questão do facto do turismo ter sido ou ser a galinha dos ovos de ouro, é necessário preservar o turismo como setor importante da atividade económica? E como é que se previne a situação?

Eu se tivesse uma solução, estava a escrever neste momento um livro. Eu acho que tem a ver, da parte da Igreja, previne-se com a questão do conhecimento e de mostrar e de criar aspetos de sustentabilidade. A igreja também se preocupar com a sustentabilidade das pessoas e de mostrar e de falar da questão da indústria da paz e de mostrar que as pessoas que vêm de fora não nos maltratam, não são apenas depositários de dinheiro, mas que vêm conhecer a nossa cultura. Aí, da parte da Igreja, o trabalho que nós estamos a fazer até com incentivos a manter as igrejas abertas e tudo mais, tem a ver com uma questão de mostrar a identidade que nós temos a quem nos visita. Através das festas populares, foi a conversa que nós começamos e isso é importantíssimo, através do património, através de celebrações em outras línguas, há paróquias que têm celebrações em outras línguas, que ajuda perfeitamente àqueles que estão cá a viver e que são turistas a integrarem-se na comunidade.

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