O critério é sempre a pessoa humana

Notas de Doutrina Social da Igreja para o debate «O Novo Código do Trabalho e a situação sócio-económica do Porto» 1. Permito-me retomar algumas observações feitas na Nota pastoral no vigésimo quinto aniversário da visita do Papa João Paulo II à cidade do Porto, de 15 de Maio de 2007, dada a permanência básica da caracterização da situação sócio-económica: Têm sido reconhecidas e analisadas as dificuldades sociais e económicas da região, em especial no que toca às empresas e ao desemprego de muitos trabalhadores. Igualmente se verificam novos surtos emigratórios, em busca do trabalho que aqui escasseia. Reconhecem-se abandonos da escolaridade, atrasos na qualificação técnica e lacunas na formação especializada, precisamente onde mais urgente se torna para o desenvolvimento. É neste contexto que lembro o ponto essencial do discurso do Papa João Paulo II no Porto: a dignidade da pessoa humana, como referência constante da análise que se faça e da solução que se procure em qualquer situação social e económica. A consequência efectiva deste critério reside em que os intervenientes no processo de desenvolvimento, mesmo quando se tenha de proceder a grandes alterações, deslocações e até substituições e dispensas no quadro das empresas e serviços, devem pensar em alternativas viáveis para todos os eventualmente afectados, tendo em conta, aliás, as respectivas idades e famílias, além de outras circunstâncias pessoais. E, neste ponto, as autoridades públicas, primeiras zeladoras do bem comum, têm certamente de apoiar os particulares, quer empregadores quer empregados. Garantir trabalho, promover a habilitação escolar e profissional, desenvolver a formação contínua e obviar à ociosidade forçada, tudo são garantias de uma sociedade realmente desenvolvida. Longe de serem um dispêndio mais para quem tenha de gerir os recursos públicos ou privados, são o melhor investimento social e económico a médio e longo prazo e caracterizam uma sociedade saudável, a nível local, regional ou nacional e até europeu. 2. Trata-se essencialmente duma questão de cidadania, que a todos nos envolve a esse título, crentes ou não-crentes. Transportando uma tradição que une a causa de Deus e a causa do homem, a Igreja Católica tem tirado daí as necessárias consequências sócio-económicas. Reforça o que devia ser uma convicção básica e comum: a transcendência de cada pessoa, no que é e no que realiza, a respeitar convenientemente. Na sua primeira encíclica o Papa Bento XVI situou nestes termos a intervenção da Igreja: “A doutrina social da Igreja discorre a partir da razão e do direito natural, isto é, a partir daquilo que é conforme à natureza de todo o seu humano. […] A Igreja não pode nem deve tomar nas suas próprias mãos a batalha política para realizar a sociedade mais justa possível. Não pode nem deve colocar-se no lugar do Estado. Mas também não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça. […] A sociedade justa não pode ser obra da Igreja; deve ser realizada pela política. Mas toca à Igreja, e profundamente, o empenhar-se pela justiça, trabalhando para a abertura da inteligência e da vontade às exigências do bem” (Bento XVI, Encíclica Deus caritas est, 25 de Dezembro de 2005, nº 28). 3. Nesta ordem de ideias, é imprescindível encarar o trabalho, não só do ponto de vista da sua objectividade e necessária consequência sócio-económica, mas também e ainda antes na perspectiva de quem o efectua, ou seja, na sua subjectividade, como dimensão essencial da pessoa humana, da realização de cada um: “Qualquer forma de materialismo e de economicismo que tentasse reduzir o trabalhador a mero instrumento de produção, a simples força de trabalho, a valor exclusivamente material, acabaria por desvirtuar irremediavelmente a essência do trabalho, privando-o da sua finalidade mais nobre e profundamente humana. A pessoa é o parâmetro da dignidade do trabalho” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, Conselho Pontifícia Justiça e Paz, 2004, nº 271. A substância do Compêndio são transcrições de documentos pontifícios, de Leão XIII a João Paulo II, sempre referenciadas em nota). E é dessa dimensão humana do trabalho que decorrem os direitos básicos dos trabalhadores, aliás necessários ao cumprimento dos seus deveres. Como os enumera o Compêndio: “o direito a uma justa remuneração; o direito ao repouso; o direito a dispor de ambientes de trabalho e de processos de laboração que não causem dano à saúde física dos trabalhadores, nem prejudiquem a sua integridade moral; o direito a ver salvaguardada a própria personalidade no lugar de trabalho, sem serem violadas seja de que modo for a consciência ou a dignidade; o direito a convenientes subvenções indispensáveis para a subsistência dos trabalhadores desempregados e das suas famílias; o direito à pensão de aposentação ou reforma, ao seguro para a velhice bem como para a doença e ao seguro em caso de acidentes de trabalho; o direito a disposições sociais referentes à maternidade; o direito de reunir-se e de associar-se” (CDSI, 301). Tal conjunto de direitos vai passando da teoria à prática pela reflexão de alguns e pela acção de muitos mais. É uma longa e árdua história, que contou e conta com o protagonismo sindical, entre outros. A Doutrina Social da Igreja acolhe e legitima a vários títulos as organizações sindicais, na respectiva finalidade e conveniência: “As organizações sindicais, perseguindo o seu fim específico ao serviço do bem comum, são um factor construtivo de ordem social e de solidariedade e, portanto, um elemento indispensável da vida social. O reconhecimento dos direitos do trabalho constitui desde sempre um problema de difícil solução, porque se actua no interior de processos históricos e institucionais complexos, e ainda hoje pode considerar-se incompleto. Isto torna mais que nunca actual e necessário o exercício de uma autêntica solidariedade entre os trabalhadores” (CDSI, 305). Sem que, com isto, se tenha uma visão conflituosa ou dialética das componentes sociais. Trabalho e capital, vendo também o segundo como fruto e activador do primeiro, devem convergir para o bem geral duma sociedade que comporta os dois e ganha com o seu dinamismo mútuo. Por outro lado, é relevante o papel dos sindicatos para a consciencialização e a resposta públicas. Assim, depois de reconhecer que “em todo o sistema social, são indispensáveis para o processo de produção tanto o trabalho quanto o capital” (CDSI, 306), o Compêndio também assevera: “O sindicato e as outras formas de associativismo dos trabalhadores devem assumir uma função de colaboração com os outros sujeitos sociais e interessar-se pela gestão da coisa pública. As organizações sindicais têm o dever de influenciar o poder político, de modo a sensibilizá-lo devidamente para os problemas do trabalho e a empenhá-lo a favorecer a realização dos direitos dos trabalhadores” (CDSI, 307). 4. A sociedade muda velozmente, com fortes consequências no sector laboral. Contrariamente ao que sucedia antes, hoje são muito mais as descontinuidades do que as permanências transgeracionais nas mesmas terras, nos mesmos trabalhos nas mesmas técnicas. Além da constante adaptação mental e tecnológica, também o enquadramento social e legal do trabalho tem de ser mais atento e oportuno, para que a humanidade de todos e cada um, no que tem de essencial e evolutivo, seja igualmente contemplada, nas suas possibilidades e exigências: “A transição em curso assinala a passagem do trabalho contratado por tempo indeterminado, entendido como emprego fixo, a um percurso profissional caracterizado por uma pluralidade de actividades profissionais; de um mundo do trabalho compacto, definido e reconhecido, a um universo de trabalhos, variegado, fluido, rico de promessas, mas também impregnado de interrogações preocupantes, especialmente em face da crescente incerteza acerca das perspectivas de emprego, de fenómenos persistentes de desemprego estrutural, da inadequação dos actuais sistemas de segurança social. As exigências da competição, da inovação tecnológica e da complexidade dos fluxos financeiros devem ser harmonizadas com a defesa do trabalhador e dos seus direitos” (CDSI, 314). Uma harmonização que só poderá ser verdadeiramente alcançada de modo humanista, ou seja, ao serviço da pessoa humana e do bem comum, permitindo o desenvolvimento integral “de todos os homens e do homem todo”. Nunca cedendo perante o aventado determinismo das circunstâncias ou da técnica. Sabemos bem como tais “determinações”, não tendo em conta os direitos humanos, originam sempre retrocessos e situações sociais insustentáveis: “A doutrina social da Igreja, recomenda, antes de tudo, que se evite o erro de considerar que as mudanças em curso ocorrem de modo determinista. O factor decisivo e ‘o árbitro’ desta complexa fase de mudança é uma vez mais o homem, que deve continuar a ser o verdadeiro protagonista do seu trabalho. Ele pode e deve assumir de modo criativo e responsável as actuais inovações e reorganizações que sirvam ao crescimento da pessoa, da família, das sociedades e de toda a família humana” (CDSI, 317). Designadamente quanto às inovações tecnológicas, que só podem entender-se em idêntica perspectiva humanista, com uma colaboração alargada de sindicatos e empresas, universidades e Estado: “Quanto mais profundas são as mudanças, tanto mais decidido deve ser o empenho da inteligência e da vontade para tutelar a dignidade do trabalho, reforçando, nos vários níveis, as instituições envolvidas. Esta perspectiva consente orientar do melhor modo tais transformações na direcção, tão necessária, da complementaridade entre a dimensão económica local e a global; entre economia ‘velha’ e ‘nova’; entre a inovação tecnológica e a exigência de salvaguardar o trabalho humano; entre o crescimento económico e a compatibilidade ambiental do desenvolvimento humano” (CDSI, 319). 5. No que respeita ao papel do Estado, a Doutrina Social da Igreja insiste em dois pontos essenciais: acolher e potenciar a criatividade de pessoas e grupos (corpos intermédios), aplicando a subsidiariedade; e intervir a favor do bem comum e em defesa dos mais fracos. Tanto por princípio como por constatação prática: “A comunidade política persegue o bem comum actuando com vista à criação de um ambiente humano em que aos cidadãos seja oferecida a possibilidade de um real exercício dos direitos humanos e de um pleno cumprimento dos respectivos deveres: A experiência demonstra que, onde quer que falte uma acção apropriada dos poderes públicos, os desequilíbrios económicos, sociais e culturais dos seres humanos tendem, sobretudo na nossa época, a acentuar-se, e por isso se chega ao ponto de os direitos e deveres não possuírem qualquer eficácia” (CDSI, 389. E, no nº 394: “A autoridade política deve garantir a vida ordenada e recta da comunidade, sem tomar o lugar da livre actividade dos indivíduos e dos grupos, mas disciplinando-a e orientando-a, no respeito e na tutela da independência dos sujeitos individuais e sociais, para a realização do bem comum”). Associação Católica do Porto, 5 de Junho de 2008 D. Manuel Clemente, Bispo do Porto

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