Páscoa, a Terra Prometida

Entrevista com Pe. Vasco Pinto de Magalhães conduz os nossos sentidos pelos caminhos que partem da celebração da ressurreição O que significa celebrar a Páscoa? Que sentido tem esta celebração para a vida dos homens e mulheres do nosso tempo? Ao longo desta entrevista com a Agência ECCLESIA, o jesuíta Vasco Pinto de Magalhães fala dos horizontes que se abrem com a fé na Ressurreição de Jesus Agência ECCLESIA (AE) – Depois de 40 dias no deserto, a Ressurreição é o oásis que surge nesse terreno árido? Vasco Pinto Magalhães (VPM) – A Ressurreição é mais que um oásis. É a Terra Prometida. O oásis é um sítio de passagem. Para nós, que estamos neste mundo de espaço e de tempo, a Páscoa que ensaiamos é a imagem da Terra Prometida, do fim do deserto. AE – Esta Terra Prometida surge-nos com frequência no nosso caminho ou apenas uma vez por ano? VPM – Está sempre no nosso horizonte. Quem conduz a vida é a nossa finalidade. Ela conduz-nos todo o caminho e o percurso. Nós estamos virados para a busca da alegria e da plenitude. Este caminho está sempre presente, mas deve ser em crescendo porque a vida é uma tensão entre o que já é e aquilo que encontraremos um dia. AE – É uma busca de alegria com tensões? VPM – A alegria tem várias conotações. Nem sempre entendemos a palavra alegria do mesmo modo. A alegria pascal é um estado de ânimo que me vira para fora e me abre aos outros. E abre-me também ao futuro. No entanto, utilizamos a palavra alegria para dizer estados de espírito e de mero contentamento que têm uma carga mais egoísta. Há uma alegria egoísta e uma alegria altruísta. A Páscoa é aquilo que Jesus Cristo nos trouxe com a Ressurreição. Ele trouxe-nos três coisas: a certeza de ser amado, a certeza que a vida faz sentido (há futuro) e a certeza que não ando neste mundo por ver andar os outros. AE – A alegria que nasce destas três verdades é diferente da mera satisfação? VPM – É totalmente diferente. Para esses estados de espírito nem devíamos utilizar o termo alegria, mas satisfação. AE – A verdadeira alegria tem raízes na Páscoa. VPM – Sim. No entanto, a primeira raiz é uma alegria egocêntrica (a busca de si próprio), a outra é uma conversão que vem por graça. AE – Os cristãos têm fome desta alegria que é Pão Vivo? VPM – Deveriam ter porque esta alegria é o distintivo do cristão. É um estar virado para fora e uma vontade de viver e de comunicar. Esta alegria é compatível com a tristeza. É misterioso, mas podemos estar tristes e alegres em simultâneo. AE – Não é um sentimento contraditório? VPM – A Páscoa é uma alegria dorida. É uma alegria que ainda está a caminho, não é plena. Tem as marcas do sofrimento da humanidade e do nosso próprio pecado. No entanto, é alegria porque é certeza de ser amado e que há futuro. O que contradiz a alegria não é a tristeza, mas o pessimismo. AE – Esta caminhada permanente tem apenas 40 dias ou é o ano litúrgico? VPM – Quarenta dias é um paradigma para dizer que estamos sempre nesse percurso. No ano litúrgico fazemos o acompanhamento da vida de Cristo. Estes Quarenta dias são, propriamente, a preparação da Páscoa de uma forma intensiva. Para nós, enquanto não passarmos desta vida para a vida plena estamos sempre em Quaresma. Estamos a treinar a alegria e o optimismo. AE – Só depois aparece a fonte inesgotável. Conseguimos encontrar essa fonte? VPM – Não podia existir alegria se houvesse essa dúvida de que a travessia não acabaria nunca. Nesses casos, em vez da alegria teríamos o divertimento e a euforia que são sucedâneos e momentâneos para enganar a falta de sentido. O divertimento não é a verdadeira alegria. AE – No entanto, a Páscoa é simbolizada com o som das trombetas e da festa? VPM – Esta alegria está relacionada com a festa que já é porque, quando a preparo, já me sinto em festa. Quando alguém prepara uma festa de aniversário ou de homenagem não é apenas aquele dia que é festivo. Toda a preparação já é festa. Símbolos e significados AE – Para vivermos melhor a festa, acende-se o Círio Pascal. VPM – O Círio é um símbolo da passagem das trevas à luz. Acende-se para mostrar que há uma luz que começa a tomar conta do espaço. Este símbolo significa a luz no meio das trevas, mas significa, igualmente, que só se gastando haverá luz. É preciso que a vela e a cera se gaste para que haja luz. Não chegamos à alegria sem a nossa entrega e sacrifício. Quem não se quer gastar no amor não chega à luz. AE – É uma simbologia material visto que a cera desaparece. VPM – O símbolo é algo material que nos projecta para uma realidade espiritual. Como símbolo tem os seus limites. Nós também nos gastamos, mas a luz fica. Um dia, a nossa dimensão histórica passa. AE – Então, a Ressurreição para os cristãos é como o girassol que roda com o sol? VPM – Não é apenas um contemplar Cristo, mas participar desse Cristo. A Ressurreição é a passagem do precário e temporal para a eternidade. O girassol acompanha a luz e nós, mais do que acompanhar, vamos participando. AE – Um poeta diz que «A beleza é tão grande e nós somos tão frágeis». Uma definição de Páscoa? VPM – Nós percebemos que somos feitos para mais do que, naturalmente, conseguimos. A alegria pascal é um dom e uma graça que nos ultrapassa. No entanto, estamos destinados a caminhar. As narrativas evangélicas das aparições mostram que esta alegria transforma. Estes textos são fundamentais para percebermos a mudança que desejamos, mas que muitas vezes duvidamos que seja possível. Como temos uma tentação racionalista de que o mundo está fechado sobre si próprio, esta proposta parece-nos uma coisa estranha. AE – O Pe. Moreira das Neves escreveu «Cristo Ressuscitou! Floriu a Primavera». Qual a estação do ano que simboliza a Ressurreição? VPM – (Risos) De alguma maneira é a Primavera, mas a Ressurreição são os frutos. Na Primavera aparecem as flores. No entanto, a Ressurreição é o fruto de tudo isso. Essa imagem aparece no Evangelho de S. João: “Se a semente não der fruto…». O fruto é onde ressuscita a semente. Se a flor não der fruto pode ser uma coisa bonita, mas enganadora. Fica mais cosmética (efémera) do que cósmica (transformadora). AE – É fundamental um germinar constante? VPM – É a capacidade de dar fruto, amor, paz, serviço e sentido para a vida. A alegria vem daí. A pessoa sem Páscoa não tem estas coisas e fica fechada sobre si próprio. Vive de forma contraditória como um rio que não desagua. Ao imaginarmos um rio que não desagua temos uma sensação de tristeza. Ressurreição AE – A Ressurreição é a nascente ou é a foz? VPM – Para nós é a foz. É espantoso, mas o fim comanda a vida. Cristo é o Alfa e o Omega. Jesus é nascente e foz. Este é o grande mistério, por isso nunca estamos abandonados. Sentimos que vamos para onde vimos. AE – Será que as margens dos rios não nos distraem na caminhada para a foz? VPM – Podem. No entanto é um engano trocarmos o fim pelos meios imediatos. Esta é a desgraça de tanta gente que se contenta com as pequenas satisfações momentâneas. Se tal acontecer, empata a sua vida. Seria um grande engano deste mundo. As margens verdes não nos podem satisfazer na plenitude. Entrávamos no caminho da escravidão. Às vezes, os políticos querem isso quando nos contentam com rebuçados. AE – Estilo amêndoas fora da Páscoa. VPM – Às vezes é. São sucedâneos pobres e enganadores. AE – É caso para dizer «Corações olhai. Renascem as açucenas» VPM – É verdade. Necessitamos de educar o olhar para podermos perceber o fruto que está contido na semente e na flor. Esta é o sinal imediato da Primavera e do Verão que é o fruto. Se não educarmos o nosso olhar vivemos à superfície das coisas e nunca chegaremos a esta alegria. A esta, o Evangelho chama-lhe consolação e força interior. Ela experimenta a paz e comunica a paz. AE – O Evangelho é como o orvalho que alimenta a vida e a mantém fresca? VPM – O Evangelho é mais do que as gotas de orvalho. Ele é pão e água que fecunda. No entanto, a imagem do orvalho também ajuda a percebermos e a entrarmos no Evangelho. A Palavra rega a nossa vida. AE – É um «Não fales, não digas nada! Eu absorvo com o olhar» VPM – O silêncio é fundamental na caminhada. Tal como saber ver para além do imediato. Vivemos num mundo muito histérico e eufórico que não tem tempo nem dá tempo à profundidade. Tudo se passa em corrida e num modo muito alienante. É uma forma de vida muito passageira e sem Páscoa. É um contentar-se com as margens sem ir ao fundo da questão. AE – Falta abrir o caminho até ao Mar. VPM – O Profeta Ezequiel fala neste rio que tempera e adoça as águas do mar. AE – Nessas águas do mar, a Ressurreição espelha-se e espalha-se? VPM – A Ressurreição é esse mar sem fim. É um corpo místico onde cada um de nós tem um lugar pessoal. É um encontro interpessoal. A Ressurreição é um alerta e uma crítica ao mundo de hoje que confunde globalização com massificação. Hoje, massifica-se e não se personaliza. Não se pode aniquilar a personalidade, mas fazer a comunhão de todas as personalidades. AE – Temos um mundo enganador… VPM – Massifica-nos. Tenta transmitir-nos que somos todos iguais, em vez de nos dizer que somos todos irmãos. Tira-nos a alegria do futuro para nos dar o contentamento do rebuçado. A Ressurreição é a mudança desta mentalidade e desta cultura. AE – Falta-nos o toque nas águas desse mar VPM – Nós já tocamos e pertencemos a Cristo pleno. É uma alegria dorida e marcada pelo sofrimento porque ainda não é plena. Não é uma realidade adiada… Vivemos em processo, mas não adiados. AE – Caminhamos no areal infinito ao lado do mar. As ondas desse oceano molham o nosso corpo? VPM – Molhamos os pés. Não é um mar sem fundo, mas entramos cada vez mais nele. S. Paulo diz-nos isso. A cabeça passou, mas o resto ainda sofre as dores de parto. É como o aperto do bébé ao nascer. AE – É um ninho maternal? VPM – A imagem do nascimento é muito própria da Ressurreição. A cabeça do bébé saiu, mas o corpo sofre as tentações de voltar ao calor do útero materno. AE – A pequenez do homem não tem receio do horizonte longínquo deste mar? VPM – Temos medo de nos afogar. Temos medo de não saber gerir essa imensidão. Temos medo de perder a nossa personalidade. As coisas fascinantes e belas como a Ressurreição assustam-nos. Duvidamos… Trememos quando entramos nesse imenso mar. AE – No entanto, esse mar frio transmite-nos calor. VPM – A condição humana é um processo de transformação. Humaniza-se cada vez mais quando recebe e dá esse calor. É um risco… há um desejo quente por um lado e arrepios por outro. Como temos medo, somos redutores. Queremos preto ou branco, mas a vida não é preta ou branca. É uma transformação da passagem das estrelas à luz. A luz cresce, mas ainda há trevas. AE – Que paisagem escolheria para observar o espelho da Ressurreição? VPM – O alto da montanha. Se, dessa montanha, pudesse ver o mar teria uma perspectiva mais global. Observava a beleza do conjunto a brotar. Também vejo essa grandeza numa pequena flor que nasce num vaso. Aparece uma criação nova… AE – É a Ressurreição sempre presente… VPM – É o amor criador e re-criador. Também é uma boa imagem da Ressurreição, duas pessoas que se perdoam. Duas pessoas que dão um abraço de reconciliação. Estavam separados e mortos um para o outro, mas encontraram-se. AE – Um traço de luz reconciliadora que emana da Ressurreição VPM – Um risco luminoso de comunhão. O nosso mundo tem medo de perdoar e de ser perdoado. Um mundo precisa de um abraço de encontro. AE – Esse abraço pascal poderia ser pintado na tela do pintor. Que obra de arte escolheria para simbolizar a Ressurreição? VPM – O nascer do sol toca-me… Tenho sempre presente o quadro de Van Gogh com o «semeador e o sol a nascer». O sol nasce, a semente é lançada, a vida brota e a noite acaba. AE – É um «livro aberto» exposto na tela? VPM – A Ressurreição é o «por dentro» da vida. É o dinamismo da vida que vai brotando e vai vencendo as trevas. AE – É o dia que nasce da madrugada… VPM – Celebramos isso na Vigília Pascal. Só assim o mundo novo ganha espaço. O que estraga a Páscoa é o orgulho, a mentira, a prepotência e a opressão dos mais fracos. É difícil a Páscoa quando as pessoas são contra a criação. AE – Na Vigília Pascal, os cristãos deviam dizer: «Vimos nascer um Sol brilhante» VPM – Nós dizemos «Sol nascente que nos vem visitar». AE – No entanto há o perigo de ficarmos no ritualismo? VPM – (Risos). A Páscoa tem que ser um crescendo… Esperamos pelo dia pleno… AE – E pelo dia novo? VPM – É o primeiro dia que se torna o último dia.

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