O enraizamento

Manuel Castelo Branco, Diocese de Coimbra

Em O Vento Nos Levará, Abbas Kiarostami coloca na voz de um personagem, sempre invisível no ecrã, a afirmação de a vida ser impossível sem amor.

O amor de que os filmes de Kiarostami dão sublime nota – de Atrás das Oliveiras a Cópia Certificada, de O Sabor da Cereja a Like Someone in Love – não é o amor romântico. É algo de natureza diferente.

É o modo de estabelecer o primado da alteridade e a necessidade do enraizamento como condições e critérios de uma vida com sentido.

Heidegger, nos escritos tardios, despojado da ganga ontológica que marca O Ser e o Tempo, aponta o enraizamento como trave mestra da existência. Enraizamento que convoca e tem como marcas de água a hospitalidade, o acolhimento, a afabilidade, a amabilidade.

O abrir as portas, em noite escura, ao solitário caminhante. O ter mesa perpetuamente posta, para o calor da partilha do pão, do vinho, do leite, da água.

Simone Weil, nos brevíssimos 34 anos de uma vida tão profunda, buscou na solidariedade operária das fábricas da Renault, na fraternidade republicana da Guerra Civil de Espanha e no fervor religioso da comunidade piscatória da Póvoa de Varzim sinais desse enraizamento, sem o qual a vida é puro acontecimento vegetativo.

E denunciou, em O Enraizamento, a natureza dissolvente da racionalidade técnica, pedra angular comum ao capitalismo liberal e ao socialismo científico.

Natureza desintegradora e anómica colocada em evidência, logo no início do século XX, por Émile Durkheim, em O Suicídio. O fim do modo de vida rural, o urbanismo e a divisão do trabalho próprios da Revolução Industrial rápido se revelaram agentes patogénicos dos laços humanos e sociais.

O triunfante capitalismo financeiro e neoliberal do século XXI vai na mesma senda, e agrava-a.

Usa para tal a ordem jurídica laboral. Onde se elogia a flexibilidade horária e a mobilidade geográfica, onde se condena a duração contratual, onde se cerca a solidariedade sindical –  aí temos o Direito do Trabalho como instrumento de domínio de ávidos  amos  e de servidão de exércitos de temerosos proletários.

O nómada laboral, analógico ou digital, decai no puro animal laborans definido por Hannah Arendt em A Condição Humana.

Um ser doente, moribundo, privado de tempo reflexivo e contemplativo. Sem espaço lúdico. Alienado de si.

Um ser sem raízes de comunidade e de comunidades. E sem laços de amizade e de amor.

Sem possibilidade de raízes não há a possibilidade do amor. E sem amor, recuperando o invisível personagem de Kiarostami, não é possível viver.

E o vento levar-nos-á.

Manuel Castelo Branco
Comissão Diocesana Justiça e Paz

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