Dignidade humana – Da ordem do ser à ordem do agir

António Salvado Morgado, Diocese da Guarda

Foi no início do mês de Abril deste ano 2024 que a Congregação para a Doutrina da Fé publicou, com a aprovação do Papa Francisco, um documento elaborado pelo respectivo Dicastério. É a “Declaração ‘Dignitas Infinita´” sobre a Dignidade Humana, resultado de um processo de amadurecimento desenvolvido ao longo de 5 anos. Um tempo longo para um texto relativamente breve. Mas isso evidencia a necessária sensibilidade com que foi pensado, a superior seriedade com que o documento foi elaborado e a importância que a problemática da Dignidade Humana possui na complexidade do tempo presente. A todos os títulos, importa não esquecer este texto e, sobretudo, importará conhecê-lo e aprofundá-lo, sabendo que ele não pretende exaurir a temática, mas «fornecer alguns elementos de reflexão» nas palavras do Cardeal Victor Manuel Fernández, actual presidente do Dicastério para a Doutrina da Fé.

Talvez nunca, como hoje, se tenha invocado tanto a Dignidade Humana. Não será necessário proceder a grandes observações sobre o que se passa e escreve na sociedade em que vivemos para se poder constatar como é usual utilizar a palavra “dignidade”. Adjectivada ou não, ela aparece em contextos e textos variados, nacionais e internacionais, simplesmente jornalísticos ou oficiais e oficiosos, de diversas instituições e organismos. Convenções, declarações, convénios, códigos éticos e deontológicos, ocupando um lugar proeminente e onde raramente se especifica o sentido que se lhe atribui.

Dada a imprecisão do termo, não deixará de haver o perigo de se olhar para a palavra com cepticismo e vacuidade de sentido, ou mesmo considerá-la estéril, contrariando assim, com frequência, o espírito dos próprios documentos em que ela aparece. Daí que se imponha a necessidade de clarificar o conceito.

A “Declaração” é naturalmente breve, mas densa do primeiro ao último parágrafo, e fornece um sem número de elementos de reflexão, quer no que diz respeito a uma fundamentação teórica, quer no que se relaciona com a denúncia de «algumas graves violações da dignidade humana» de que se ocupa a quarta e última parte.

O próprio título “Dignitas infinita” [Dignidade infinita] faz-nos pensar. Ela aparece já na Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium” (178) onde o Papa Francisco cita João Paulo II. “Dignidade infinita”, “infinita”, e não simplesmente Dignidade, por que razão? Curiosamente a expressão só agora está a ser questionada. Será porque ela aparece aqui a titular um documento?

A densidade do texto mostra-se logo no primeiro parágrafo onde se afirma: «Uma dignidade infinita, inalienavelmente fundada no seu próprio ser, é inerente a cada pessoa humana, para além de toda circunstância e em qualquer estado ou situação em que se encontre. Este princípio, que é plenamente reconhecível também pela pura razão, coloca-se como fundamento do primado da pessoa humana e da tutela de seus direitos.» (1). Dir-se-á que este parágrafo inicial constitui uma síntese de elementos conhecidos de que se faz eco a “Declaração Universal dos Direitos do Homem” emanada das Nações Unidas em 1948 e de que o texto do Dicastério faz memória no seu 75.º aniversário, quer para proclamar novamente a convicção da «inalienável dignidade» de cada ser humano, quer para «esclarecer alguns equívocos que surgem frequentemente acerca da dignidade humana e para enfrentar algumas graves e urgentes questões concretas relacionadas a esta.» como se escreve no parágrafo seguinte (2). Também as boas sínteses conhecidas precisam de ser redescobertas. Depois de se ler toda a “Declaração” e regressando ao início, fica-se com a sensação de que toda ela está virtualmente compendiada neste primeiro parágrafo introdutório.

A “Declaração” começa por precisar um conjunto precioso de elementos substantivos da natureza do que se designa de «dignidade ontológica» do ser humano. Ontológica porque «fundada no seu próprio ser», no ser próprio do Homem, e isso de modo «inalienável», sendo, «inerente a cada pessoa humana, para além de toda a circunstância e em qualquer estado ou situação em que se encontre

A dignidade identifica-se objectivamente com o ser do ser humano, com a estrutura essencial do que o Homem é. A dignidade assim entendida, inerente, intrínseca e natural ao ser profundo da realidade humana, é universal e nunca se perde, estando «para além de toda circunstância e em qualquer estado ou situação em que se encontre». Talvez, por isso, tenha todo o sentido dizer que ela é «infinita». Não há circunstância ou estado algum que possa destruir a perfeição e a excelência do ser humano. Sempre, para além das aparências em que se encontre, ele é digno de respeito, consideração, estima e honra, porque lhe é intrínseca a «dignidade ontológica», que é de si, do seu próprio ser.

Como se estará a ver, a «dignidade ontológica» do ser humano funda-se numa filosofia do ser e na possibilidade cognoscitiva do acesso ao ser mais íntimo da realidade humana, o que não deixará de levantar alguns problemas a quantos pretendam reduzir o ser humano a um fenómeno puramente empírico. Mas será inquestionável que o princípio da «dignidade ontológica», fundamenta o primado da pessoa humana e dos seus direitos, em o qual os «direitos humanos» ficarão a pairar no ar da indefinição, sempre susceptíveis de serem entendidos conforme as conveniências pessoais, sociais e políticas. E talvez seja isso o que vem acontecendo à vista de todos e em muitos assuntos do viver político, tantas vezes sem protestos nem inconformidades. Será por isso que aquela declaração se apressa a dizer logo no início que o princípio da «dignidade infinita» «é plenamente reconhecível também pela pura razão» e que a Igreja, à luz da Revelação o «confirma de modo absoluto» e dele extrai «as razões do seu empenho em favor daqueles que são mais fracos e menos dotados de poder.» E lembro a metáfora com que João Paulo II inicia a encíclica “Fides et Ratio” quando diz que a razão e a fé são as duas asas do espírito humano que sempre necessitam do equilíbrio funcional.

A “declaração” emanada do Vaticano, invocando o exercício da pura razão, constitui um desafio de primeira instância a uma mentalidade pós-moderna que parece ter perdido o sentido da verdade racional. Será preciso acentuá-lo com a força de um espírito atento: a dignidade humana não se funda simplesmente na fé dos crentes cristãos para os quais Deus criou o Homem à Sua imagem e semelhança. O ser humano possui uma dignidade originária intrínseca à sua natureza, «dignidade ontológica», portanto, que pode ser apreendida e aprendida à luz da razão pura, independentemente da fé, embora a Revelação a confirme e lhe dê nova dimensão com a realidade da Criação, da Encarnação e da Ressurreição do Filho de Deus, a que alguns designam de «dignidade teológica». Não se tratará, obviamente, de uma demonstração matemática, como se de um teorema se tratasse, mas, sabendo da progressiva consciência do seu carácter central, a ideia de «dignidade ontológica» surgirá na plenitude final de uma intuição de um espírito atento quando purifica a razão e encara os fundamentos últimos da sua realidade. Ou, se se preferir, ela poderá ser vista como um “a priori” que se constitui como primeiro princípio de toda a ética.

Creio que só á luz e no pressuposto da «dignidade ontológica» se poderão compreender as outras formas de dignidade faladas na “Declaração” como sejam a «dignidade moral», fundada no exercício da liberdade pessoal, a «dignidade social» fundada nas condições em que a pessoa se encontra no interior de uma sociedade e «dignidade existencial», relativa à dificuldade de tranquilidade e paz interior, esperança e fé na vida. Tudo concreções da «dignidade ontológica» a que poderíamos juntar outras formas como a «dignidade jurídica», relativa ao ser que possui direitos e deveres segundo a lei.

Se a «dignidade ontológica» pertence à ordem do ser ou da natureza íntima do Homem, as outras formas de dignidade pertencem à ordem da acção, do agir e do viver. Se a «dignidade ontológica» é uma dignidade doada, as outras formas são da ordem da promoção e da realização. Responsabilidade de cada pessoa, de cada comunidade, de cada Estado.

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