O Amor de Deus, fundamento do desenvolvimento humano e da cooperação

Conferência de Cardeal Geraldo Majella Agnelo, no VII Encontro das Igrejas Lusófonas Irmãos no Episcopado, Irmãs e irmãos Sou grato pela oportunidade que me é concedida de dirigir-me aos irmãos das diversas Conferências Episcopais dos países lusófonos, por ocasião desse nosso 10° Encontro, sob o olhar materno da Virgem de Fátima. Agradeço também a fraterna acolhida que nos é proporcionada pelos irmãos bispos e pelo generoso povo de Portugal. O tema que me foi confiado é “o amor de Deus como fundamento do desenvolvimento humano e da cooperação”. Esse tema nos coloca no centro da missão da Igreja e da motivação mais profunda para nosso serviço pastoral e eclesial aos povos que servimos. Dirige nossa atenção para o tema da ajuda fraterna entre Igrejas, nossa colaboração com organizações da sociedade civil, órgãos de governos ou com agências da cooperação internacional na superação da pobreza, na promoção do bem comum e na construção de uma civilização do amor. Quero me valer da inspiração que nos trouxe a Encíclica do Papa Bento XVI, “Deus Caritas Est – sobre o amor cristão” (DCE), publicada na significativa data de 25 de dezembro de 2005, para colher dela sugestões e propostas para uma colaboração sempre mais proveitosa entre nossas Igrejas, em benefício do serviço da caridade e da promoção da justiça e da paz entre os nossos povos. Na sua Encíclica sobre o amor cristão, o Papa nos ofereceu não só o programa de seu Pontificado, mas lançou uma vigorosa chamada a toda Igreja para centrarmos nossa ação evangelizadora na dimensão da caridade, traço essencial de nossa identidade cristã. O amor de Deus e ao próximo resume toda lei e os profetas, segundo a palavra de divino Mestre (cf. Lc 10, 27-28). Além de unir o amor a Deus com o amor ao próximo, Cristo nos deu seu novo mandamento: “amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei” (Jo 15,12). A partir da afirmação da centralidade do amor, o Papa nos lembra, a seguir, que esse amor, mesmo devendo começar em casa, ultrapassa fronteiras de raça, classe e nação, isto é, que o amor cristão é universal. A parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 25-37), diz a encíclica, nos ensina que “qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudá-lo, é meu próximo. O conceito de próximo fica universalizado, sem deixar, todavia, de ser concreto” (DCE, 15). Jesus se identifica com os necessitados e quer ser neles reconhecido e amado. “Sempre que fizestes isso ao menor dos meus irmãos, a mim mesmo o fizestes” (Mt 25, 40). O Papa nos lembra, ainda, que o amor ao próximo, em todas a suas formas, não pode ficar atrás dos outros deveres da Igreja. Nas palavras da encíclica: “A natureza íntima da Igreja exprime-se num tríplice dever: anúncio da Palavra de Deus (kerygma-martyria), celebração dos sacramentos (leiturgia), serviço da caridade (diakonia). São deveres que se reclamam mutuamente, não podendo um ser separado dos outros. Para a Igreja, a caridade não é uma espécie de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência” (DCE, 25). A encíclica ainda explica o significado desse amor-serviço como um amor que une a justiça e a caridade, a ação por uma ordem social justa com serviços concretos de assistência e promoção, sobretudo aos mais pobres e necessitados. Recorda a rica tradição da ação caritativa da Igreja e de nossa Doutrina Social, recentemente reunida de modo orgânico no “Compêndio da doutrina social da Igreja”, preparado pelo Pontifício Conselho “Justiça e Paz”. Afirma a seguir o amor ao semelhante é dever de cada cristão, mas encontra expressão organizada nas múltiplas estruturas de serviço, tanto em estruturas administradas entidades eclesiais como em estruturas da sociedade civil e de governos. Enfatiza que o exercício da “caridade social” na promoção do bem comum é o campo privilegiado dos fiéis leigos, através de sua múltipla actividade profissional, inclusive no campo da política (DCE, 29). Como contribuição específica da Igreja, em todos esses setores, o Papa aponta a purificação da razão, o despertar das forças morais, a formação das consciências, tudo isso animado pela força da fé e alimentado pela oração. O cristão sabe que servir o próximo “não é mérito seu, nem título de glória… Essa tarefa é Graça. Quanto mais alguém trabalhar pelos outros, tanto melhor compreenderá e assumirá esta palavra de Cristo: «somos servos inúteis» “(DCE, 35). Esse amplo panorama do amor cristão, como fundamento do nosso serviço aos demais, a favor de um desenvolvimento sempre mais humano e ambientalmente sustentável, permite-nos visualizar melhor nossa cooperação enquanto Igrejas, nesse campo da acção caritativa e social. É com alegria e gratidão a Deus que constatamos as variadas formas de acção social existentes em nossas Igrejas e a colaboração dessas entidades entre si e com outros, somando esforços para o maior bem do nosso povo. São redes de Caritas, de pastorais sociais, Comissões Justiça e Paz, associações e obras sociais, em frequentes parcerias com órgãos de governos ou com ONGS e movimentos sociais. A acção caritativa das Igrejas se expressa em campanhas e serviços, para atender situações de emergência; para acções estruturantes, que visam fortalecer a formação e a organização do povo e garantir o seu acesso aos bens, materiais e espirituais, necessários a uma vida digna; para actividades de formação e educação para a justiça, a reconciliação e a paz. A Igreja do Brasil promove todos os anos a Campanha da Fraternidade, no período quaresmal, em torno de um tema relevante no campo social, buscando evangelizar pela prática da solidariedade. Nos últimos três anos, os temas da Campanha da Fraternidade foram o tema da água (2004), a construção de uma cultura da paz (2005, CF ecuménica) e as pessoas com deficiência (2006). Para 2007, estamos trabalhando com o tema da Amazónia, em defesa dos povos que lá vivem, com forte presença indígena, da biodiversidade, da promoção de um desenvolvimento justo e sustentável e na busca de novas formas de evangelizar aquela realidade. Preocupa-nos a persistência da fome e da exclusão social no Brasil. Em resposta às carências de tantas famílias e comunidades, a Igreja lançou em 2002 um Mutirão Nacional para a Superação da Miséria e da Fome, que tem como lema: “alimento – dom de Deus e direito de todos”. Esse Mutirão ou ação coletiva voltou-se sobretudo para as camadas mais pobres, do interior e das periferias urbanas, buscando organizá-los, construindo parcerias, combatendo o desperdício de alimentos na sociedade e fomentando uma nova mentalidade de partilha e comunhão. Através de uma parceria com um banco oficial, centenas de pequenos projetos puderam ser financiados no Nordeste do país. Em Minas Gerais, a Cáritas Brasileira gerencia um programa, em parceria com o governo do Estado e entidades da sociedade civil, o que viabilizou mais de 800 projectos de desenvolvimento local. Em São Paulo, o CEAT (Centro de Atendimento ao Trabalhador), administrado pelas quatro dioceses da metrópole paulista, faz a intermediação de trabalho para milhares de desempregados. Em outubro de 2006 opera com 10 unidades, onde oferece orientação e treinamento. A Pastoral da Criança, iniciada em Florestópolis, arquidiocese de Londrina, em 1982, e hoje está presente em 250 Dioceses do Brasil (de 268) e em outros países (como Angola), presta um serviço inestimável à saúde das mães gestantes e das crianças até seis anos de idade, sendo reconhecidamente uma das responsáveis pela redução da mortalidade infantil no Brasil. Conta com uma rede de 240.000 voluntárias, que cultivam uma forte motivação espiritual. É importante observar que a caridade cristã se traduz em muitas formas de solidariedade social, na qual colaboram pessoas e entidades de outras confissões religiosas ou mesmo sem vínculos religiosos. Traduz-se também na colaboração ecumênica, como tem sido as Campanhas da Fraternidade em 2000 e em 2005 e a ação da CESE (Coordenaria Ecumênica de Serviço), com sede em Salvador da Bahia, administrada pelas Igrejas do CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil), que financia projetos sociais, com a ajuda da cooperação internacional. A ação social da Igreja permite ainda o diálogo aberto com o mundo leigo e com a cultura moderna, mostrando uma prática solidária, voltada prioritariamente para atendimento das necessidades básicas, ambientalmente sustentável, em contraste com o consumismo, o desperdício, a concentração de riquezas, a degradação ambiental e o egoísmo erigido em sistema. Na linha ecuménica quero ainda mencionar um fruto da Campanha da Fraternidade de 2004, com o lema “Água fonte de vida”. Por iniciativa do CONIC, da CNBB e de Igrejas da Suíça (Católica e Igrejas Reformadas), foi assinada, em 22 de abril de 2005, uma “Declaração Ecumênica sobre a Água como um Direito Humano e Bem Público”, que enfatiza a necessidade de garantir o acesso à água potável a todos, especialmente às populações carentes e o compromisso das Igrejas signatárias de opor-se às pressões pela privatização e mercantilização dos serviços públicos de água e das fontes de água potável. No campo social, afirma o Papa, “para o progresso rumo a um mundo melhor, é necessária a voz comum dos cristãos, o seu empenho em «fazer triunfar o respeito pelos direitos e necessidades de todos, especialmente dos pobres, humilhados e desprotegidos»” (DCE, 30; Ut Unum Sint, n. 43). Outra frente em que se abrem grandes possibilidades de colaboração é a formação dos leigos, chamados a serem protagonistas no campo acção social. Antes de tudo, é preciso lembrar que “é missão dos leigos configurar rectamente a ordem social, respeitando sua legítima autonomia e cooperando, segundo a respectiva competência e sob própria responsabilidade, com os outros cidadãos.(…) A caridade deve animar a existência inteira dos fiéis leigos e, consequentemente, também sua actividade política vivida com «caridade social»”(DCE, 29). Urge capacitarmos sempre mais os leigos cristãos para o exercício de sua missão no campo social, político e cultural. Diversas Igrejas têm experiências nesse campo e podem colaborar com outras. De grande valia nesse campo é o uso dos modernos meios de comunicação, rádio, TV e internet, na transmissão de programas formativos e cursos à distância. No Brasil, criamos recentemente um novo curso nessa área, a “Centro Nacional de Fé e Política Dom Hélder Câmara”, em nível nacional, em apoio às 28 Escolas já existentes em nível local. O Centro oferece um curso em nível nacional, com parte das aulas dadas à distância, a outra parte sendo presencial. Uma universidade prepara e veicula as matérias, de forma didática, para os alunos das escolas locais, que podem interagir ao vivo com seus professores, por via eletrônica. Dentro do Projecto de Evangelização “Queremos ver Jesus – caminho, verdade e vida” (2003-2007), a CNBB elaborou uma série de Cadernos de Doutrina Social da Igreja, buscando traduzir o ensino social cristã para dentro da realidade do país. No combate à fome e à miséria no mundo, a Igreja se sente parceira dos Organismos das Nações Unidas e de outras entidades da cooperação internacional, actuantes em nossos países. Em diversas ocasiões, os papas dirigiram mensagens à FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), incentivando suas iniciativas e oferecendo apoio. Na cúpula do Milênio das Nações Unidas, realizada em setembro de 2000, os governantes de 191 nações-membros se comprometeram em um conjunto de objetivos e metas, voltadas ao combate à pobreza, às doenças (especialmente a AIDS/SIDA e a malária), ao analfabetismo, à degradação ambiental e à discriminação contra as mulheres, que ficaram conhecidos como os oito objectivos de desenvolvimento do miénio (ODM). O primeiro desses objetivos é “erradicar a extrema pobreza e a fome”; como meta desse objetivo, os estados se propuseram a diminuir pela metade os famintos no mundo, hoje estimados em 854 milhões. Sem a cooperação de todas as forças vivas da sociedade, e sem a colaboração das Igrejas, esse e os demais objectivos dificilmente serão alcançados. Dentro de alguns dias, a 16 de outubro, celebra-se o dia mundial da Alimentação, instituído pela FAO em 1980, e que no corrente ano tem como tema “Fortalecer a Agricultura para Garantir da Segurança Alimentar”. Tenhamos a coragem de nos perguntar: como podemos tornar mais efetiva a participação de nossas Igrejas na realização dos objetivos do milénio, e de tantas outras iniciativas a favor dos mais pobres e do bem comum? Bem sabemos que em nossos países há multidões famintas e sem pastor, das quais o Senhor teve compaixão (cf. Mc 6, 34). Tomemos como dada a nós a ordem de Jesus aos seus discípulos, que queriam despedir a multidão: “dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6, 37). Num mundo submetido à ideologia neoliberal, em que os mercados e a violência se globalizaram, outra globalização é necessária, possível e urgente: a globalização da solidariedade, uma solidariedade universal (Cf. João Paulo II, Sollicitudo rei socialis, 45), alimentada por uma nova “fantasia da caridade”, que busca não só a eficácia, mas a capacidade de pensar e ser solidário com quem sofre (cf. João Paulo II, Novo millenio ineunte, 50). Com a força da fé e do profetismo do Evangelho da caridade, sejamos arautos de uma nova sociedade, em que o egoísmo e a ganância dêem lugar à solidariedade e à partilha, onde não haja mais famintos e necessitados (cf. Atos 2, 45) e onde, finalmente “misericórdia e fidelidade se encontrarão, justiça e paz se abraçarão” (Sl 85,11). Card. Geraldo Majella Agnelo Arcebispo de São Salvador da Bahia Presidente da CNBB

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