Homilia do bispo do Funchal na Missa da Noite de Natal
1. Andamos nós e o mundo inteiro, de há vários meses a esta parte, à procura de “uma luz ao fundo do túnel”. Dizem-nos agora que, com a descoberta de uma vacina, a já enxergamos.
Este ano, o nosso mundo viveu aflito e angustiado com a opressão de um vírus. O que parecia ser um mundo que caminhava de mãos dadas com o progresso, de vitória em vitória — mesmo ignorando ostensivamente tantas situações de desgraça noutras partes do globo e até no seu próprio seio (situações de derrota efectiva de humanidade) — este nosso mundo viu-se, de repente, colocado em causa no seu modo de viver despreocupado e distraído, centrado em si e no prazer que conseguia construir, voltado para o seu umbigo, sem outros horizontes de vida que não o “aqui e agora” do bem-estar. E descobriu-se aflito.
O vírus causou muitas mortes, muito sofrimento. Esperemos que não tenha sido em vão, e nos tenha acordado para a realidade do que somos — ou, ao menos, nos tenha feito interrogar acerca do percurso que estávamos a realizar.
2. Este é um ano de trevas. Bem semelhantes às do povo de Israel a quem se dirigia o Profeta, embrenhado no meio de lutas políticas e militares, sem qualquer “luz ao fundo do túnel”. Hoje como nesse tempo, a verdadeira luz não virá de uma qualquer descoberta humana, mas de uma intervenção de Deus que enche de claridade as nossas trevas.
Como nós hoje, Israel era um povo que se via no meio de inúmeras incertezas. Sem possibilidade de erguer os olhos. De coração pesado e amargurado. Oprimido entre as vontades de várias potências estrangeiras. No meio desta escuridão, o Profeta anuncia uma luz radiosa e tempos novos: tempos de alegria multiplicada, em que o jugo opressor haveria de ser quebrado, e queimada a indumentária da guerra (o calçado ruidoso dos exércitos e a veste ensanguentada dos guerreiros).
Olhando para a realidade que viviam, não poucos terão pensado que Isaías não passava de um sonhador iludido, utópico; ou então, simplesmente, alguém alienado, incapaz de perceber a realidade da vida, o drama das opções a fazer. Contudo, Isaías não hesita. Anuncia um mundo novo. Porque o faz? Porque olha para o mundo que o rodeia não com o olhar dos homens mas com o olhar de Deus. E, a partir de Deus, o Profeta pode e deve anunciar o que irá surgir no meio das trevas.
Que luz é essa, capaz de transformar o ruído e a tristeza da guerra em alegria e paz?
“Um menino nasceu para nós — diz o Profeta — um filho nos foi dado”. Este Menino não é um pensador que proponha ideias que seduzam. Não é um orador brilhante capaz de arrebatar multidões, massas anónimas para o seguirem, hipnotizadas. Não é um comandante que conduza um exército, que imponha pela força o seu querer.
É, simplesmente, um menino. Como todos os meninos: frágil, indefeso, necessitado de quem o alimente e cuide. É uma vida que ali está, um convite, uma suplica.
É um menino que nasceu. Um vida nova. Um novo começo, que faz a fronteira entre um antes e um depois.
É um menino que nasceu para nós. Nasceu para que cada um o acolha, sem receios nem medos. Nasceu para o deixarmos entrar na nossa vida — na vida de cada um e na vida de todos. Nasceu como proposta, como interrogação, como apelo. Para nós, para cada um de nós e para todos.
É um menino que nos é dado como filho. Quer dizer: como obediência, como dependência, como acolhimento do Pai. Como missão.
Toda esta debilidade parece contrastar com os seus atributos: “Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da Paz” — sabedoria, divindade, eternidade, paz. Ao escutá-los e ao encontrar o Menino do Presépio, vêm-nos à memória as palavras do Apóstolo: “o que há de fraco no mundo é que Deus escolheu para confundir o que é forte. O que o mundo considera vil e desprezível é que Deus escolheu; escolheu os que nada são, para reduzir a nada aqueles que são alguma coisa” (1Cor 1,27-28).
3. Assim sendo, quase podemos tomar as palavras de Isaías como uma narração, realizada com vários séculos de antecedência, do sucedido naquela noite fria de Belém: Deus em Pessoa, que nasce na nossa carne mortal.
O menino de Isaías é de verdade este Menino, Deus feito homem, nascido em Belém, no meio de um estábulo de animais, necessariamente desconfortável e sem higiene.
É Ele — Conselheiro admirável, Deus forte, Príncipe da paz — que vem hoje ao coração de cada um de nós e nos convida. Que medo poderemos ter de um recém-nascido?
Deus vem assim ao nosso encontro: simples, frágil, novo, necessitado do nosso amor. Deus mostra-se na fragilidade para que não tenhamos receio de O acolher. E estamos apenas no início do caminho que terá o seu ponto alto, anos depois, na fragilidade extrema da cruz, e que nos nossos dias é prolongado na fragilidade do Pão Eucarístico — verdadeira presença, corpo, daquele Deus feito Homem nascido no Presépio de Belém.
De facto, este Menino continua a vir até nós, na noite que estamos a viver — aquela noite de um mundo desorientado e aflito, e aquela que agora mesmo experimentamos. É Ele que vem até nós para inundar o nosso coração com a sua luz divina (aquela luz que há-de brilhar com ainda mais fulgor na madrugada da ressurreição).
Vem para que O acolhamos, sem medo, sem preconceitos, de coração disponível e puro, como sempre estamos diante de um recém-nascido. Vem para que O deixemos transformar o nosso coração. Vem para que a nossa vida possa ser inundada com a sua luz, com a sua vida — com a sua sabedoria, divindade, eternidade e paz.
Deus une-se dessa forma aos simples, frágeis, pobres, famintos, sedentos, doentes, prisioneiros, sem casa nem tecto para se abrigarem, para que também através deles sejamos capazes de O encontrar.
Hoje, no meio das trevas, brilha, uma vez mais, a luz do Natal. Vem de longe — de terras longínquas e de tempos distantes — mas brilha com a mesma intensidade. Acorda os sonolentos, dá calor aos corações enregelados, entusiasmo aos desanimados: Deus está connosco e vem até nós. Pede que O acolhamos. Que nos deixemos amar por Ele.
Como se canta no Auto de Natal da tradição popular madeirense:
Esta notícia tivemos / logo que cantou o galo / e deixamos nossos campos / para virmos adorá-lo.
Eu vou correr a Belém / Quem quiser venha comigo / Fiquem os gados no campo / Vamos ver o nosso amigo.
Ó meu Menino Jesus / meu lindo amor-perfeito / se Vós tendes frio, vinde, / vinde parar ao meu peito.
Que esperamos nós? Abram-se os olhos da fé; acorde a alma sonolenta do pecado; erga-se o coração. E corra, corra depressa, para junto do Presépio. Não há tempo a perder! Nem deixemos que o mundo nos faça demora. Corramos, alegres, que a luz brilha nas trevas e a noite já se transforma em dia esplendoroso. “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz. […] Um Menino nasceu para nós; um Filho nos foi dado”!