Para uma Pastoral da Cultura

O documento Para uma Pastoral da Cultura, emanado do Conselho Pontifício da Cultura, surge no fim do século XX (1999), coroando um longo lapso de tempo, durante o qual a Igreja Católica se confrontou com realidades, formas de pensamento e práticas sociais com pesadas consequências para o relacionamento da Igreja com as sociedades e com a humanidade no seu todo. A herança das correntes sociais e ideológicas recebidas do século XIX, a primeira guerra mundial, a revolução comunista de 1917, a segunda guerra mundial e a instauração na Europa de regimes ditatoriais, a Guerra-Fria rudemente expressa pela Cortina de Ferro, o processo de descolonização, a agitação culturalmente provocatória do Maio 68, o Concílio Vaticano II e seus efeitos na vida da Igreja, a implosão do comunismo, o pontificado altamente mediático do Papa João Paulo II com repercussão nas relações com os Estados e a comunidade internacional e na aproximação às demais confissões religiosas, tudo isso levou a Igreja, de forma paulatina mas sustentável, a traçar linhas inovadoras de orientação com especial incidência no vasto e decisivo campo da Cultura. É a convergência e o somatório dessas linhas que o Conselho Pontifício da Cultura apresenta no documento em referência, o qual, passados sete anos, tem de ser lido à luz do tempo a que se reporta, apesar da luz que já projecta sobre acontecimentos que posteriormente surgiram na vida da humanidade, entre os quais se destacam o terrorismo e seus efeitos nas relações entre povos e religiões. Aliás, o documento começa por referir-se, na própria Introdução, às alterações ocorridas no decurso dos últimos tempos, ao sublinhar que “novas tarefas se abrem à inculturação” registando ao mesmo tempo que “há culturas tradicionalmente cristãs (…) que se encontram abaladas.” Sem demorar-se em lamentações estéreis, o texto adopta a pedagogia do positivo, na medida em que reconhece que as “novas situações culturais…apresentam-se à Igreja como novos campos de evangelização.” Uma linguagem actual, consonante com a tónica que vem marcando nas últimas décadas os caminhos também novos que se abrem, de forma exigente, à missão da Igreja: a nova evangelização. Fiel à tradição pedagógica seguida nos documentos do Magistério ou seus afins, Para uma Pastoral da Cultura começa por acender os luzeiros que hão-de permitir o discernimento das novidades do tempo, antes de entrar na prospecção e análise da natureza e formas dessas mesmas novidades. E fá-lo, não só lembrando a doutrina acumulada pelo magistério da Igreja desde o Vaticano II, mas também realçando o dinamismo próprio e fecundo da Fé na sua relação com a Razão, a Ciência e as Culturas. E porque de “Pastoral da cultura” se trata, é-lhe prévio o reconhecimento de que, no dizer de João Paulo II, uma fé que não se torna em cultura é “uma fé que não é acolhida de modo pleno, que não é inteiramente pensada nem vivida com fidelidade.” Face ao binómio Fé e Cultura que se devem interpenetrar para que uma e outra atinjam a sua dimensão plena, tem o documento a preocupação de definir a cultura como relação dos homens com a natureza, entre si próprios e com Deus, o que significa que, pela cultura, o homem é levado a transcender-se, a ir além de si próprio, e a tecer, no quadro da sua vida, os laços de comunhão que expressam uma Fé enraizada na vida, uma Fé inculturada. E segue-se então uma longa viagem bíblica de contornos históricos bem definidos, em que a palavra, a linguagem, os costumes, o desenrolar da história do Povo de Deus, surgem como a “inculturação originária da Fé.” Partindo da iniciativa de Deus que dá origem ao seu Povo, a fé em Deus e na sua promessa tem o poder de atingir toda a cultura e purificá-la, modificando critérios, valores, linhas de pensamento, de tal modo que, nas suas múltiplas expressões, a cultura surja, se manifeste e se traduza na comunhão sem fissuras do homem com toda a realidade humana e com Deus. É nesta óptica que, mais tarde, o anúncio da mensagem de Jesus Cristo – evangelização – fundamenta a sua intencionalidade final e a sua capacidade actuante de impregnar dum espírito novo toda a cultura e todas as culturas, sem se confundir com nenhuma delas. Porque fé e cultura são realidades duma ordem diferente, à evangelização cabe iluminar e animar com a perenidade da mensagem cristã as diferentes culturas, em si mesmas instáveis, precárias e passageiras. A evangelização aparece assim como “um elemento crítico das culturas…das idolatrias, ou seja, dos valores erigidos em ídolos ou que uma pretensa cultura declara absolutos.” Só depois desta aclaração de princípios é que no capítulo II se entra no elenco dos “desafios e fundamentos” da pastoral da cultura, tendo havido o cuidado de previamente explicar que a pastoral, estando ao serviço da evangelização, tem por fim buscar os “modos o mais possível adaptados e eficazes, para comunicar a mensagem aos homens do nosso tempo”, como aliás a Evangelii Nuntiandi (nº 40) em seu tempo afirmou. Interessante é a forma como estes desafios são citados. Resultando todos eles da “nova época da história humana”, segundo o Concílio Vaticano II, nenhum deles se diz resultar dum só facto histórico, mas todos deixam transparecer a lógica e a força das correntes económicas, sociais e políticas que os determinaram. O subjectivismo, os pressupostos positivistas, o liberalismo e o ateísmo prático, citados em primeiro lugar, afirmam-se na cultura actual como as traves mestras em que assentam ou pretendem assentar os dinamismos mais profundos das consciências e das opções sociais. Os desafios que se lhes seguem são uma causa ou consequência, seu reflexo ou perversão, não sendo a maioria deles mais que as principais áreas onde se repercutem os seus efeitos mais deletérios e as suas contradições mais absurdas. A urbanização galopante e o desenraizamento cultural; o fascínio quase sempre irrecusável das tecnologias da informação e a perda de identidade das minorias nacionais ou étnicas; a ambivalência manifesta dos novos areópagos culturais, como seja a ciência, a filosofia, a bioética, e a ecologia; a desagregação da família e o desnorte da educação; a arte e o lazer transformados em apetitosos domínios de um mercantilismo voraz; e finalmente um secularismo que expulsa Deus da cidade dos Homens senão mesmo do interior dos seus templos. Secularismo que leva ao desespero pela sua própria irracionalidade. No último número do capítulo em que se elencam os desafios provocadores de uma nova pastoral cultural, o documento Para uma Pastoral da Cultura que vimos glosando, presta singular atenção ao fenómeno das “seitas e novos movimentos religiosos”. Aí se denunciam as “construções mais ou menos sincretistas, orientadas para uma certa união global para além de toda a religião particular.” Igual denúncia é feita às religiões esotéricas, cujo êxito se deve à ignorância e credulidade de cristãos mal formados. Perante tão vasta panorâmica, tudo se conjuga para que a Pastoral da cultura trace caminhos novos, feitos de propostas que constituem, no seu conjunto, as “coisas novas”, ainda que simples, de que o Evangelho e a história da Igreja são pródigos. Se, à partida, a proposta de “resumir a seiva vital do Evangelho nas culturas” soa a uma intenção desprovida de referências concretas, já as propostas que se lhe seguem supõem uma vontade pastoral aturada para que o “discernimento” em matéria religiosa seja sério; para que o “renascimento das tradições culturais cristãs” seja incentivado; para que a “piedade popular” testemunhe a osmose realizada entre o dinamismo da mensagem evangélica e as componentes mais diversas de uma cultura; para que se promovam instituições educativas, centros de formação e, sobretudo “Centros Culturais Católicos”, tornando-se cada centro num fórum público que permita “uma ampla difusão, através de diálogo criativo, das convicções cristãs sobre o homem, a mulher, a família, o trabalho, a economia, a sociedade, a política, a vida internacional, o ambiente” (Ecclesia in Africa, nº. 143). Finalmente, ultrapassando as fronteiras do estritamente confessional, o texto do Conselho Pontifício da Cultura selecciona e privilegia as áreas em que a pastoral da cultura é chamada a dar particular atenção: Os meios de comunicação social, cujo papel “não pode ser descurado na evangelização da cultura e na inculturação da fé”; A ciência e a técnica, pelo desenvolvimento duma “filosofia das ciências” que disponha de estudiosos e consultores qualificados “aptos também a intervir, seja na Internet, na rádio ou na televisão”; A arte e os artistas, estabelecendo um diálogo frutuoso nos planos institucional e da criatividade, incluída uma atenção especial ao património cultural da Igreja; Os jovens, sedentos de um “novo tipo de diálogo” e reconhecidos como os melhores transmissores da mensagem evangélica às mentalidades actuais. Em nota de rodapé e de forma despretensiosa, depois desta leitura, ficamos esperando que o Conselho Pontifício da Cultura brinde o Mundo e a Igreja com nova reflexão, a partir das situações mais recentes, marcadas sobretudo pelo terrorismo e o conflito entre culturas. P. Agostinho Jardim Gonçalves Director do Departamento de Comunicação e Cultura do Patriarcado de Lisboa, In “Observatório da Cultura”, nº 7

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