«O Profeta da Beira»

D. Sebastião Soares de Resende nos 100 anos do seu nascimento A 14 de Junho de 2006 perfazem-se cem anos sobre a data de nascimento de D. Sebastião Soares de Resende. Este cidadão ilustre, natural de Milheirós de Poiares, (Santa Maria da Feira), foi o primeiro bispo da Beira (Moçambique) e “temos dele uma memória inapagável” – salienta D. Jaime Pedro Gonçalves, arcebispo da Beira, no livro de homenagem a este “grande pastor que evangelizou uma área que deu até hoje cinco dioceses (Beira, Quelimane, Chimoio, Tete e Gurué)”. Defensor da Justiça em favor dos “mais fracos e oprimidos”, D. Sebastião Soares de Resende promoveu a “educação da juventude das missões com milhares de escolas primárias” e idealizou para aquele país lusófono uma sociedade “integrada de raças e cidadãos iguais, perante a lei, apesar das diferenças”. Atitudes que mereceram reacções de “perseguição por parte do regime político de então” – sublinha D. Jaime Gonçalves no seu artigo «D. Sebastião Soares de Resende nosso primeiro bispo». Foi pai do semanário «A Voz Africana», da revista «Economia» e do famoso «Diário de Moçambique». Órgãos de Comunicação Social que ele utilizava para a evangelização, mormente nas palestras quaresmais. D. Jaime Gonçalves refere mesmo que a “censura do Estado Novo maltratou o «Diário de Moçambique» e chegou, como punição, a ser proibido durante 30 dias”. Depois deste e outros episódios tornou-se “extremamente difícil a manutenção financeira do jornal”. D. Sebastião morreu em Janeiro de 1967 e aquele diário de referência foi vendido pelo sucessor em 1970. “A Santa Sé autorizou a sua venda” e um dos mais renhidos adversários do 1º bispo da Beira – o detentor do «Notícias» – comprou-o. Evangelizar através da Comunicação Social O «Diário de Moçambique» nasceu na véspera do Natal de 1950. Deu à luz depois de D. Sebastião visualizar o “quotidiano violento da exploração colonial patente nas relações de produção” (Capela, José; “D. Sebastião e o «Diário de Moçambique»”; in: Revista «Síntese»). Antes de fundar aquele órgão de Comunicação Social (em 1944), o 1º bispo da Beira teve este comentário depois de observar as condições de trabalho numa serração de madeira: “impera na Beira a escravatura”. E acrescentou: “uma vez que conheça abusos hei-de empregar todos os meios para os debelar ainda que seja a imprensa”. O documento «Aetatis Novae» – Instrução Pastoral sobre as Comunicações Sociais no 20º Aniversário da «Communio et Progressio» – salienta que os cristãos “têm efectivamente o dever de fazer ouvir a sua voz no seio de todos os mass media”. E avança: “a tarefa deles não se limita unicamente à transmissão de notícias eclesiásticas”. Alguns anos antes da publicação deste documento, este precursor da importância dos meios de Comunicação Social na evangelização não se intimidou com as ameaças e denunciou as injustiças por isso foi considerado – “pela craveira apostólica e intelectual, coragem e persistência” – o “maior «resistente»” (Freire, José Geraldes; in: “Resistência Católica ao Salazarismo – Marcelismo). Denunciar as injustiças e deficiências Sagrado bispo da Beira em 1943, no aniversário da sua tomada de posse na diocese moçambicana (8 de Dezembro) dirigia uma pastoral ao seu rebanho “sempre repleta de conteúdos doutrinários e incidindo muitas vezes em aspectos concretos que denunciavam injustiças e deficiências” – (in: “Resistência Católica ao Salazarismo – Marcelismo). Na Pastoral de 1946 sobre “Colonização Portuguesa”, D. Sebastião Soares de Resende condena o “trabalho compelido” dos indígenas. E acrescenta: “quando observo o que se passa, principalmente com trabalhadores indígenas, e entre estes, com os que labutam junto da maior parte das nossas empresas, vejo-me forçado a reconhecer que não somos cristãos nem humanos”. Nesta e noutras conjunturas, o prelado natural de Santa Maria da Feira agia exclusivamente na convicção de estar na defesa de “direitos inamovíveis da pessoa humana e totalmente alheio, como sempre se manteve, relativamente a qualquer vinculação política” – (Capela, José; “D. Sebastião e o «Diário de Moçambique»”; in: Revista «Síntese»). O desenvolvimento do ensino naquela diocese foi também um dos grandes feitos de D. Sebastião. “É a ele que se deve o lançamento do Ensino Secundário na Beira, começando pela Fundação do Instituto Liceal D. Gonçalo da Silveira e posteriormente os Colégios de Vila Pery e de Tete” – (Brandão, Pedro Ramos; “O primeiro bispo da Beira”; in: Revista «História» de Novembro de 2004). O bispo da Beira sabia que a utilização que o Estado Português estava a dar à Igreja, em Moçambique, poderia criar “uma perniciosa confusão nos indígenas e levá-los a ver a Igreja Católica como uma extensão administrativa do Estado Português” – (In: Revista «História»). Perante esta previsível situação, D. Sebastião Soares de Resende fez sempre um esforço de tornar pública a diferença entre a evangelização e o ensino ministrado. “O professor era uma coisa, o catequista era outra. Esta posição dentro da Igreja Católica moçambicana não era de todo aceite; a maioria dos padres portugueses acomodara-se ao facto de ser vista pelo Governo como funcionalismo público, com o seu ordenado mensal” – (In: Revista «História»). No entanto, o primeiro bispo da Beira tudo tentou para esclarecer a opinião pública e os habitantes indígenas sobre as diferenças: “a acção missionária não pode terminar nas escolas. Há que se exercer também nos postos catequéticos”. (In: Revista «História»). Na sua Pastoral de Dezembro de 1951 – “O problema da Educação em África” –, D. Sebastião alerta para o problema “dos professores assassinos” e da educação dos indígenas. Um documento incomodativo que foi “proibido de circular” porque o Governo é “laico, mesmo quando se proclama cristão, e não aceita, na prática, a doutrina da Igreja” – (in: “Resistência Católica ao Salazarismo – Marcelismo). A revolução interior no Santuário de Lourdes Recebeu a ordenação presbiteral a 21 de Outubro de 1928 quando tinha apenas 22 anos de idade. No mês seguinte foi enviado para Roma para prosseguir os estudos na Pontifícia Universidade Gregoriana onde se doutorou em Filosofia. O doutoramento em Teologia sofreu um revés devido ao início da Segunda Guerra Mundial. Aquando da viagem para Roma parou no Santuário de Lourdes (França) e escreveu uma carta ao Pe. José Leite Dias Pinho, conterrâneo do ainda Pe. Sebastião Soares de Resende. Na missiva relata que atravessou “Hespanha com espírito de touriste, mas em, Lourdes operou-se uma revolução em mim para tudo fazer com ânimo cristão, mais, eclesiástico” (Azevedo, Carlos Moreira; “O carácter do bispo da Beira através da correspondência com dois padres milheiroenses”, in: Revista «Villa da Feira – Terra de Santa Maria» de Fevereiro de 2006). A grandeza desta experiência interior vivida em Lourdes impulsionou-o e avivou-lhe o sentido harmónico do ser cristão. Em Roma assiste à assinatura (11 de Fevereiro de 1929) dos Pactos de Latrão entre o Cardeal Gasparri e Benito Mussolini. Numa carta enviada (2 de Maio de 1929) ao Pe. José Leite Dias Pinho, o estudante romano utiliza um humor refinado para descrever a assinatura do acordo: “com certeza, Garibaldi nesse dia chorou mais uma lágrima”. Esta expressão cheia de ironia sobre “a figura anticlerical de Garibaldi, iniciador do dissídio entre Igreja e Estado Italiano, que durou sessenta anos, transmite a simplicidade jubilosa do amor à Igreja, alimentado por Sebastião” – (Azevedo, Carlos Moreira; “O carácter do bispo da Beira através da correspondência com dois padres milheiroenses”, in: Revista «Villa da Feira – Terra de Santa Maria» de Fevereiro de 2006). Um tomista que não foi ouvido Após o ciclo formativo na «cidade eterna» é convidado para professor no Seminário Maior do Porto. Aí, lecciona as cadeiras de Teologia Sacramental e Filosofia. Aos 28 anos foi convidado para vice-reitor do referido seminário e dois anos mais tarde (1936) o bispo do Porto nomeia-o membro do cabido. Um antigo aluno do homenageado, o Pe. Manuel Leão – também natural de Milheirós de Poiares – sublinha no artigo “D. Sebastião Resende – Uma Evocação, no seu Centenário” que o prelado era um “ferrenho tomista”. A filosofia de Aristóteles passando “pelos trabalhos de S. Tomás de Aquino entusiasmou D. Sebastião” – (in: Revista «Villa da Feira – Terra de Santa Maria» de Fevereiro de 2006). O último ano do agora Pe. Manuel Leão no Seminário Teológico foi também o último ano do vice-reitor, que, entretanto, foi nomeado (21 de Abril de 1943) bispo da Beira. Deixou a metrópole e foi evangelizar “um laboratório de problemas novos que entusiasma as inteligências mais vigorosas” – (In: Carta ao Pe. Manuel Valente de Pinho Leão – datada de 19 de Março de 1946). Esta troca de correspondência entre estes dois filhos de Milheirós de Poiares dá autoridade ao Pe. Manuel Leão para afirmar que “pude acompanhar as iniciativas extraordinárias próprias dum homem de ideias, com uma actividade incansável que marcou um lugar paradigmático nas missões pastorais, na educação e imprensa. O vasto horizonte em que esteve situada a sua vida apostólica fê-lo deixar para trás certas visões acanhadas que os muros do Seminário continham” – (in: D. Sebastião Resende – Uma Evocação, no seu centenário). Num artigo para a referida revista Vila da Feira, António Almeida Santos, Presidente da Assembleia da República de Novembro de 1995 a Abril de 2002, sublinha que “foi pena, muita pena, e uma grande perda para Portugal, que a sua voz não pudesse ter sido ouvida. Se o fora, o desastre que foi o fim da nossa saga colonial, teria sido evitado”. Em 26 de Janeiro de 1967 (morreu no dia anterior) podia ler-se no «Diário de Moçambique»: “… Homem voltado para a realidade do seu tempo, o Senhor Bispo da Beira foi, sob muitos aspectos, um precursor do avanço social verificado na África Portuguesa… algumas das suas pastorais e muitas peças da sua pregação constituíram gritos de autêntico profeta…”. Luís Filipe Santos

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top