Para uma cidade de paz

Homilia de D. Manuel Clemente nos 425 anos da primeira divisão paroquial do Porto Caríssimos irmãos e concidadãos do Porto Reúne-nos nesta vetusta catedral a celebração eucarística dominical, no XIV Domingo do Tempo Comum do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2008. Mas nela evocamos a sentença de D. Frei Marcos de Lisboa, bispo do Porto, de 7 de Julho de 1583, que assim se justificava: “Vistos estes autos e sumário que mandamos fazer da muita necessidade que havia de dividir a freguesia da Sé em mais paróquias pela falta que havia na cura das almas e administração dos sacramentos…”. Consequentemente, o território foi repartido em quatro freguesias: Sé, S. Nicolau, Nossa Senhora da Vitória e S. João Baptista de Belmonte. Até aos nossos dias, com o alargamento da área urbana, novas subdivisões se seguiram, sempre por idênticas razões pastorais. Idênticas razões pastorais, que se podem resumir na indicação de D. Frei Marcos, ainda que lhe modernizemos a expressão. Onde o prelado escrevia “cura de almas e administração dos sacramentos”, escreveríamos hoje o acompanhamento integral das pessoas, da iniciação cristã à vida sacramental e à caridade operosa, dentro e para fora de cada comunidade cristã. Poderíamos também escrever, inspirando-nos em S. Paulo, cuja vida e ensinamento temos agora particularmente presentes: para que em cada uma das paróquias da nossa cidade palpite e actue a caridade de Cristo, pois que são seu “corpo” e manifestação salvadora no mundo. A caridade de Cristo, o seu coração também, como se traduz no Evangelho escutado: “Vinde a Mim, todos os que andais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve”. Pesados e cansativos seriam então os jugos, políticos, sociais e até “religiosos”. Mas Ele trazia-nos outra ideia de Deus e outra prática social e religiosa. Para estranheza e incómodo de alguns, em Cristo, Deus aproximava-se absolutamente dos pobres de todas as pobrezas, dos cansados de todos os cansaços e dos oprimidos de todas as opressões. Não há página evangélica onde não O encontremos à nossa procura, qual mão estendida, vida partilhada, verdade convivida. E todos os que cabiam no enunciado das bem-aventuranças tinham na proximidade de Cristo a sua primeira realização: “Felizes os pobres em espírito, os que choram, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os pacificadores, os que sofrem perseguição por causa da justiça…”. Não estamos longe, estamos pertíssimo do que D. Frei Marcos pretendia com a divisão paroquial de 1583: mais e melhor cura das almas, mais e melhor administração dos sacramentos, que o mesmo é dizer mais patente e activa presença de Cristo na cidade, através do seu corpo eclesial (paroquial no caso), como pastor e salvador dos homens. Sendo essa a intenção, esse tem igualmente de ser o modo, a maneira de estar e actuar, pastoralmente falando. O Evangelho que escutámos, apresentando-se Cristo como “manso e humilde de coração”, ecoa a profecia de Zacarias, ouvida na primeira leitura. Em tempos de opressão e guerra, o profeta anunciava a Jerusalém a chegada dum rei, em contraste pleno com o usual dos reis de então; se quisermos, dum “poder” novo, que desafiava os poderes de sempre. E di-lo em nome de Deus, pois assim falam os profetas, autênticos e autenticados: “Exulta de alegria, filha de Sião, solta brados de júbilo, filha de Jerusalém. Eis o teu rei, justo e salvador, que vem ao teu encontro, humildemente montado num jumentinho […]. Anunciará a paz às nações…”. Não costumavam chegar desse modo os reis, nem entrar nas cidades com tal apresentação. Mas sabemos que foi assim que Jesus entrou em Jerusalém, chegado o seu tempo, o tempo definitivo das coisas. E que assim também, na simplicidade da figura e na humildade do serviço, quer estar hoje na nossa cidade, em cada comunidade cristã, em cada paróquia dela. – E como a nossa cidade precisa agora, sobretudo no seu centro histórico, de comunidades cristãs de acolhimento e serviço, traduzindo a presença de Cristo, palavra, sacramento e vida! – Como precisa a cidade e cada um dos que nela circula, mais ou menos apressado, mais ou menos vagabundo, de sinais convidativos daquele “templo” novo que Cristo ressuscitado quer abrir a todos, através dos realmente seus! A 6 de Janeiro de 2001 o Papa João Paulo II, de felicíssima memória, dirigiu-nos, na carta apostólica Novo Millenio Ineunte, um programa para cumprir. Vale a pena recordá-lo, nas suas próprias palavras: “Certamente não nos move a esperança ingénua de que possa haver uma fórmula mágica para os grandes desafios do nosso tempo; não será uma fórmula a salvar-nos, mas uma Pessoa, e a certeza que Ela nos infunde: Eu estarei convosco! Sendo assim, não se trata de inventar um ‘programa novo’. O programa já existe […]. Concentra-se, em última análise, no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para nele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste” (NMI, 29). – Como estamos nós a cumprir este programa nas paróquias da cidade e da diocese inteira? O melhor que podemos, certamente. Mas há ainda o melhor que Deus pode sempre, quando encontra crentes generosos e disponíveis, para que em cada comunidade se realize o Evangelho de Cristo para salvação de todos, na completa dimensão das respectivas existências, assinalando pela mútua atenção e a caridade viva a Jerusalém celeste, corpo total de Cristo. Daí que João Paulo II fosse igualmente preciso no que pediu à Igreja, em cada comunidade dela: “Fazer da Igreja a casa e a escola da comunhão: eis o grande desafio que nos espera no milénio que começa, se quisermos ser fiéis ao desígnio de Deus e corresponder às expectativas mais profundas do mundo” (NMI, 43). E, para não ficar no vago, o grande pontífice insistia de seguida na promoção duma espiritualidade de comunhão, de acolhimento e entreajuda. Deixai-me propor-vos, a todos quantos nesta altura avaliais o ano pastoral que finda e preparais o próximo: relede atentamente o número 43 da carta apostólica Novo Millenio Ineunte, especialmente no que toca à “espiritualidade da comunhão”, os seus requisitos indispensáveis e as suas virtualidades totais. – Que feliz será o Porto quando contar em cada uma das suas paróquias com uma verdadeira “casa e escola de comunhão! – O que nos tolhe, se a garantia é do Espírito? Do Espírito nos falava a segunda leitura, da epístola de S. Paulo aos Romanos. Do Espírito e da sua obra em nós: “Se o Espírito d’Aquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Ele, que ressuscitou Cristo Jesus de entre os mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que habita em vós”. Nada menos do que isto, amados irmãos, nada menos do que a ressurreição de Cristo a realizar-se em nós, pela participação no seu Espírito. Pouco a pouco, do baptismo à glória, pela Palavra escutada, pelos sacramentos celebrados, pela caridade praticada, a Páscoa de Cristo realizar-se-á na cidade, em cada crente, em cada comunidade cristã, que o mesmo é dizer na expressão e activação comunitária da vitória de Cristo sobre a morte. Porque “morte” são o egoísmo e a solidão, “morte” é não alimentar corpos e almas, “morte” é não respeitar e promover a existência de cada um como valor essencial e destino eterno. – Quem integra uma paróquia do Porto activa a Páscoa de Cristo, na crescente vitória da partilha e da paz! E será esta, cada vez mais coerente e total, a contribuição católica à cidade de todos! Catedral do Porto, 6 de Julho de 2008 + Manuel Clemente, Bispo do Porto

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top