Mensagem do Presidente da Comissão Episcopal da Mobilidade Humana – Quaresma de 2010

Justiça de Deus e justiça dos homens

 

1. Quaresma e revisão da vida

Na qualidade de Presidente da Comissão Episcopal da Mobilidade Humana da Conferência Episcopal Portuguesa dirijo-me a todos os colaboradores na pastoral da mobilidade humana e muito especialmente aos emigrantes de língua portuguesa espalhados pelo mundo, para os saudar e desejar um tempo de Quaresma muito proveitoso, na descoberta do verdadeiro sentido da vida e no fortalecimento das relações humanas, sobretudo para com os nossos familiares e muito especialmente para com todos os que sofrem.

Todos os anos a Igreja convida os seus membros a fazer a revisão da vida a partir de Jesus Cristo, tendo em conta o seu testemunho e os seus ensinamentos evangélicos. Isto constitui uma tarefa diária, mas, com maior intensidade, nos quarenta dias que antecedem a festa principal da Igreja, a Páscoa, tempo esse denominado de Quaresma. Tornou-se habitual o Papa e os bispos escreverem uma mensagem, exortando os fiéis ao seguimento coerente de Jesus, lembrando-nos do que Ele disse aos seus apóstolos: quem quiser ser meu discípulo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me (Mt 16, 24). Estas palavras, várias vezes repetidas, têm uma força especial ditas no contexto da confissão de Pedro na Cesareia e da transfiguração no Monte Tabor. A partir daí Jesus põe-se a caminho de Jerusalém, onde seria preso e condenado à morte de cruz, num processo sumário e demagógico.

A recordação e celebração litúrgica destes passos de Jesus levanta várias questões, para as quais nem sempre encontramos respostas satisfatórias. O sofrimento e a morte violenta de um inocente faz despontar em nós uma série de porquês, a muitos dos quais só a resposta do amor sem limites da parte de Jesus são a única saída com futuro para a humanidade, enquanto o ódio, a inveja e o pecado da parte dos que pediram e provocaram a sua condenação e morte aumentam os enigmas e a injustiça.

Mas a Quaresma não se reduz a uma meditação sobre uma figura importante do passado, pois, a partir do que aconteceu com Jesus Cristo, descobrimos o nosso presente e a nossa participação nessa história. Afinal, tudo isso é espelho da humanidade no seu relacionamento com o Criador e com as criaturas. Em breves palavras podemos dizer que o nosso pecado, o nosso egoísmo, o nosso apego aos bens materiais, a nossa ambição de poder e de prazer, e também a nossa condição de fragilidade, continuam a ser a causa, directa ou indirectamente, de muito sofrimento. Mas na atitude de Jesus também percebemos que não estamos votados ao fracasso, porque o seu amor é mais forte que a morte. Por isso Ele pôde exclamar e gritar: Pai, não se faça a minha vontade, mas a tua…, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem…, nas tuas mãos entrego o meu espírito…

Perante muitos males, para os quais ainda não encontramos soluções ou explicações satisfatórias, recordemos o sismo recente no Haiti, que vitimou centenas de milhares de pessoas ou deixou muitas em grandes sofrimentos e penúrias. Como reagimos, que atitudes assumimos? A do desespero ou a da esperança, a da fé ou da negação de qualquer sentido, a da paralisia asfixiante ou a da ajuda solidária?

Estes e outros problemas põem a nossa fé à prova. Felizmente, muitos procuram socorrer aqueles que sofrem, não os deixando sozinhos, entregues a si mesmos, sem a companhia de quem chore com eles, clame por soluções e as procure. A humanidade parece despertar do sono, da ilusão de um progresso sem limites e sem vítimas. Aumenta o número daqueles que se aproximam das vítimas, para sentir o seu sofrimento e procurar lenitivos. O lado bom, solidário, compassivo do ser humano parece ganhar força, deixando de apontar para os outros como os culpados de todos os males e procurando eliminar do próprio coração muitas das causas do afastamento, da discórdia e das injustiças. Numa palavra, a mudança da mentalidade egoísta, do rumo egocêntrico, do individualismo e relativismo subjectivista começa a dar lugar ao encontro com os outros, sobretudo com os mais carenciados de pão, de amor e de paz. É o processo de conversão, para a qual a Quaresma constitui uma forte interpelação. É o tempo favorável para descobrir o sentido da vida e pôr-se a caminho.

 

2. Práticas tradicionais da Quaresma

Tradicionalmente e desde os tempos evangélicos, a Igreja recomenda durante a Quaresma a intensificação de três práticas significativas da seriedade do processo de conversão: a oração, o jejum e a esmola. Esta trilogia, assumida livremente por amor a Cristo e aos irmãos mais carenciados, mantém o seu valor em ordem à nossa configuração a Cristo e ao nosso empenho solidário com todos os que sofrem. Sentindo na nossa pele o sofrimento de Cristo e dos injustiçados deste mundo, crescemos na nossa identidade humana e cristã. Podemos dizer, pois, que estas práticas quaresmais nos ajudam a preparar-nos também para a nossa Páscoa, a nossa passagem duma vida efémera, centrada em nós mesmos, para a plenitude da vida na caridade.

Na mensagem para este ano, o Papa acentua a prática da justiça no seu sentido pleno, não apenas como distribuição mais fraterna e igual dos bens, dando a cada um o que lhe pertence, mas também como acolhimento e partilha do amor de Deus. Só o amor, a caridade derramada por Deus no nosso coração, nos torna e faz verdadeiramente justos e constrói a justiça nas nossas relações. Sem a caridade, recebida e partilhada, a conversão não é real e tão pouco construtora da justiça, que dá aos outros o amor a que têm direito, para além dos bens materiais. Se a nossa justiça não ultrapassar a dos fariseus, não somos dignos do Reino de Jesus Cristo.

A estas três práticas tradicionais acrescento a atitude de escuta e o silêncio, que fazem parte da oração autêntica, por muitos entendida apenas como vocal, de petição, e menos de admiração e contemplação do mistério de Deus e da vida. Vivemos num tempo de barulho, de palavreado, de demagogia, de processos infindáveis, em que os sofismas das palavras procuram escamotear e ocultar os factos, criando realidades virtuais contra as vítimas reais. Precisamos de escutar os outros, sobretudo as vítimas, os que sofrem, as crianças e mães maltratadas, os pais de família desempregados, as vítimas do tráfico laboral, sexual e de órgãos. A oração da Igreja ajuda-nos a cultivar estas atitudes de escuta, sensibilidade e compaixão com aqueles que continuam no presente a Paixão de Jesus, mas a quem falta a capacidade de oferta e doação manifestadas por Cristo. Precisam de Cireneus que os ajudam a levar a cruz. Nesta companhia solidária contribuimos para realizar a justiça na sua plenitude.

No recente encontro dos delegados europeus da pastoral das migrações de língua portuguesa falou-se dos novos emigrantes, tendo em conta a crise económica que assola o mundo e que lança muita gente no desemprego, entre nós a aumentar, dia após dia. Só não cresce mais, porque muitos optam pela emigração, hoje mais facilitada dentro do espaço Schengen, mas também menos segura, devido à crise, ao medo, à xenofobia, ao terrorismo. Precisamos de reforçar as nossas qualidades de povo hospitaleiro, solidário, ajudando estes novos emigrantes e suas famílias.

 

3. Partilha fraterna e renúncia quaresmal

Desde há alguns anos que as comunidades cristãs orientam a partilha do tempo da Quaresma, fruto das suas renúncias ao longo dos quarenta dias, para alguma necessidade mais grave e premente, e assim crescer na capacidade de amar ao modo de Jesus Cristo.

Em Portugal, muitas dioceses destinam a renúncia quaresmal deste ano à ajuda das vítimas do sismo de Haiti, que matou mais de duzentas mil pessoas e lançou milhões na miséria e no sofrimento. Por isso apelo a todos os emigrantes para ajudar as vítimas deste sismo, tentando amenizar o seu sofrimento com o fruto da nossa partilha e sobretudo com a certeza de que não os esquecemos e abandonamos à sua falta de sorte. Se a diocese ou a missão onde vivem e trabalham optar por outro destino da renúncia quaresmal, participem nessa campanha de solidariedade, conscientes de que chegaremos à Páscoa mais ricos na capacidade de amar, tentando lutar contra as injustiças e as catástrofes deste mundo.

Nesta Quaresma a Igreja portuguesa vai preparar-se para acolher o sucessor de S. Pedro, o Papa Bento XVI, que vai visitar o nosso país de 11 a 14 de Maio. Será uma motivação a mais para orientarmos a vida no sentido do Evangelho e de Jesus Cristo, de que a Igreja dá testemunho. Para todos uma Quaresma com hábitos de vida mais austeros, solidários, atentos à Palavra de Deus, ao testemunho de vida de Jesus Cristo e aos que sofrem na pele as injustiças e as crises do presente.

† António Vitalino, Bispo de Beja, Presidente da Comissão Episcopal da Mobilidade Humana da CEP

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top