O imperativo ético de compreender a publicidade

Linguagem de síntese, capacidade de inovação, dinâmica aspiracional – desafios para a pastoral Quando se combinam conceitos como Ética e Publicidade a tendência para valorizar um e desclassificar outro é imediata. À Ética corresponderiam a pureza, a verdade e o bem, para a Publicidade ficariam a impureza, a mentira e o mal. Deste raciocínio resultaria uma missão para os defensores da Ética: converter a Publicidade aos bons costumes. A Publicidade é tolerada, mas tem que ser vigiada de perto. No limite, a Publicidade tem que se domesticar, porque sozinha é um perigoso animal selvagem, imprevisível, ameaçador. Pela minha experiência profissional de três décadas e meia a lidar com os temas da Publicidade, tenho que começar por dizer que não me reconheço naquela equação. Prefiro, por isso, pensar o tema Ética e Publicidade a partir de outros termos. Como a dimensão ética está muito tratada entre nós, permitam-me que comece por dar à Publicidade a oportunidade de se mostrar, tal como eu a entendo, naturalmente, nas páginas da Ecclesia. A Publicidade é uma disciplina de comunicação de muito elevada relevância nas sociedades contemporâneas, ocupando parte significativa da paisagem mediática, quer no plano quantitativo – quota de atenção que recolhe quotidianamente e em todos os locais da vida pública e privada – quer no plano qualitativo – pertinência da linguagem, com forte utilização de recursos estéticos. A Publicidade constitui-se como uma meta linguagem, que integra, por direito próprio, o ritmo urbano a que nos habituámos e do qual não se faz tenção de prescindir, ao contrário do que muitos romantismos poderiam julgar. A primeira questão útil é tentar perceber a que se deve esta boa saúde da disciplina – de facto a produção e o investimento publicitário continuam a crescer todos os anos, na generalidade dos países e particularmente em Portugal, registando-se transferência de meios, mas não diminuição global do volume de campanhas. Talvez valha a pena lembrar que movimentos deste tipo por parte da Oferta só são possíveis por haver resposta positiva por parte da Procura. Dito de outro modo, não estamos perante um cenário de saturação da Publicidade, em geral. A Publicidade – simplifiquemos a análise focando-nos nos spots televisivos – responde a um conjunto de expectativas fortes por parte dos cidadãos e consumidores: – A expectativa da comunicação de síntese, transmitindo em pouco tempo, pouco espaço, mensagens relevantes. O discurso publicitário é não narrativo, não exige atenção sequencializada. Pelo contrário ele corre no registo predominante da imagem, alimenta-se de símbolos facilmente descodificáveis. Nesta óptica um anúncio publicitário tem forte afinidade com a sensibilidade contemporânea e é por isso adoptado por ela como gramática geral. – A expectativa da inovação, do anúncio do novo. A Publicidade é disso que trata, de comunicar o que ainda não existe ou uma característica nova do que já existe. Não há anúncios repetidos por demasiado tempo, por definição. Cada um que surge tende a ser um micro acontecimento. Os contemporâneos alimentam-se, precisamente, do Novo. A estimulação urbana, em rede, assim o exige. – A expectativa de atingir outros enquadramentos socialmente reconhecidos como mais avançados, que fazem projectar o indivíduo para outras dimensões de sonho, sempre consciente e que se pode tomar como meta aspiracional. Com a Publicidade opera-se a ampliação dos possíveis e isso ajuda a viver para além dos realismos quotidianos e necessariamente limitados. Estas três dimensões identitárias da Publicidade – linguagem de síntese, capacidade de inovação, dinâmica aspiracional – constituem-se como desafios fundamentais para a nossa vida pastoral. Precisamos precisamente de recriar a nossa mensagem para a sociedade em torno desta trilogia, se quisermos respeitar a cultura contemporânea e, portanto, se quisermos ser ouvidos pelos que compartilham connosco estes tempos de mudança de época histórica. A Publicidade tem, entretanto, uma ética própria: ela assenta num valor que lhe dá a razão de ser. Trata-se do valor da Persuasão, da intencionalidade de tudo o que faz, da sua indisfarçável vontade de convencer as audiências a adoptar um determinado comportamento ou a adquirir um dado produto. Noutro registo: a Publicidade tem convicções. Vale a pena sublinhar como esta atitude afirmativa, que não tem medo de evidenciar as vantagens do que tem para dizer, nos faz falta a muitas das nossas intervenções como cristãos e portadores de uma Boa Nova radical, que se dirige a todas as audiências. A Publicidade não tem vergonha de se mostrar e esse é um dos seus principais imperativos éticos. Mas claro que podemos e devemos ver de outro ângulo: sendo tão poderosa na sociedade contemporânea, a Publicidade coloca fortes interrogações no domínio da Ética. Os modelos que vai produzindo, difundindo, as linguagens que vai renovando continuamente, em que medida são criadoras de humanismo? A sua capacidade de influenciar pessoas e comunidades à medida que vão crescendo, induzindo incessantemente padrões de vida centrados no consumo, em que medida não são destrutivos da dignidade dos seres criados por Deus, e portanto do próprio Deus? A legitimidade e relevância destas questões é evidente. E por isso, faz todo o sentido pensar a partir de um quadro de Infoética, com todos os desafios que decorrem da formulação. Mas, como em tudo na vida importa estabelecer prioridades, em nome da leitura que fazemos do que pode ser útil, do que pode servir um bem maior. A primeira reflexão ética que consigo fazer acerca da Publicidade vai no sentido de a tentar compreender, de saber ler a razão de ser da sua importância. Esta perspectiva de ética segue depois para tentar incorporar esta disciplina na prática pastoral. E aqui ganha um novo desafio: como podemos recriar por dentro a Publicidade? Como podemos potenciar a linguagem diversificando conteúdos, introduzindo os nossos mais específicos? Como podemos aproveitar o convívio com a Publicidade ganhando em ardor e convicção? É que, se formos capazes de adquirir uma linguagem de síntese, simbólica, de produzir continuamente o sentido do Novo e de promover a dimensão sonho, aspiracional entre os nossos contemporâneos estamos a tocar a essência como membros de uma grande e profunda comunidade de Missão, que é a Igreja. E nessa qualidade de comunicadores de uma Boa Nova temos uma ética comum com a Publicidade. Carlos Liz, director geral da APEME, Estudos de Mercado

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