Memória do Concílio

Não senti o chamamento do Episcopado como resultado de uma carreira onde iria ter, e foi com surpresa que recebi a convocatória do Papa Paulo VI, por meio da Nunciatura Apostólica, em Lisboa, no mês de Setembro de 1965: “O Santo Padre designou-o Bispo de Faro. Responda no prazo de três dias, ou pode mandar a resposta pelo portador”. Fiquei siderado e também um pouco baralhado. Logo a seguir recebi outra carta: que fosse imediatamente para o Concílio, para a última Sessão. Fui. Aí senti, juntamente com as humanidades dos bispos, o mistério da Igreja, a presença do Espírito de Deus e ia-me dando conta do que estava a acontecer. Naquele contexto achei que um bispo devia ser ou tentar ser sensível, eficaz e flexível. E chegar ao volume das grandes coisas com a humildade dos pequenos passos. O Concílio marcou-me profundamente. A convivência com o Papa, os outros bispos e o Espírito Santo, nas sessões diárias daqueles últimos meses, a densidade e uma pressa de aprovar constituições, decretos e declarações fizeram-me participar nos votos e aprovações da maior parte dos documentos conciliares: – “Dei Verbum” em 18.11.1965; “Gaudium et Spes” em 07.12.1965; “Christus Dominus”, em 27.10.1965; “Presbiterorum Ordinis” em 07.12.1965; “Perfectae Caritatis”, em 28.10.1965; “Optatam Lotius”, em 28.10.1965; “Apostolicam Actuoritatam”, em 18.11.1965; “Ad Gentes”, em 01.12.1965; “Dignitatis Humanae”, em 07.12.1965; “Gravissimum Educationis”, em 28.10.1965; “Nostra Aetate”, em 28.10.1965. Certamente que o Espírito Santo não estava à espera de mim para aprovação da maior parte dos documentos conciliares. O caso é que, indo só no fim, na última hora, votei quase todos, evangelicamente, como os que tinham ido na primeira hora. Lembro-me dos momentos e até de algumas circunstâncias. E do encerramento, ao ar livre, na Praça de S. Pedro, das mensagens ao mundo, da pressa dos bispos para ocupar os primeiros lugares, que já não era tanta. Também a nós o Espírito Santo converte. E foi o regresso no dia 9 de Dezembro. Logo a seguir a ordenação episcopal no dia 26 de Dezembro, no estádio municipal de Ílhavo. Depois, o Algarve. Lá servi sete anos. Ainda hoje gosto de lá passar. Depois Lisboa, cinco anos, porque Deus quis. Depois Viana, a bela Viana da Foz do Lima, diocese nova, tudo por fazer e fez-se muita coisa em quatro anos. Depois vim ter ao Porto, uma espécie de regresso às origens. Com certo receio, com humildade, com a calma de quem se apaga, mas enquanto tem vida é para servir até ao fim. E tudo, porque os anos da minha vida, foram como se fossem os últimos, como se fossem para toda a vida. Tudo, na raiz, porque Deus me chamou pelo nome, me viu debaixo da figueira, em certo dia, em certa hora, como acontece a toda a gente que se disponha. As viagens são diferentes em todos, cada um tem as suas missões, as suas diversidades, as suas alternativas. Cada um é diferente. A vida é para cada um de nós um segredo, é um mistério. O Concílio foi para mim uma riqueza de dons gratuitos e também é um mistério. Podia contar muitas coisas mas é melhor ficarem guardadas na alma, embora se possam revelar. Para mim, foi um deslumbramento, foi uma superabundância que espero dure até ao fim da minha vida terrena. E para além, em novos céus e nova terra do mundo que há-de vir. Agora vivemos na fé e na esperança, depois viveremos na caridade, na luz de Deus, olhos nos olhos e tudo será revelado. Para mim e certamente para todos valeu a pena. Foi verdadeiramente um agiornamento, um pôr em dia e actualizar a Igreja de Jesus Cristo que respondeu à pergunta fundamental: – Igreja, quem és tu?… É claro que não vivemos, agora, em estado de perfeição, mas queremos alcançá-lo. Tantas coisas que aconteceram, desde então, tantas que não aconteceriam, sabemos lá? É preciso neste tempo pôr em dia a face mistérica da Igreja e viver confiados na infinita bondade de Deus que é nosso Pai e quer a nossa felicidade já neste mundo. É claro que o Concílio teve conse-quências mais ou menos imediatas, mais ou menos a longo e a médio prazo. Estamos em tempo de Concílio e continuaremos a estar por muito tempo. Seja qual for a opinião que tenhamos sobre ele, o longo arco da sua influência continua a exercer-se sobre a Igreja, sobre o Mundo e, mais concretamente, sobre as comunidades cristãs. Talvez o quiséssemos mais rápido nos seus efeitos, com mais visibilidade, mas é preciso ter em conta as leis do possível, e com uma sociedade de componentes humanas, contando sempre com a intervenção do Espírito Santo, contar com as limitações que são devidas à sua natureza, para não ter que suportar os exageros e as precipitações que deles podem advir. Como esporadicamente pode ter acontecido. Mas é positiva toda a “revolução” conciliar. E quando se repara, retrospectivamente, na movimentação conciliar, enche-nos a sensação de um certo conforto, a alegria, apesar de tudo, de uma grande esperança que nos vem do panorama “cosmicamente” eclesial, do Concílio do Vaticano II. Valeu a pena. E bendita a Santa Igreja Católica que nos gerou o Papa João XXIII e outros semelhantes, que tornaram possível a grande reforma conciliar para o século XX, XXI e outros. Ainda uma peripécia do Concílio, uma circunstância. Nessa altura, celebravam-se, salvo erro, os quinhentos anos do Dante. O Município de Florença convidou os Bispos, pondo-lhe autocarros à ordem, pagando as viagens aos Bispos. Foi generoso na celebração do Dante e estiveram presentes umas largas centenas de bispos, em Florença. Na viagem dos autocarros iam latinos e ortodoxos (gregos). E ia o Senhor Bispo de Portalegre e Castelo Branco, a esse tempo, D. Agostinho de Moura. Falava, como de costume, muito e alto. Sabia muito de História e meteu a contar a história dos Papas. Tudo bem. Acompanhavam-nos universitários da Universidade de Florença. Ia na contagem dos Papas Pios, precisamente no segundo. Eis senão quando, um dos bispos gregos, ortodoxos, fartou-se do barulho da contagem e desata: Irra!… diz o grego. Eles são doze e você ainda vai no segundo!… Uma gargalhada geral no autocarro. Bispos, alunos universitários. Aprendemos muito nas conversas particulares. Havia um bispo australiano, muito alto, logo lhe puseram o nome de “altíssimo”. Uma vez dei com ele a tirar uma prova para uma batina, mas, como era muito alto, as freiras andavam com um escadote para lhe chegar à altura!!! Havia, na aula conciliar dois “bares” para os bispos se poderem servir, não de bebidas alcoólicas. Um chamava-se “Bar Jonas”, outro “Banalas”, etc. etc. Os bispos também se riam e é bom. Muito teria a dizer, mas fico-me por aqui!… D. Júlio Tavares Rebimbas Arcebispo Bispo do Porto

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