Para entender as Relíquias

D. Carlos Azevedo, coordenador da Equipa da Vinda das relíquias de Santa Teresinha a Portugal Por relíquias entende-se o “resto” material dos corpos dos santos, bem como, em sentido mais lato, objectos pertencentes e usados por santos: vestes, livros, objectos de devoção, instrumentos de penitência. Com o decorrer do tempo o conceito estendeu-se a tecidos ou objectos que tocaram o sepulcro de um santo. Também se concede o título de relíquias a objectos relativos à memória da vida de Jesus, de Maria ou dos apóstolos (p. ex. Coluna da flagelação, véu da Verónica, etc.). Entram ainda no conceito as relíquias de sangue de alguns mártires. Podemos considerar que o primeiro acto cristão de veneração das relíquias se deve a José de Arimateia, quando pediu a Pilatos o corpo de Jesus. Os romanos, apesar de execuções cruéis, depois da morte dos condenados entregavam facilmente o seu corpo a quem o solicitasse. Também do protomártir Estêvão se afirma que os cristãos o depuseram em lugar honrado (Act.8,2) e em 415 é trasladado para dentro da cidade em ordem a levantar uma basílica. Quando os cristãos começaram a possuir cemitérios próprios inumavam os seus defuntos na periferia da cidade. Estas áreas subterrâneas amplas foram chamadas catacumbas. Aí os túmulos dos mártires assumiam características especiais, com arcosólios decorados para sobre eles se celebrar a eucaristia. No Oriente, após o fim das perseguições, teve início o costume de partilhar partes do corpo dos santos com outras comunidades cristãs, onde eram acolhidas com muita veneração, dadas as graças obtidas. Em Roma, não se multiplicou este costume, mas antes o de tocar os túmulos de mártires com tecidos (brandea), depois distribuídos a bispos, mosteiros, governantes. Outras vezes este uso ficava à iniciativa dos fiéis que aí se deslocavam. Assim se honrava a Deus e se assegurava a protecção e intercessão dos mártires. Os tecidos como que absorviam a energia e tornavam-se autênticas relíquias. No Ocidente incrementou-se a difusão de relíquias e relicários em tecas facilmente transportáveis. Encontram-se em cabeças-relicário, mãos-relicário, braços-relicário etc. São modos de criar objectos ornados de beleza, capazes de suscitar admiração pela virtude das figuras que evocam e contribuir para a adoração a Deus que a sua vida demonstra. Com a territorialização ou regionalização do culto cristão no tempo de Carlos Magno, ocorre uma procura desmesurada de relíquias como justificação de prestígio e honra do lugar. O incremento é alimentado pelas cruzadas e narrações dos lugares santos da Palestina. O perigo das sarracenos motivou a deslocação de muitas relíquias pelas vias romanas nos séculos VIII a XI. As catedrais e igrejas monásticas atraiam os fiéis pela glória das suas relíquias. A dedicação das igrejas, das cidades, dos ofícios, à protecção de um santo ou mártir tornou-se habitual: o santo patrono. As legendas hagiográficas elaboram e re-elaboram, no âmbito local, a adesão das cidades aos seus santos e mártires e repetem os esquemas de uns para outros, com lugares comuns claríssimos. Nem autores, nem leitores têm preocupação histórica, mas visam glorificar o santo o mais possível. Qualquer dúvida sobre tamanha fantasia de milagres e aparições significaria não confiar em Deus e nos seus santos. A dedicação do altar-mor a um santo titular obrigava a conseguir relíquias de qualquer modo, a qualquer custo, a ponto da autoridade papal ter de intervir com penas para os abusos. O frenesim espantoso e a pressa de encontrar relíquias desenvolveu um culto popular sem critérios de autenticidade. Esta corrida deu azo a credulidades ligeiras, rivalidades sem fundamento, erros e falsas atribuições. A defesa das relíquias equivalia à defesa dos símbolos de uma identidade, sinais de fisionomia social e do rosto cultural de um local. Geralmente eram objecto de doação de beneméritos em agradecimento de favores obtidos. Os cardeais romanos ofereciam corpos das catacumbas, considerados santos sem nenhuma base. Para orientação do povo cristão deve ter-se em conta o rigor terminológico. Nos documentos dos primeiros séculos não se fazia distinção entre o corpo todo e uma parte. O termo corpus indica os ossos do santo, seja de uma parte do braço (brachium) seja da cabeça (caput). Nos séculos posteriores a linguagem torna-se mais exacta e rigorosa, referindo ex corpore, ex bracchio, ex capite. A forma medieval levou a pensar em vários corpos ou várias cabeças do mesmo santo. Trata-se porém de “fragmentos ósseos” da cabeça ou do corpo. Outra confusão vulgar tem origem nas representações medievais que antecediam a celebração da eucaristia nas festas e memórias de Cristo, de Maria e dos santos. Chamavam-se mistérios, como ainda acontece com os mistérios do Rosário. Ora os objectos e as vestes necessárias para estas representações eram conservadas em caixas com indicações: “veste da Beata Virgem”, “pálio de S. José”, manto de Jesus” etc. Passados séculos, encontrados estes dados, acabaram por transformar-se, por ignorância, em relíquias, com respectiva veneração. A Igreja aprovou e acalentou o culto e a devoção às santas relíquias, mas sempre atenta para conduzir a uma recta actuação do culto em espírito e verdade e referido a Deus. A devoção às relíquias não faz parte constitutiva da fé e não há obrigação de as venerar, mas também não é lícito desprezar ou acusar de superstição as várias formas de devoção. São relativas a Deus e só a Ele o culto de adoração absoluta em espírito e verdade é devido. Há vantagens na vida cristã para a veneração das relíquias, com usos para-litúrgicos e formas equilibradas de devoção pessoal. Compete aos pastores e aos estudiosos averiguar o carácter autêntico das relíquias e se for provada a não autenticidade não devem mais ser expostas à veneração dos fiéis, mas apenas conservadas como recordação histórica. A história das relíquias está envolvida por maravilhas de fé, de conversões e de heroísmos. As relíquias, sob o olhar de fé em Deus, são sinais da vida de quem recordam e a sua visibilidade e proximidade podem ser fonte de graça e rio de fervor.

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