Nova lei da imigração alvo de reparos

Parecer do Fórum de Organizações Católicas para a Imigração e Asilo O presente documento sintetiza as posições das organizações participantes do FORCIM face ao anteprojecto de Proposta de Lei que regula as condições de Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do território português, adiante designada como Anteprojecto da Lei da Imigração. Foram promovidas audições públicas em Lisboa, Porto, Évora e Beja. No quadro de uma intervenção consistente e prolongada junto de comunidades imigrantes, nomeadamente as de origem africana e as mais recentes, com origem nos países do Leste Europeu, na Índia, Na China e Brasil, assumimos uma especial responsabilidade perante os imigrantes e a sociedade, que nos tem forçado a uma intervenção de crítica a textos legislativos, motivados pelos princípios de solidariedade, igualdade, humanismo e partilha que nos guiam e pela força determinante da realidade social, que a nosso ver impõe e reclama soluções que o legislador tem persistentemente ignorado. Do muito que poderíamos referir do passado, quase tudo ficou já dito na lúcida Exposição de Motivos do Anteprojecto, pelo que nos escusamos de repetir críticas ao texto em vigor, as quais são hoje comummente aceites. Importa também não esquecer o impacto bilateral e recíproco que têm sempre as “leis de imigração” no relacionamento de cooperação entre Portugal e os outros Países, sobretudo, da CPLP., no que concerne projectos de formação e acções de voluntariado internacional. No entanto e antes de abordar em concreto as questões específicas colocadas pelo Anteprojecto, há dois temas de carácter genérico que nos parece necessário invocar. Objectivos da lei Em primeiro lugar, sobre os objectivos da lei. Pretende-se – tem sido sempre assim – regular com rigor as condições de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros. Nos textos legais que se foram sucedendo, encontramos detalhada previsão quanto à entrada, quanto à saída e quanto ao afastamento dos estrangeiros. Da permanência fala-se muito pouco, quase só de uns acertos burocráticos quanto à renovação de documentos. Trata-se, obviamente, de uma consequência da ligeireza com que o Estado português tem tratado a questão da integração gradual e plena dos imigrantes, assim como dos refugiados. Mesmo numa perspectiva estritamente jurídica, estamos muito longe da equiparação absoluta (à excepção, aliás mitigada, dos direitos políticos) constante do texto constitucional. Observamos esta ligeireza quotidianamente na nossa prática social e principalmente nas áreas do ensino, da saúde, da habitação e da segurança social, ou seja, naquelas que mais relevam para a integração social e plena dos imigrantes, estudantes estrangeiros e refugiados. Somos, por isso, particularmente sensíveis ao disposto no art. 83º do Anteprojecto, que enuncia os direitos (alguns direitos, observamos nós) que usufruem os titulares de autorização de residência: à educação, ao trabalho, à formação profissional e à saúde. Entendemos esta singela enumeração como um mea culpa referente ao passado. Assim os imigrantes a aceitem, com a convicção de que são, como os portugueses, cidadãos de parte inteira que, por isso, têm todos os direitos humanos que estejam em condições de exercer, desde o tão mediático direito à indignação, até aos mais plausíveis, cuja fruição e exercício estão regulados na Constituição da República. Mas principalmente é essencial que o Estado que agora os proclama, saiba, no dia a dia da actividade dos seus organismos e agentes, respeitar e fazer cumprir esses direitos (maxime na regulamentação da futura Lei) e que não deite pela janela o que agora proclama pela porta grande. Sociedade civil Segundo tema, ao qual concedemos uma importância fulcral. Quase tudo o que trata da admissão e da integração dos imigrantes na sociedade portuguesa tem sido obra de Organizações Não Governamentais (ONG) e de Associações de imigrantes, daquilo que, na vulgata social, hoje se designa como sociedade civil. Ora, se é verdade que o Estado tem reconhecido muito limitadamente a participação das ONG – veja-se o exemplo do COCAI e as parcerias estabelecidas recentemente pelo SEF com a OIM e o JRS – é também verdade que deste Anteprojecto, tal como da lei em vigor, elas estão completamente ausentes. Mantém-se a intervenção de inúmeros organismos do Estado – o SEF, o MAI, o IEFP, os Consulados, o Conselho Económico e Social, a PSP, a GNR, etc. – mas nem um palco sequer para estas estruturas intermédias de integração e de grande proximidade com as pessoas reais que são as ONG. O tímido ensaio verificado em 2000, com a intervenção prevista no Dec. Regulamentar n.º 5-A/2000, de 26 de Abril, que previa a possibilidade de um Sindicato ou uma Associação com assento no COCAI confirmar uma declaração do interessado que substituísse o contrato de trabalho, já é só história. E, no entanto, como sabemos da nossa experiência directa, quantas situações, nomeadamente as mais extremas, as mais à margem da burocracia e dos papéis, necessitam de intervenção, reconhecimento e tutela do Estado! Principalmente no conhecimento e denúncia do tráfico de seres humanos, na denúncia e resolução de questões relacionadas com o trabalho clandestino, no amparo e protecção dos sem abrigo e de imigrantes desempregados e indocumentados, o papel destas organizações é único e insubstituível. Tendo o Estado recorrido muito a elas, bom seria que o reconhecesse. E, mesmo nesta lei, não faltariam áreas em que a actividade das ONG poderia assumir papel de relevo – logo no “casamento” de ofertas de emprego permanente ou sazonal, por parte dos empregadores e procura de emprego por candidatos à imigração. Ou na protecção de trabalhadores, alvo das mais injustiças laborais ou de exploração laboral. Ou na protecção de menores, sempre que se encontrem em situações irregulares. Ou na protecção de mulheres vítimas de tráfico, confirmando a condição de vítima e não apenas a de denunciante continuando a deixar a pessoa que colabora com a justiça em grande vulnerabilidade e perigo de vida. Questões Concretas Passadas estas primeiras ideias, vejamos algumas questões concretas: – Declaração de entrada (art. 14º) – é um mecanismo de controlo que nunca provou, em cuja eficácia o próprio Estado nunca se empenhou e que é uma mera fonte de conflito com o imigrante. Deveria ser eliminado. – Impugnação judicial da decisão de recusa de entrada (art. 39º) – o efeito meramente devolutivo deveria ser restrito aos casos de recusa que não sejam consequência de uma decisão discricionária; nos restantes casos a impugnação judicial deveria ter efeito suspensivo. – Assistência jurídica (art. 40º) – sempre que não se verifique o reembarque do estrangeiro não admitido no prazo de 48 horas e o caso seja enviado a uma instância judicial (art. 38º), deve ser garantida a aplicação das medidas de protecção jurídica previstas para os cidadãos portugueses, uma vez que é óbvio que o estrangeiro não terá capacidade para lidar com o sistema judicial português. – Visto de residência para o exercício de actividade profissional subordinada (art. 59º) – este preceito é completamente absurdo e coloca em crise a seriedade subjacente a este Anteprojecto. Tudo o que se diz na Exposição de Motivos sobre o regime actualmente em vigor, que se pretende substituir, pode ser repetido com referência às propostas deste artigo: “tem-se revelado pouco adequado à realidade social… estabelece mecanismos de admissão de estrangeiros que por não serem adequados à realidade migratória contemporânea, são fonte constante de ilegalidade…. é extremamente burocrático na medida em que pressupõe a intervenção de quatro entidades (IEFP, IGT, SEF, Consulado). Se, como ali se reconhece, a desadequação do regime legal “traduziu-se no crescimento do número de trabalhadores estrangeiros em situação ilegal”, não há nenhum motivo para crer que este crescimento não se prolongará. Não só o que está – e é mau – se mantém, como a “novidade” introduzida no Anteprojecto obrigaria a que o IEFP pudesse manter uma base de dados actualizada de todas as ofertas de emprego que não fossem preenchidas por nacionais portugueses e equiparados, que as divulgasse por todos os Consulados, que estes estivessem verdadeiramente disseminados pelo Mundo, que promovessem a articulação das manifestações de interesse de entidades patronais em candidatos a imigrantes e que àquelas se apresentassem as candidaturas enviados pelos consulados. E, aparentemente, seriam as entidades empregadoras a, finalmente, receber e decidir dos requerimentos de vistos! O sistema é tão abstruso quanto injustificável. Nem o IEFP controla – felizmente – o nosso mercado de trabalho, nem as entidades empregadoras têm mecanismos para activar o funcionamento deste modelo. A não ser aquelas que, na hora, se preparem para, aproveitando a letra da lei, desencadear uma nova vaga de tráfico de seres humanos que, chegados a Portugal serão abandonados à sua sorte. Finalmente, não se entende a preferência concedida a quem fala português ou tem familiar em Portugal. Se para estes casos já existe o instituto do reagrupamento familiar, não se entende o racional subjacente à preferência linguística. Como é que funciona a preferência? Escolhe-se perante duas candidaturas, uma apresentada em Kiev e outra em S. Luís do Maranhão? E são os cônsules que se telefonam uns aos outros, a saber se podem emitir o visto, ou se há alguma situação de “preferência”? E quem faz o exame de português? O cônsul? Esta “novidade”, para além de ser uma discriminação injustificada – ou só justificável por um despropositado “remorso” do colonizador – representa uma renúncia do Estado em regular verdadeiramente a imigração, abdicando em nome de uma incompreensível solidariedade do seu direito de escolher e de intervir neste sector do mercado de trabalho. Aliás, a questão da aprendizagem da língua portuguesa está muito bem tratada no art. 80º, quando se define como exigência para a concessão de autorização de residência permanente Assim, é nosso entendimento que nesta questão do visto de entrada, a solução proposta do visto de residência é louvável, mas só tem sentido se se garantir o direito de todo o estrangeiro procurar trabalho em Portugal. Onde se pode aplicar a política de imigração que o Governo definir tem de ser no momento de concessão da autorização de residência, documento que representa a recepção de um novo imigrante. – Reagrupamento familiar (art. 98º) – O novo regime do reagrupamento familiar é muito mais adequado às realidades e merece aplauso. É, no entanto, essencial reduzir o prazo para a sua concessão a três meses. E, ainda, tratar de forma mais tolerante o reagrupamento com filhos maiores de 18 anos que ainda se encontrem na dependência económica dos pais e a prosseguir estudos. – Impugnação judicial – Tanto no caso de denegação ou cancelamento de autorização de residência, como no indeferimento do pedido de reagrupamento familiar, o regime de impugnação da decisão administrativa, através do recurso aos tribunais, não prevê a suspensão da decisão impugnada enquanto não houver decisão final do tribunal. Ora, a regra deveria ser o efeito suspensivo da impugnação judicial, pelo menos nos casos em que o imigrante ou a respectiva família se encontrem em Portugal e não a decisão administrativa não decorra da prática ou suspeita da prática de crimes. Afastado o imigrante ou a família do território nacional, haverá alguma possibilidade de uma impugnação judicial aceite ter algum resultado útil, para quem regressou ao seu país? Aliás, há uma discriminação sem qualquer sentido relativamente aos titulares de estatuto de residente de longa duração, cujas impugnações judiciais têm, por regra, o efeito suspensivo. – Afastamento do território nacional (art.134º) – Pensamos que o Anteprojecto poderia ter ido mais longe nesta matéria, de forma a aumentar as garantias dos imigrantes, nomeadamente, naquilo que se refere ao processo administrativo de expulsão, nomeadamente de forma a atenuar a natureza excessivamente securitária que atravessa muitas destas disposições. Garantia de apoio jurídico, direito de audição nos termos gerais do procedimento administrativo e suspensão da execução das decisões sempre que haja impugnação judicial das decisões, são alguns dos pontos que poderiam ser incluídos no texto legal com muita vantagem. Por fim, apesar de termos identificado com agrado no Anteprojecto de Lei, alguns possíveis mecanismos de regularização de certas situações de imigrantes, preocupa-nos a condição dos cidadãos que, desde Março de 2003, se encontram no país, em processo de integração social, laboral e linguística, e que com a lei em vigor permanecerem excluídos do acesso à regularização mediante critérios transparentes e requisitos humanistas próximos da realidade. Ousamos evocar esta categoria de pessoas que conhecemos porque temos grandes dúvidas sobre o argumento ainda muito usado pelos políticos e legisladores acerca do “efeito de chamada” a respeito do anúncio de regularizações pois, em Portugal, até agora a ligação consequente entre ambas não se apresentou significativa, não justificando o recurso a um argumento que reforça a visão securitária. Lisboa, 30 de Junho de 2006 Organizações que subscrevem este parecer para a Audição Pública: Associação “O Ninho”; Caritas Portuguesa; Coordenação Nacional dos Imigrantes Ucranianos; Capelania dos Imigrantes Africanos; Centro Padre Alves Correia; Comissão Episcopal da Mobilidade Humana; Comissão Nacional Justiça e Paz; Comissão Justiça e Paz da Conferência dos Religiosos Portugueses; Fundação Ajuda à Igreja que Sofre; Fundação Evangelização e Culturas; Liga Operária Católica – Movimento de Trabalhadores Cristãos; Missionários de S. Carlos/Scalabrinianos; Obra Católica Portuguesa de Migrações; Rede Hispano-Lusa das Mulheres Vítimas de Tráfico; Secretariado da Pastoral de Migrações do Porto; Secretariado da Pastoral de Mobilidade Humana de Beja; Serviço Jesuíta aos Refugiados.

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