Octávio Carmo, Agência ECCLESIA
A viagem do Papa ao Iraque fica para a história pelos mais diversos motivos. Desde logo, por ser a primeira de um Papa à terra que viu nascer o patriarca Abraão, figura bíblica de referência para judeus, cristãos e muçulmanos. Foi também uma viagem de risco assumido, em plena pandemia e num contexto de conflito e violência, dentro e junto às fronteiras do território iraquiano. As igrejas em ruínas foram também um sinal incontornável de que, ainda há quatro anos, o Estado Islâmico semeava morte e destruição de uma forma impensável para o mundo do século XXI – e a comunidade internacional, no seu todo, tem responsabilidade moral no que aconteceu e no que deixou acontecer.
A ideia com que fico, no entanto, é a da história projetada para o futuro: Francisco marcou, indelevelmente, o que deve ser um Papa. Disposto a oferecer a vida pelos seus, se for caso disso, ao encontro dos mais fracos, dos mais desprotegidos. A noção do soberano fechado dentro das muralhas do Vaticano está, definitivamente, ultrapassada – uma revolução teológica iniciada há décadas e que agora tem, na viagem ao Iraque, o seu símbolo maior.
Esta visita foi um elogio do impensável. Nenhum outro líder internacional a faria, parece-me. Até para a própria população – que sobrevive com dificuldade às sucessivas crises militares, políticas e económicas, à violência e ao terrorismo – teria parecido uma piada de mau gosto falar numa viagem do Papa num (não assim tão distante) qualquer momento de 2016, por exemplo.
O contraste entre a alegria transbordante da comunidade católica de Qaraqosh (que escolhi na foto que retrata este texto) e o seu desespero em 2014, quando fugia pela vida depois dos ataques do Daesh, fala por si. A mesma catedral que viu morrer 48 pessoas num ataque terrorista em 2010, na capital iraquiana, recebeu Francisco no seu primeiro encontro com a comunidade cristã. Tudo isto seria impensável há pouco tempo, mas aconteceu.
Sim, há uma pandemia e é possível questionar o timing da visita. O próprio Papa fará questão de falar sobre isso, já este domingo disse que aguardava com “impaciência” este encontro com a Igreja no Iraque. Para ele, seria impossível adiar o que considerava ser seu dever.
Acredito que todas as partes tenham entendido que o simbolismo desta viagem que ninguém poderia imaginar e o seu impacto na região – a imagem das mulheres cristãs, em festa, saudando o Papa que passava na estrada, não poderia ser mais diferente das que chegam de outras paragens – teriam mais fatores positivos do que os perigos envolvidos. O futuro dirá.
Depois de 2019, em Abu Dhabi, Francisco reforçou no Médio Oriente a sua busca de vozes que repitam com ele que nenhuma violência em nome de Deus é aceitável. Nunca. O caminho é construir a fraternidade, em vez do fratricídio.
Para os cristãos do Iraque, algo ficará para sempre: o Papa correu todos os riscos para estar com eles, numa prova de amor total. “Parece mentira”, diziam muitos dos que foram entrevistados. Até a imprensa local falava em discursos “comoventes”, em cenários que evocavam a destruição recente.
Depois de dias de morte, de incerteza, de desespero e medo, os cristãos iraquianos puderam viver um momento de esperança e de festa. Talvez nos faça bem aprender com eles, também neste período triste da pandemia, e perceber que o mal não tem a última palavra. Isso sim, é impensável para um cristão.