O Esplendor da Vida

1. Celebramos hoje a festa da Epifania do Senhor; a festa da sua manifestação esplendorosa como Filho de Deus, Rei do Universo e Salvador. O Episódio de uns magos vindos do Oriente relatado, no novo Testamento, só pelo Evangelho de S. Mateus constitui o quadro que identifica o dia de Hoje. O Evangelista não chama reis a estes sábios vindos do Oriente; também não diz que são três e muito menos lhes dá nomes determinados, como o fez a tradição posterior chamando-lhes Baltazar, Melchior e Gaspar. O facto, porém, de o relato bíblico falar de ouro, incenso e mirra, presentes que levam implícita uma referência à realeza (ouro), à divindade (incenso) e à humanidade (mirra) de Jesus justifica, de alguma maneira, as elaborações posteriores da tradição popular. Hoje somos chamados a contemplar com eles, no rosto da criança do Presépio de Belém, no rosto do Menino Jesus a beleza e o esplendor divinos que são um bem para todas as criaturas, principalmente para aquelas que pela sua inteligência, têm especial capacidade para entrar dentro desta beleza e deste esplendor. Claro que todo o universo canta a grandeza e o esplendor de Deus, mas a sua expressão mais acabada é o homem que vive, é a vida humana. É este o momento de lembrar que o grande título da dignidade de todos e cada um dos seres humanos é a sua condição de criados à imagem e semelhança de Deus e sobretudo a sua vocação à filiação divina. Cada homem e cada mulher, pelo simples facto de viverem, são um bem com dimensão de infinito, que tem sempre de ser colocado acima de todos os bens materiais e, por isso, passageiros, incluindo obviamente os simples bens de consumo. Diante de cada pessoa, seja qual for o seu grau de desenvolvimento, a quantidade dos bens que possui ou a capacidade de os adquirir, seja qual for o grau da sua saúde ou da falta dela, seja qual for o número de anos já vividos ou daqueles que constituem ainda a sua esperança de vida, diante de qualquer pessoa nós curvamo-nos em atitude de respeito, de contemplação de uma beleza que excede todas as belezas materiais e de um bem absoluto, porque acima de todo o jogo de interesses a que infelizmente, em muitas circunstâncias, está sujeita a gestão da coisa pública. Neste dia da Epifania, em que o Calendário Litúrgico nos convida a celebrar a manifestação do Filho único de Deus à Humanidade na pobreza do Menino de Belém, nós desejamos também aprender a contemplar no rosto de cada pessoa, sem qualquer excepção, a beleza divina que nele se espelha. É esta, sem sombra de dúvida, a grande raiz da dignidade humana e a base de justificação última dos direitos humanos. 2. Nesta solenidade da Epifania, como dissemos, aparece destacado o Episódio dos Magos vindos do Oriente, que a tradição popular chamou reis, sendo por isso, o dia de hoje também denominado, em muitos dos nossos ambientes, o dia de Reis. Estamos perante personagens anónimos, identificados como sábios, vindos do Oriente, sem se dizerem de onde, à procura do Salvador desejado das nações. Interpretam assim uma necessidade geral das pessoas, dos povos e mesmo das culturas, que obriga a procurar fora de si, portanto em alguém que possa vir ao seu encontro, resposta para as grandes interrogações da vida. Esta tendência para a procura de valores essenciais à vida e, no final, de alguém que venha ajudar a cumprir projectos de existência pessoal e comunitária abertos está inscrita no mais fundo de todos os seres humanos e, por isso, o episódio bíblico hoje relatado também a revela. A figura de Herodes, com o seu calculismo e ambição sem medidas, aparece-nos, neste quadro, a revelar também as dificuldades que esta procura encontra. Há autênticas armadilhas, maquiavelicamente pensadas e estrategicamente organizadas, que são montadas para impedir o cumprimento dos anseios mais nobre da consciência humana, no exercício da sua autêntica liberdade e responsabilidade. Essas armadilhas são de ontem, como aconteceu com a figura repulsiva de Herodes, que não hesitou em recorrer à matança de inocentes para atingir os seus fins e são também de hoje, onde continua instalada a tentação de justificar todos os meios para atingir determinados fins. O Menino de Belém que os magos adoraram, oferecendo-lhe os seus presentes de ouro, incenso e mirra, é a resposta para a universal procura humana de bem e de felicidade. E sabemos que nada nem ninguém o impedirá de cumprir a sua missão, apesar das resistências que lhe oferecem os muitos interesses instalados na nossa sociedade. Nele brilha o esplendor do próprio Deus que encanta os corações rectos e lhes abre os caminhos da verdadeira humanização. Como no rosto de Cristo, também na Jerusalém antiga, a que se refere a Leitura de Isaías e hoje na nova Jerusalém, que é a Igreja, brilha a beleza e o esplendor do mesmo Deus. É certo que este brilho é constantemente esbatido e às vezes ofuscado pelas imperfeições e mesmo pecados dos seus membros, mas nunca será totalmente escondido, porque é missão da Igreja apresentar ao mundo e às suas diferentes culturas o plano salvador de Deus. De facto, Deus veio e vem para todos sem excluir ninguém, pois, com a revelação do Mistério de Cristo, diz Paulo na carta as Efésios, os gentios recebem a mesma herança que os judeus, pertencem ao mesmo Corpo e participam da mesma promessa. Cristo procurado pelos magos e encontrado no Presépio de Belém é o salvador universal e a Igreja o instrumento da sua salvação universal. Eis a razão porque a Igreja assumiu a responsabilidade de ser católica, ou seja não só aberta à universalidade do mundo mas também empenhada em prestar o seu serviço a toda a comunidade humana. E, entre todos os serviços, tem de ocupar lugar primeiro o serviço à vida. 3. De facto, porque a vida é o maior bem que existe à face da terra, merece e exige que se lhe dispensem os maiores cuidados, a maior atenção, a maior protecção. A atitude mais digna e mais construtora de humanidade que cada ser humano pode assumir é ser servidor da vida em si próprio e nos seus semelhantes, que nós, pela Fé, chamamos irmãos. Ora, porque a vida não é um processo isolado, que possa ser vivida no individualismo, cada um de nós é também responsável pela vida dos outros, na medida em que nos compete a responsabilidade de os ajudar a construir a sua própria vida. E, de facto, esta atitude pró-activa de ajudar os outros a crescer e a construir a sua própria vida em inter-ajuda fraterna é aquela que mais dignifica e dá sentido à própria existência. É que só se vive vida de qualidade no acto de ajudar os outros a viver e a entusiasmarem-se cada vez mais pela vida. Esta é uma lei geral que o Evangelho formula assim: “Quem procura ganhar a sua vida vai perdê-la; e quem a perde vai ganhá-la” (Lc 17,33). Este serviço à vida, que tem de mobilizar cada vez mais todos os homens e mulheres, tem a sua expressão primeira na paternidade e na maternidade. De facto, o acto de procriar é o primeiro grande acto de serviço à vida, que, depois, há-de ser naturalmente acompanhado no acolhimento e na prestação dos cuidados exigidos pela mesma vida, no quadro de uma família estável. É legítimo que aqui prestemos a nossa homenagem à multidão das mulheres mães que acolhem com alegria e generosidade os seus filhos; e às vezes se sujeitam aos maiores sacrifícios para lhes salvarem a vida em maternidades de risco. Como também queremos prestar igual homenagem aos pais, que acompanhando as mães e completando-as no dedicado serviço à vida, sofrem e lutam para criar todas as condições de crescimento equilibrado na vida aos seus filhos. De facto, o amor de pai e de mãe é um valor fundamental e podemos chamá-lo mesmo fundador da dignidade humana. Isso torna ainda mais dramática a fraqueza daqueles e daquelas que abandonam os seus filhos ou mesmo os impedem de nascer. É por isso que não podemos deixar de prestar aqui também a nossa homenagem a quantos dedicam as suas vidas a tratar da vida dos que são abandonados, sejam doentes, pobres, idosos, marginalizados ou simplesmente crianças. Neles vemos a mão amiga que se entende sobretudo às mães em dificuldade e em geral às famílias que precisam de quem as ajude a completar a nobre missão de acolher a cuidar bem, por uma educação esmerada, aqueles filhos que foram confiados à sua responsabilidade. Sendo a vida este máximo esplendor do bem, a máxima sublimidade de tudo o que habita à superfície da terra, temos o direito a esperar uma única atitude na qual se empenhem todos os cidadãos, todas as instituições sociais, incluindo os partidos políticos, e o próprio Estado, como tal e enquanto pessoa de bem. Essa atitude transversal a toda a sociedade, a que todos temos direito, chama-se defesa da vida desde a concepção até à morte e é legítimo esperar que nela se empenhem todas as pessoas e instituições com responsabilidade na condução da vida pública. Por isso, quando se põe o problema de saber se o aborto é uma questão política, no sentido de ser consequência de certas ideologias políticas próprias de determinados partidos, parece-nos que não, ou pelo menos que não devia ser, porque a finalidade verdadeiramente nobre de toda a política e respectiva opção partidária é o serviço à vida de todos os cidadãos sem excluir nenhum deles. E se, porventura houver que privilegiar alguns, esses que sejam os mais fracos, os sem voz, os que não têm possibilidade de se defender. E no número desses estão certamente os não nascidos. Por isso, entendemos, ainda que os factos da nossa vida pública estejam a dizer o contrário, que é preciso despolitizar este problema, no sentido de que não se pode ser a favor ou contra o aborto só porque se pertence a determinado partido político. Com essa despolitização, a discussão pública e o esclarecimento das consciências ganharão, certamente, em objectividade. E a razão é a seguinte: a defesa da vida é um valor supra-partidário, na medida em que deve inspirar todas e qualquer uma das políticas partidárias que, por natureza, têm de estar ao serviço do homem e da sociedade. Pelo contrário, é indigno da maturidade política de um povo que alguém seja a favor da legalização do aborto só porque essa é a orientação do seu partido ou do partido da sua preferência. Julgamo-nos no direito e no dever de dirigir um apelo a todos os nossos representantes político-partidários para que saibam honrar o mandato que lhes foi confiado para defenderem os interesses e os direitos de todos os cidadãos, o primeiro dos quais é o direito à vida desde o embrião à morte natural”.* Catedral da Guarda, Epifania do Senhor (7 de Janeiro de 2007) Homilia de D. Manuel da Rocha Felício, Bispo da Guarda

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