Paz depende da fraternidade, que exige reconhecimento da mesma paternidade

Alfredo Bruto da Costa, presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, analisa mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz

Agência Ecclesia – Na mensagem para o Dia Mundial da Paz, o Papa Francisco recorda que uma sociedade justa e uma paz firme apenas serão possíveis com a fraternidade. Que novidade traz este documento?

Alfredo Bruto da Costa – Eu penso que o Papa dá um passo em frente.

Nós temos tidos vários temas para o Dia Mundial da Paz tais como a solidariedade, a justiça… O que o Papa Francisco faz, na mensagem deste ano, é pegar na noção de fraternidade com dois objetivos: Por um lado englobar todos os outros valores que têm sido utilizados em anteriores mensagens, porque não há fraternidade sem justiça, não há fraternidade sem solidariedade, não há fraternidade sem acolhimento do outro, etc. E, por outro lado, dá um passo em frente na medida em que não se limita à noção da fraternidade meramente “humana”, mas desenvolve a temática da fraternidade com toda a sua riqueza teológica. Em certo sentido o Papa abarca os temas anteriores e dá um passo em frente.

Francisco considera a problemática humana da paz em toda a sua plenitude: não se limitar à dimensão humana e considera-a, na perspetiva da fé, é um elemento fundamental da própria noção cristã de reino de Deus. Por isso, a mensagem tem muito de comum relativamente às pessoas que não tenham fé, ou não a tenham de forma explícita, e permite aos cristãos ir mais além, aprofundando as implicações na linha da fé.

 

AE – Nesta referência teológica, o Papa afirma a experiência da fraternidade pela referência, entre os crentes, à filiação ao mesmo Pai. Uma dimensão que reforça a experiência da fraternidade entre a família humana?

ABC – Exatamente. Francisco começa por dizer que a própria noção de fraternidade sem a aceitação de um Pai é “manca”. Até em termos lógicos, haver irmãos sem um pai comum é uma coisa que não faz sentido. Mas acrescenta que esse Pai tem que ser um Pai transcendente.

O Papa avança, não necessariamente na linha da fé. Na linha da simples filosofia eventualmente fala de um Pai transcendente. Depois disso, fala do Pai enquanto pessoa da Santíssima Trindade, já numa perspetiva cristã e envolvendo todo o processo de encarnação e de salvação de Jesus Cristo que necessariamente tem de estar presente na nossa noção de construtores da paz.

 

Quem é o meu próximo?

AE – Faz também esse contraponto da fraternidade diante de um mundo excessivamente marcado pela concorrência?

ABC – Nessa passagem em que o Papa fala de uma vocação humana para a fraternidade, para os sermos irmãos, exorta a tratarmos o outro não como um rival, um concorrente ou alguém a eliminar, mas como um irmão de quem devemos cuidar. Portanto não é só aceitar de uma forma neutra, mas devemos cuidar. É uma atitude perante o outro e os outros que é contra corrente com tudo o que se está a passar no mundo.

Por outro lado, quando o Papa fala das comunicações, das tecnologias de informação que criam maior proximidade com um grande potencial de fraternidade, cita o Papa Bento XVI quando este diz: “Não se esqueçam, as comunicações criam proximidade, tornam-nos vizinhos, mas não tornam o próximo nosso irmão”. Portanto, há uma proximidade física à qual nem sempre corresponde uma proximidade humana.

Este Papa tem uma caraterística curiosa: Sempre que fala da nossa ligação ao outro, nunca fala dessa ligação de uma forma neutra. Fala do outro, da doação ao outro, do cuidar do outro, de zelar pelo bem-estar do outro. É uma relação pró-ativa.

Sob esse ponto de vista esta mensagem é muito rica e não só no que diz respeito à construção da paz, mas na sua própria noção. A paz não é um simples aceitar os outros.

Curioso também, nesta mensagem, é que Francisco especifica quem é o outro: pessoa, grupo ou nação.

Francisco dá à palavra “outro” uma amplitude muito maior englobando o outro indivíduo, mas também outros grupos e outras nações, acho isto muito interessante.   

 

AE – É uma noção de fraternidade que não se limita a uma simples tolerância, implica envolvimento com outro…

ABC – Francisco dirá que o modelo que apresenta é a figura de Jesus Cristo que por amor aos outros consentiu em dar a Sua vida. Para o Papa, o limite dessa doação, dessa dádiva total, no limite, é dar a vida!

 

AE – A par desta referência à fraternidade, o sermos irmãos do nosso próximo por referência a um Pai único que é caraterística dos cristãos, apresenta também a família como grande escola de fraternidade?

ABC – O Papa começa por dizer que é na família que aprendemos a ser fraternos. Sem desenvolver muito a temática da família, refere-se a ela logo no início da mensagem quando refere algumas caraterísticas da fraternidade em sentido humano e coloca a família como o meio onde começamos por aprender a noção da fraternidade.

 

AE – Nesta mensagem o Papa refere que grandes problemas que afetam hoje a humanidade radicam precisamente nesta ausência de fraternidade que faz aumentar o interesse pessoal, a ganância, a ausência de escrúpulos… Uma realidade que o Papa lê também na situação económica que atravessamos?

ABC – É curioso que o Papa fala das guerras com armas, mas depois diz que há outras guerras mais silenciosas, mas não menos danosas. E expõe todo o rol de problemas relacionados com o tráfico humano, o egoísmo do lucro, aspetos financeiros e económicos, e portanto a própria noção da construção da paz, afirmando que não é uma atitude subjetiva de cada pessoa mas, uma organização da sociedade, da economia, das finanças, etc.

 

Caridade exige lutar por novos modelos de sociedade

AE – Como Presidente da Comissão Nacional da Justiça e Paz (CNJP), e já que estamos a fazer a leitura deste contributo que o Papa nos dá para o primeiro dia do ano, como é que o enquadra na realidade portuguesa, também ela muito dilacerada, muito necessitada de solidariedade e de fraternidade entre os membros que compõem o tecido social deste país?

 

ABC – Coloca um problema muito importante.

Como sabe, poucas semanas antes da divulgação desta mensagem foi publicada a exortação apostólica do Papa sobre a nova evangelização, onde se insere um capítulo muito forte sobre o problema da justiça no mundo, da distribuição dos bens, etc.

Quando exortação apostólica “A Alegria do Evangelho” saiu tive a noção de que a nossa postura na sociedade portuguesa estava muito aquém daquilo que resultava da exortação. E então propus à CNJP que reservássemos próximas reuniões para refletir sobre o nosso trabalho na Comissão à luz do documento.

Agora, a mensagem para o Dia Mundial da Paz também, muito na linha da exortação apostólica no que diz respeito à justiça e à paz, também fará parte da nossa análise.

Tenho a sensação que, em Portugal, a comunidade cristã como um todo está a ter uma presença muito fraca enquanto voz profética na situação em que nos encontramos.

Há muitas instituições cristãs e muitos cristãos e até não cristãos dedicados aos problemas da fome e da falta de bens essenciais. É conhecida a solidariedade geral da população portuguesa e o papel das instituições cristãs neste serviço. Mas há qualquer coisa que tem de ser dita sobre o modelo de sociedade que temos, da estrutura de poder que temos. Os documentos do Papa mais recentes dão-nos a entender a ligação evidente entre o meio económico e financeiro e as estruturas do poder nas sociedades. E esta é uma situação que não se altera quando nos limitamos apenas a ajudar as pessoas a matar a fome, por mais importante que isso seja.

 

AE – Entende que o facto de a Igreja possuir uma vasta rede de estruturas de apoio social vai gerar, nas comunidades cristãs, um sentimento de desresponsabilização, de que já nada lhes é pedido nesse sentido, pois o trabalho social cabe a essas estruturas que já pertencem à Igreja?

ABC – O Papa Bento XVI, na primeira encíclica que escreveu, Deus Caritas Est, fala da responsabilidade da Igreja como comunidade relativamente à prática da caridade e diz que, embora a caridade seja um dever dos indivíduos, a Igreja enquanto comunidade também está chamada a praticar a caridade. Disso resulta que aquilo que a Igreja faz neste domínio deverá ser – e esta é já uma ilação que eu tiro – expressão da caridade da comunidade cristã.

Um Centro Social de uma paróquia nem sempre é expressão da caridade comunitária da comunidade religiosa que pertence à paróquia. Por isso eu, por vezes, que o Centro Social é um centro criado por um prior ajudado por um conjunto de bombeiros voluntários…

 

AE – Entende que as comunidades cristãs “profissionalizaram” num determinado grupo o exercício da caridade?

ABC – Tem de haver um certo profissionalismo porque hoje os problemas têm um cunho científico e técnico que se resolvem só com boas vontades. Penso, no entanto, que o problema não está naquilo que se faz.

O que se está a fazer é bem feito e é necessário. Mas fica por fazer a componente de mudança social para ir de encontro às causas dos problemas. Essa dimensão de mudança social ainda não está assumida pela comunidade cristã como um aspeto absolutamente inseparável do dever da caridade.

 

AE – Ainda na linha económica, há nesta mensagem um apelo muito forte à justa repartição dos bens cuja concentração excessiva na posse de uns poucos é uma radical negação da fraternidade entre os homens. Que condenação faz o Papa ao facto de alguns recorrem ao seu semelhante e o utilizarem como mero fator de produção e geração de riqueza?

ABC – Não só na perspetiva cristã mas humana, esse é um fenómeno extremamente grave. O que é curioso é que o Papa ao propor um determinado tipo de sociedade acrescente que o primeiro dever recai sobre os mais favorecidos. Não é frequente encontrarmos este tipo de referência por duas razões: porque para além da existência dos mais favorecidos e dos que o são menos, há o problema do Estado.

Aquilo que compete aos indivíduos fazer, a sociedade civil, independentemente daquilo que o Estado faça, compete primariamente aos mais favorecidos. É algo evidente e lógico. Aquilo que está na mão dos mais favorecidos ainda é muito, mas o problema da distribuição é também o desafio de modificarmos os mecanismos que numa sociedade provocam a desigualdade, a mantêm e até a alargam.

 

Justiça primeiro

AE – Vê nesta mensagem um desafio aos próprios Estados no sentido de redefinirem o seu papel no apoio aos cidadãos? O apelo da fraternidade importa ser lido também por quem governa?

ABC – A grande força da mensagem é que pressupõe que não há fraternidade sem solidariedade, sem justiça. Nós não podemos pensar que o Papa imagina uma fraternidade que seja um mero sentimento. Como disse o Papa Bento XVI, a caridade sem justiça, sem a ligação à verdade, passa a ser um fenómeno sentimental sem consequência nenhuma. E é hoje claro que o pensamento da Igreja é muito exigente nesta matéria: nós temos a justiça como o mínimo e tudo o resto se constrói sobre o pressuposto da justiça. A caridade, a fraternidade, a solidariedade tudo isto pressupõe a justiça, o que tem de ser assumido como um elemento da nossa cultura. De outro modo não reabilitamos palavras tão fortes como a caridade ou fraternidade. São palavras fortíssimas que corremos o risco de esvaziar se retirarmos o seu conteúdo e as suas ligações à justiça, verdade e à noção de bem comum.

 

AE – Vivemos dias de austeridade, porventura com a esperança do regresso à abundância de outros tempos, mas o Papa Francisco lembra nesta mensagem, que uma vida sóbria facilita a fraternidade...

ABC – É curioso que há muitos anos eu ouvi da boca de Jacques Delors, na altura presidente da Comissão Europeia, uma proposta para a Europa de um estilo de vida frugal. “Frugal” foi a palavra que ele usou. E o Papa vem retomar esta noção.

Há o estilo de vida rico, o estilo de vida pobre, daqueles que fazem o voto de pobreza, e há uma coisa que se chama uma certa sobriedade no modo de vida que não corresponde à pobreza do voto nem está na linha do consumismo e do luxo. O que o Papa vem dizer, não só para os cristãos, mas certamente para os cristãos, é que há um estilo de vida que estabelece uma relação sóbria com os bens materiais, com os confortos da vida, que exige preocupação com os limites, com uma vida frugal como forma normal de vida e para a qual não se pedem grandes decisões ou vocações para seguirmos este modelo.

 

AE – Pela sua riqueza e oportunidade, esta mensagem merece uma reflexão especial por parte das comunidades cristãs?

ABC – Sem dúvida! Tal como a Exortação Apostólica, esta mensagem contém algumas ideias muito fortes que seriam importantes para a vida da comunidade cristã e da própria sociedade.

HM

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