Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & AutorEscrevem-se muitas palavras sábias que alertam sobre o retrocesso civilizacional que representa uma lei como a da eutanásia. E muito do que li aborda a esfera da experiência pessoal de quem faz voluntariado em hospitais com doentes em fase terminal, ou mesmo profissionais de medicina em cuidados paliativos. Os que estão a favor da lei sabem o que é melhor para quem pede a eutanásia, mas pouco tenho visto sobre quem vive a dor na pele.
Alison Davis é uma mulher que à nascença e durante a infância contraiu:
- espinha bífida, uma anomalia congénita do sistema nervoso
- hidrocefalia, uma doença onde o líquido cefalorraquiano acumula na cabeça, fazendo aumentar a pressão intracraniana e inchaço do crânio;
- efisema pulmonar, excessiva presença de ar nos interstícios dos pulmões que tornam difícil a respiração;
- e osteoporose, uma perda acelerada da massa óssea.
Aos 18 anos os médicos dizem-lhe que tem pouco tempo de vida e tenta várias vezes suicidar-se. Aos 30 anos, a espinha colapsa e vive períodos de uma dor física insuportável. Durante 10 deseja morrer, e diz que se a eutanásia fosse voluntária tê-la-ia pedido.
Uma vez tomou uma overdose de comprimidos para as dores e cortou os pulsos. Bebeu uma garrafa inteira de Martini e deitou-se à espera da morte. Como a sua porta estava sempre destrancada, uma amiga encontra-a e consegue levá-la para o hospital. Os médicos salvam-na contra a sua vontade.
Diz Alison num comentário publicado na “Disabilities Studies Quarterly” que ”se a eutanásia fosse legal, então, eu teria sido morta e, assim, negada a oportunidade de redescobrir o meu valor humano.
O ponto de viragem acontece em 1995 numa viagem que faz à Índia. Lá encontra-se com um grupo de crianças com deficiências. Enquanto jogava com elas, começam a chamar-lhe de “mamã” e repentinamente sente um ardor e vontade de as amar como se fossem filhos seus. Quando as deixou para voltar a Inglaterra disse para o seu assistente a tempo inteiro, Colin – ”acho que quero viver.”
Desde esse momento que funda uma instituição de caridade, a Enable (Working in India), para ajudar as centenas de crianças com deficiências que encontrou na Índia. Diz ainda Alison que “a eutanásia teria roubado os últimos 18 anos da minha vida, e teria roubado às ‘minhas’ crianças indianas um futuro para além de serem pedintes.”
Dar voz ao que sofre
A história de Alison é dura e comoveu-me. Ela encontrou um sentido humanitário para a sua vida que a eutanásia lhe teria negado.
Cada ser humano possui em si um desígnio de fazer coisas grandes. Não precisa de saúde plena para ter o coração do tamanho do mundo quando se dedica a aliviar o sofrimentos dos outros.
Alison dizia que
”a verdadeira compaixão está em lembrar os que sofrem de que o seu sofrimento não altera o seu valor humano infinito. (…) Aceitar os pedidos de uma eutanásia ‘voluntária’ é aceitar que a deficiência ou doença é um destino pior do que a morte.
As ‘minhas’ crianças Indianas salvaram a minha vida, não apesar do seu sofrimento, mas por causa dele. Argumentar que as pessoas que sofrem têm vidas inúteis é voltar as costas à maior aventura de aprendizagem que a vida pode oferecer.
Dei-me conta que só através da ajuda às pessoas que sofrem para que descubram a sua verdadeira, inerente dignidade e valor, é que podemos, realmente, permitir que pessoas vulneráveis vivam com dignidade até que morram naturalmente.
Em 2013, com 58 anos, mais 40 do que seria esperado, Alison Davis deixou-nos, mas faço votos que a sua voz e experiência continue a ressoar e inspirar, independentemente do resultado da votação na Assembleia da República.
Referências
Alison Davis, “A Disabled Person’s Perspective on Euthanasia”, Disability Studies Quarterly, Summer 2004, Volume 24, No. 3, Link: http://dsq-sds.org/article/view/512/689
Sobre Alison Davis: https://www.telegraph.co.uk/news/obituaries/medicine-obituaries/10512019/Alison-Davis-obituary.html