Peregrinando pela Bretanha

Relato do Pe. Aires Gameiro sobre as peregrinações em Honra de Nossa Senhora de Fátima Peregrinando pela Bretanha em honra de Nossa Senhora de Fátima – Maio, (14 a 25) 2004 Nota: convidado pela Obra Católica Portuguesa de Migrações (OCPM) a animar com pregação duas festas de Nossa Senhora de Fátima em Saint-Brieuc e Rennes passei este período com o P. André Daugan responsável da pastoral dos emigrantes portugueses na Diocese de Rennes e o P. Daniel da Diocese de St. Brieuc. No dia 14 e 15 tive ocasião de estar com os meus sobrinhos e seus filhos no norte de Paris com almoço de 15 pessoas, alguns dos quais a preparar o regresso a Portugal. Às 15.00 na estação de Monparnasse onde me esperava o P. André conversei com João Heitor dono da livraria Lusophone (Paris). No dia 15 à noite participação na Festa em St. Brieuc com o P. André e outros sacerdotes no terço, em que comentei um mistério, na procissão das velas e no arraial com sardinhas e caldo verde. O cônsul português de Nantes, Antero Aires Alves e esposa Adélia, acompanharam-nos à mesa. Participaram no terço cerca de 200 pessoas, na procissão 300 e no arraial da noite cerca de 600. Um quadro muito original de S. João de Deus do P. André esteve exposto nesta noite e no dia seguinte. Dia 16 (domingo) preguei na missa da festa das 11.00 na mesma igreja de São Guénelon em português e francês, que foi seguida de procissão de adeus e arraial com dois grupos de folclore e conjunto. Participaram cerca de 1500 pessoas, segundo o Jornal Ouest-France. Não faltou o frango assado e o bacalhau. Participou na festa, além doutros, o P. Daniel já missionário no Brasil e Vigário Geral da Diocese de Saint-Brieuc o qual foi o meu hospedeiro no Centro-Seminário de St. Yves, agora centro pastoral de formação e colégio sem seminaristas. O P. Daniel foi nosso guia durante aqueles dias. De tarde após o meu passeio a pé até ao centro da cidade ele levou-nos a passeio ao porto e à ponta do Roselier com bela vista sobre toda a imensa baia de Saint-Brieuc. Dia 17.05.04. Encontro de informação sobre Psiquiatria de Sector com a Dra. Suzane Duchène, psicóloga do Hospital de S. João de Deus (Dinan) na reforma. Criou a associação Vivre au Pluriel para atendimento gratuito de pessoas com problemas psicológicos e trabalha no Centro (Presbitério) Pastoral da Paróquia da Catedral. Vivre au Pluriel “atende as pessoas quando elas querem, enquanto querem”. Foi um encontro muito elucidativo sobre a Rede Vivre, Découvrir, Partager que engloba cerca de cinquenta estruturas a que as pessoas podem recorrer por problemas sociais e saúde, a maior parte gratuitos e ainda outros 25 para ocupações de lazer, ocupações, ateliers, desporto… Não se trata de hospitais. Esta visão da Saúde Mental de Sector ia ser completada nas duas visitas ao Hospital de S. João de Deus de Dinan que coordena todo o sector. Houve visita à Catedral que é de várias épocas mas principalmente do séc. XII e XIII. Pelas 15.00 encontro muito frutuoso com o P. Campion ligado à pastoral da saúde na Diocese. O longo colóquio centrou-se na pastoral em saúde mental. Esta passa por uma encruzilhada devido à desinstitucionalização. Cedeu-me um texto muito elucidativo das questões a enfrentar pela pastoral de saúde mental do leigo delegado diocesano de toda a Pastoral da Saúde Jean Claude Lemercier. Como organizar esta pastoral para doentes que só ficam duas ou três semanas internadas e para pessoas que recorrem a 30 ou 40 estruturas diferentes? Pelas 16.00 fomos cumprimentar o Bispo D. Luciano que nos recebeu com muita cordialidade. O P. Daniel ofereceu-me a seguir um passeio ao lado nascente da baia de Saint-Brieuc, Ponta des Guettes, Hillion, Igreja romana de St. Gobrian em Morieux com frescos recentemente descobertos. Na porta lateral de pé tocava o cimo com a cabeça! De passagem vimos o Centre Médico-Psychologique St. Benoit Menni para adultos aberto recentemente pelo Hospital St. Jean de Dieu que fica a 50 quilómetros e que coordena aquele. No dia 18. Tive a agradável oportunidade de ir com o P. Daniel e André a Dinan. Ali visitámos junto ao moderno lar das Irmãzinhas dos Pobres a casa rural onde entre 1849 e 1852 Joana Jugan recebeu do Irmão Félix Masson, Provincial dos Irmãos de S. João de Deus, sugestões, conselhos e apoio para a Regra das Irmãzinhas dos Pobres que ficaram como que afiliadas ao carisma de S. João de Deus. Acompanhou-nos um amigo o Dr. Michel Corneille descendente do famoso dramaturgo e que é um apaixonado pela literatura portuguesa, mormente Gil Vicente. Visitámos o nosso “Hospital S. João de Deus” (Psiquiatria) e a Exposição permanente de S. Bento Menni que conta os “golpes” de sofrimento que suportou nos últimos anos de vida, alguns ocasionados por Irmãos, vividos precisamente nesta casa onde faleceu a 24 de Abril de 1914. Almoçámos com os três Irmãos da Comunidade: Francis, Basil e Flavien. Às 15.00 celebrei na Capela da Comunidade para os Irmãos e as três Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus que trabalham no Hospital, sendo uma delas, Teresa, madeirense de Boaventura. A Superiora Irmã Estrella é a que assegura a capelania do Hospital e das suas 25 estruturas no terreno espalhadas por uma área imensa difícil de abranger. Fiz uma pequena homilia em francês valorizando a fidelidade e esperança dos religiosos mesmo poucos e idosos como começamos a ser quase todos. Soube que no sábado a seguir dia 22 o Irmão Flavien, presidente do Conselho Hospitalar, iria celebrar as suas bodas de ouro e logo ficou decidido virmos participar. À noite de regresso a St. Brieuc realizou-se uma reunião com o responsável diocesano dos emigrantes da Diocese de S. Brieuc e mais algumas pessoas sobre a problemática dos mesmos e possíveis linhas de acção. Foi muito rica pela troca de experiências e opiniões. No dia 19 deslocámo-nos, eu e P. André, de St. Brieuc para Rennes onde ia colaborar noutra festa de Nossa Senhora de Fátima de emigrantes desta Diocese em La Peinière. No caminho o P. André quis que conhecesse a sua aldeia junto de St. Pern (S. Paterno), que se chama La Rosais onde almoçámos uma sopa bretã preparada pelo seu irmão doente mas ainda com saúde e onde o P. André está a criar uma rede rural de entreajuda com pessoas sós, idosas e sofredoras. Nesta rede não circula dinheiro mas troca de géneros cultivados por cada um. Antes, porém, visitámos a casa dos pais de Chateaubriand em La Ouches perto de Guittés e ainda a casa Generalicia e de formação das Irmãzinhas dos Pobres. Tem uma impressionante Igreja neo-gótica dedicada a St. Joseph em plena área rural rodeada de enormes edifícios do século XIX. Após um café de uma italiana na praça de St. Pern visitámos a pequena cidade de La Becherel, toda ela, desde há anos, animada por 25 livrarias de alfarrabistas. No lar de idosos visitámos uma senhora portuguesa bastante doente de Calendário (Famalicão) que conhecia a nossa Casa de Barcelos. Em Rennes já pelas 20.00 tivemos um encontro informal, à volta de petiscos, de busca sobre humanização na saúde com duas médicas e um médico de Comores (Pacífico) especializado na China em medicina chinesa. A distância de posições foi abissal mas a reunião constituiu passo importante. Subjacente aos discursos pressentiam-se problemas e sofrimentos que não chegaram a aflorar muito. Nessa noite fui dormir a casa do sobrinho do Irmão Amadeu Cabral em Betton a uns 15 quilómetros a norte de Rennes, onde vive com a mulher francesa, duas filhas e um filho, ela enfermeira e o sobrinho informático. No dia 20 (5ª feira da Ascensão que é feriado e dia Santo) para aceder ao convite do cônsul para o almoço em sua casa, fomos a Nantes. Já na cidade tivemos missa na Igreja-Basílica de S. Teresinha. O almoço decorreu em clima comunicativo em que de parte a parte houve conversação franca e agradável sobre inúmeros problemas actuais de emigrantes, da sociedade e da Igreja. O regresso a Rennes sugeri que fosse por St. Nazaire, La Baule e Croisic para visitar o Centro S. João de Deus da Ordem para setenta deficientes físicos graves. Encontrámo-nos com o Irmão Pierre, com quem nos entretivemos à volta de um refresco. O Irmão Didier tinha ido à estação à procura de um visitante. Todo o Centro foi reconstruído há poucos anos por troca de terrenos para os destinatários actuais. Admirámos o tamanho dos quartos individuais e corredores larguíssimos para permitirem a circulação de carros/cadeiras eléctricas que quase todos os residentes utilizam dentro e fora de casa, pois todo ele funciona ao nível da estrada. O regresso deu-se por Redon a caminho de Betton onde tivemos jantar oferecido pela família Monteiro em sua casa. No dia 21 (6ªfeira) foi a vez de aceitarmos a hospitalidade do amigo Dr. Michel Corneille em St. Malo onde tem uma “Vila” antiga construída no passado por ingleses do lado sul do Canal da Mancha. Ali vive com a esposa, filha, genro e neto. Esta cidade, constituída por três núcleos, sendo o mais antigo muralhado com o porto que teve grande preponderância na história das viagens marítimas e no comércio triangular: fornecimento de abastecimentos a barcos portugueses e espanhóis que eram trocados por especiarias e escravos nos portos da África e do Oriente. Hoje é um grande centro de turismo para franceses e ingleses. O Senhor Corneille levou-nos a visitar a casa onde Joana Jugan começou a sua missão de acolher pobres, às ruínas da primeira Catedral chamada de Aleth, séc. XII, a Catedral actual dos séculos XII-XIII que foi grandemente destruída na última guerra (Agosto de 1944) e já reconstruída, a Grande Muralha e infinidade de ruas estreitas. Da muralha espreitámos a ilha Grande Bé onde Chateaubriand está sepultado. No caminho para o Monte St. Michel paramos para ver e fotografar a casa onde nasceu Joana Jugan em Concale .Entretanto foi comentadoa a interpretação de que Jugan será uma corruptela de João e que ela seria de ascendência portuguesa o que a sua cara morena emeridional confirmaria. Mais adiante, por altura de Roz parámos para um almoço de pescaria à beira da estrada. Monte St. Michel, sempre aquela maravilha e património mundial, enxameava de centenas de carros, autocarros e motas no vastíssimo estacionamento. Nas ruas e escadas apertadas do Monte, enxameavam as pessoas que só avançavam à custa de cotoveladas e pedidos de desculpa por encontrões involuntários. Razão: é o ponto mais visitado de França logo a seguir a Paris. Durante uma hora o Senhor Corneille tentou mostrar-nos o essencial deste monte-cidade-mosteiro que ao contrário de há quarenta anos quando o visitei a primeira vez já tem alguns monges e monjas. Na grande e imponente Basílica impressionou-me uma adoradora diante do Santíssimo Sacramento exposto na capelinha da ábice, alheia a todo o movimento atrás dela na charola. Um símbolo da espiritualidade do século XXI que vai ser? Assim o espero. Obrigado Senhor Corneille pelo dom desta visita-peregrinação à Idade Média. No dia 22 (sábado) ia colaborar de forma mais efectiva na segunda peregrinação de Nossa Senhor de Fátima dos emigrantes portugueses, mas a manhã reservou-me uma surpresa-graça do Senhor. Tínhamos sabido, como disse, que o Irmão Flavien celebrava nesta manhã os 50 anos de profissão em Dinan e logo o P. André decidiu irmos participar na celebração. Conheço o Irmão Flavien de há longos anos, sendo no Congresso de Pastoral do Vaticano que nos encontramos a última vez. Pelo caminho ainda visitámos de novo a casa do P. André, um emigrante português e o seu bar. O P. André quis que admirasse as casas grandes dos artesãos de retaguarda que forneciam o porto de St. Malo. Foi uma festa bem preparada e celebrada com dignidade. Havia Irmãos de todas as Casas da Província, Irmãs Hospitaleiras, Irmãzinhas dos Pobres, alguns Sacerdotes da Região. Irmãos, irmãs e sobrinhos e sobrinhos-netos do festejado vieram da Alsácia. Os sobrinhos participaram na procissão com lamparinas acesas. O canto estava à altura com participação de toda a assembleia e até teve um canto da Alsácia em alemão. A Igreja neo-gótica em cruz com a sua imponência emprestou esplendor à celebração. Ao almoço após as fotografias (diante da primeira capela da casa) não faltaram presentes, discursos e canção pelo responsável da pastoral da Província, o Senhor Bidan. Foi manhã bem reconfortante e espiritual. Deu ainda para trocar impressões sobre o Hospital que há 40 anos quando o visitei a primeira vez tinha 1300 doentes, hoje tem 270 e vai reduzir para 150. Mas em contrapartida coordena 25 estruturas diversificadas em território de 250.000 habitantes. O opúsculo que me foi facilitado é muito elucidativo e deixou-nos impressão, ou eu me engano que dentro de 20 anos estaremos quase a atingir esta fase. A tarde ia já ser peregrinação no Santuário de La Peinière (Chateaubourg-St. Didier) a uns 20 quilómetros a leste de Rennes. Pelas 20.00 andor de Nossa Senhora de Fátima, estandartes, quadro de S. João de Deus muito original, altar, coro, som, tudo estava enfeitado, pronto na grande Sala-Capela de mil lugares sentados. Após o terço com leitura, canto e pregação em português e francês em cada mistério, que me foi pedida, seguiu-se a procissão das velas com cânticos apoiados por altifalantes. Mais de 500 pessoas se inseriram nesta vigília de oração em honra de Nossa Senhora de Fátima. A vigília terminou com uma sessão de 15 minutos de fogo de artifício. No dia 23 (domingo) a peregrinação de tantos emigrantes vindos de Rennes, St. Brieuc, Vitré e doutros sítios ia continuar. Pelas onze horas já haveria cerca de 600 pessoas na Sala-Capela em que se misturavam jovens, crianças, adultos entre os quais bastantes franceses. A missa foi concelebrada por três sacerdotes e a pregação em português e francês pelo que escreve. A procissão teve uma grande participação sendo seguida do canto do “Adeus oh Virgem”. Seguiram-se os piqueniques de bacalhau e frango. A tarde foi preenchida com folclore (dois ranchos) e música de conjunto prolongando até à noite. Não faltaram o carrocel para os mais pequenos. O dia 24 foi destinado a visitar o Centro de Rennes, Catedral, Igreja de Todos os Santos onde os emigrantes já tiveram uma capela de permanência, a Casa Episcopal para saudar o Bispo que não nos pôde receber e ainda o Seminário. Aqui demorámo-nos em conversação muito rica com um professor de moral e ética o P. Pierre em que os temas de bioética e de relações cristãos-judeus se tornaram acalorados e estimulantes. Acrescento que grande parte das nossas trocas de impressões giraram à volta de presença dos judeus em Portugal e nas suas relações com o norte da França e sobre S. João de Deus. Já com o Dr. Michel Corneille foram igualmente os temas de literatura clássica portuguesa dado que ele defendeu recentemente uma tese de doutoramento sobre “As Mulheres em Gil Vicente”. O Senhor Michel Corneille é descendente do grande dramaturgo francês Pierre Corneille (séc. XVII) sobre o qual os descendentes actuais estão a descobrir surpresas na sua vida e escritos relacionadas com os portugueses que viviam em Ronen. Ainda em Rennes visitámos a faculdade de letras em que o P. André dá aulas de literatura portuguesa e se dedica nos tempos livres à investigação sobre as viagens marítimas dos portugueses e em especial o “mito” do Prestes João da Etiópia sobre o qual prepara uma tese. De regresso a Paris à tarde, fiquei com a Comunidade dos Irmãos de S. João de Deus na rua Oudinot (Clínica Cirúrgica) até à ida para o aeroporto no dia seguinte. Troquei impressões como o Irmão Doutor Marc Masson, Psiquiatra sobre a sua tese que já folheei desde que ela foi defendida. Investiga as condições dos doentes mentais assistidos no Antigo Regime, antes da revolução contrariando algumas posições de Michel Foucauld. Actualmente este Irmão está a estudar teologia no Institut Catholic (Universidade), cuida do arquivo da Província e ainda dedica três meios-dias por semana para a prática clínica psiquiátrica na Casa de rua Lecourbe igualmente em Paris. A manhã ainda deu para um passeio a pé pelo Quartier Latin. Visitei a Igreja de S. Vicente de Paulo, a Capela da Medalha Milagrosa que me dizem é o lugar mais visitado de Paris, livrarias, a Escola e o Instituto Católico onde fiz os cursos de férias, a área da Sorbona onde estive inscrito nos anos 70 para uma tese que interrompi, a Igreja de Santa Genoveva, a livraria Lusophone, a Igreja Saint Germain des Près. Enfim vivi um passeio agradável a pé e revivi recordações muito significativas das muitas vezes que estive em ou passei por Paris. E imaginei este bairro quando eram pouco mais que campos de cultura nos tempos antigos. Almocei com a Comunidade, o novo Provincial, e dois dos colaboradores da Cúria, o das finanças e da pastoral de saúde, trocando impressões sobre projectos da Província Francesa e o programa capitular, de poucas páginas, para os próximos três anos já disponível na sala. Às 18.00 estava no aeroporto de Orly por RER e comboizinho sem condutor para regresso ao Funchal. Segue-se uma breve avaliação das peregrinações redigida a pedido do P. André. Pequena avaliação Festas de Nossa Senhora de Fátima dos emigrantes portugueses em Saint Brieuc (15 e 16) e Rennes (La Peinière), 22 e 23 Maio 2004 As mais de duzentas pessoas que rezaram o terço, comentado e cantado na Igreja Saint-Guénolé e as cerca de quatrocentas que participaram na procissão das velas pelo parque de Ginglin constituíram um ponto alto de oração e fé. Esta vigília de grande vivência religiosa foi continuada no dia seguinte com a Eucaristia e a procissão em honra de Nossa Senhora de Fátima. O adeus final ficou a vibrar nos corações dos participantes pelos tempos adiante até nova festa. O convívio de arraial que se seguiu pela noite adiante e na tarde do domingo com folclore e concerto, sardinhas e caldo verde, revigorou e deu apoio da cultura mãe para retemperar e sanar algumas agruras do viver em continua adaptação a outra cultura e língua. Constitui ainda para os filhos novos e alguns já de nova cultura, exercício intercultural e experiência de características e riquezas dos pais, tios e avós, desconhecidas desses jovens. Este lado cultural, religioso e convivial dos emigrantes constituiu também uma partilha com as dezenas de franceses que foram atraídos e participaram na festa. Podemos dizer que esta interculturalidade de religiosidade popular de países irmãos na União Europeia pode bem ser considerada como construção de uma nova identidade emergente fraterna, tão necessária na União Europeia. E mesmo de nova evangelização pelas novidades em que obriga a reflectir. A visibilidade desta riqueza concorre também para os emigrantes se verem e sentirem mais auto-estima na sua identidade cultural de não apenas acabrunhados operários em tarefas repetitivas que outros já não aceitam. Nessa expressão religiosa e cultural convidam os outros a vê-los e conhecê-los mais plenamente, e, porque não, admirá-los no seu poder criativo e organizador e não apenas como trabalhadores de fato sujo e tarefas mecânicas. Essa nota de organizar, buscar fundos, conseguir colaboradores, ensaiar cânticos, ornamentar, preparar comes e bebes, numa palavra participar com responsabilidade deve também ser valorizada nestas festas como formação permanente. São festas de formação permanente que capacitam para a responsabilidade na Igreja e na cidadania. São aspectos muito válidos se queremos vir a ter comunidades cristãs com iniciativa e capazes de se organizarem. Tudo isto que acabo de descrever se aplica à festa de La Peinière, com a vantagem de agrupar mais pessoas e de virem de mais lugares e mais distantes e por isso de exigir mais esforço de organização. Na vigília as celebrações terão atingido cerca de quinhentas pessoas a rezar o terço e mais ainda na procissão. Aqui o canto foi dado por altifalantes ao longo do grande parque e a procissão foi seguida de fogo durante um quarto de hora. Na missa do domingo estariam cerca de 600 pessoas e no arraial teriam chegado a cerca de duas mil contando-se entre os presentes muitos franceses dos arredores (Saint Didier). A presença de pessoas (sacerdotes) de referência da cultura de origem dos emigrantes e da cultura de acolhimento, constitui factor igualmente importante como ligação à língua e aos conteúdos formativos de infância e juventude e à integração bi-cultural. Dado que as crianças e jovens franceses também estão lá é muito positivo que as celebrações sejam bilingues e bi-culturais. O facto de se tratar de Nossa Senhora de Fátima com a visibilidade da sua imagem, estandartes e a integração de crianças-pastorinhos dá afirmação forte do símbolo religioso mais marcante para os portugueses e a que os franceses não são alheios. Achei muito positivo o facto de o P. André ter exposto durante as celebrações um quadro muito original de S. João de Deus. Este Santo Português da Hospitalidade Universal constitui também um símbolo forte da cultura religiosa portuguesa e mundial que importa propor como modelo. Importa relevar também a dimensão religiosa espiritual que levou alguns peregrinos a cumprir promessas, a acender velas, a permanecer em oração diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima mesmo durante a tarde de arraial. O tempo de sol aberto durante estes oito dias foi uma bênção acrescida do céu para as duas peregrinações. Tanto numa festa como noutra houve algumas ramificações com visitas a doentes e pessoas sós, pequenos encontros e algumas entrevistas individuais de emigrantes das áreas circunvizinhas que por vezes vivem crises de saúde e fracturas familiares e culturais. Dado que algumas famílias de emigrantes da primeira geração preparam o regresso e outras vão dando sinais de desgaste, sofrimento e fracturas humanas, estas festas ajudam a mitigar essas situações e até a sanar algumas feridas. Concluo com algumas sugestões: 1. Festas como estas são de manter e até melhorar e multiplicar. 2. Conviria complementá-las com actividades continuadas: – Missas bilingues mensais em igrejas paroquiais fixas em que se encoraje alguma mistura entre portugueses, franceses e mesmo católicos doutras culturas. 3. Uma Folha (A4) de ligação entre os vários grupos com notícias, pequena nota doutrinal (e porque, não, com pequenos anúncios de firmas de portugueses e outras que a suportassem) podia servir de elo entre comunidades de cada região. E deixo um ponto de reflexão: A Europa está a mudar e é importante que todos tenham um lugar dignificante na sua construção. As mudanças vão dar lugar, a longo prazo, a mistura e integração de elementos de muitas culturas, na futura cultura da União Europeia que vai permitir aos cidadãos afirmar que são “novos” europeus e gostam de ser algo de novo como católicos e cristãos. Será que a Pastoral da Igreja se vai esquecer de facilitar e promover esta construção de nova identidade através da integração recíproca de culturas de conteúdos cristãos e católicos só por serem doutro país e doutra língua? No avião Paris-Madeira, 25 de Maio de 2004 P. Aires Gameiro, O.H. Concluindo: Mosaico de Situações Não é possível descrever todas as situações em que os emigrantes portugueses em França vão vivendo, cinquenta anos após a primeira leva do pós-guerra. Longe vai o 1957 em que vi ainda alguns emigrantes, entre os quais um dos meus irmãos a viver num Foyer du Bâtiment e vi destruir as últimas “bidonvilles”. Muitos já regressaram e muitos preparam o regresso. Grande parte sem problemas de casa em Portugal onde construíram grandes vivendas e às vezes uma segunda à beira-mar ou na cidade. Os problemas maiores vem dos laços e vantagens de residir lá. Um casal já vendeu a casa mas acautelou-se com um pequeno apartamento para estar cá e estar lá. Outro vai vender a casa grande lá mas ainda não decidiu vir porque um filho ainda está em casa. Vai passar para casa mais pequena. Para os lados da Bretanha os problemas são parecidos embora a emigração seja mais recente. O João fez estudos e casou com francesa, tem três filhos, tem casa nova fora de Rennes e já não pensa deixar a França. Só vir cá de férias. Em lar modelar da cidade das livrarias alfarrabistas Bécherel a senhora de Famalicão vai passando a velhice e falando do que conhece à volta da sua terra de origem com quem a visita. Mais adiante perto de Tréfumel o senhor Ferreira após bastantes anos de taxista em Paris ao visitar esta terra da sua mulher afeiçoou-se, arrendou café e casa, construiu vivenda para a família, tornou-se vogal da Junta da terra e não tem ideia de regressar. Até já descobriu uma estação arqueológica romana que promete ser das mais importantes da Bretanha. Parece bem adaptado à cultura. Nas festas de Nossa Senhora de Fátima em St. Brieuc e La Peinière (Rennes) na Comissão houve pequenos construtores emigrantes que emprestaram os seus meios e carrinhas para organizarem a festa. O António já teve empregados mas agora o empregado da firma é ele porque diz que os salários e impostos levam tudo, “não é como em Portugal”(?). Não faltam entre os emigrantes corações feridos por casamentos mal sucedidos, talvez mais quando são inter-culturais e não foram bem preparados. À primeira vista as diferenças culturais entre franceses e emigrantes portugueses há longos anos a viver em França parecem pequenas mas não é tanto assim. Quando os casados constróem a sua vida mais afastados das famílias de origem, o risco é menor. Quando o português casa com francesa e vivem longe das famílias é mais fácil. Não se esqueça que a primeira geração é emigrante para ganhar dinheiro em pouco tempo poupando muito. E se não consegue sente-se fracassado. Com os filhos já não é assim. Não concordam com a ganância dos pais. As perturbações e doenças do álcool sempre muito presentes também acabam por complicar a vida de alguns casais. O brio e a vaidade de um emigrante como conseguiu construir casa na França, e em Portugal, troca de carro com frequência e gosta de ostentar sucesso em férias não é compatível com os que se metem no álcool. Passaram-se rapidadamente dez dias de pastoral com emigrantes, visitas a amigos contactos de partilha hospitaleira com três comunidades de Irmãos de S.. João de Deus, formação permanente, visitas turísticas, partilha fraterna com amigos e familiares. Enfim um recargamento espiritual muito enriquecedor. Tudo razõs para dar graças ao Senhor, a Nossa Senhora de Fátima, a S. João de Deus, S. Bento Menni e `Beata Joana Jugan. Funchal, 31.05.04 Aires Gameiro

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