Maternidade, grandeza e responsabilidade da mulher

Terceiro texto do Cardeal-Patriarca de Lisboa, a respeito do Referendo sobre o Aborto 1. Este período de esclarecimento das consciências em ordem à resposta a dar à pergunta que vai ser sujeita a referendo, sobre o alargamento legal do aborto voluntário, coincidiu com a Festa do Natal, nascimento de Jesus, Filho de Deus e da Virgem Maria. Maria, Mãe de Jesus, a “bendita entre todas as mulheres, porque é bendito o fruto do seu ventre”, convida-nos a meditar na grandeza da maternidade. O carácter misterioso do nascimento de Jesus, não retira a Maria a sua qualidade de Mulher-Mãe, em cujo ventre foi gerado e se desenvolveu o Homem Jesus de Nazaré. A mais sublime acção de Deus nas criaturas aconteceu no seio de Maria. Mas essa marca da acção de Deus nas criaturas, continua a acontecer sempre que uma mulher concebe e fica grávida, acolhendo no seu seio a mais maravilhosa obra da criação: o homem, outro homem, que prolonga o mistério da primeira criação. Cada mulher que concebe acolhe no seu seio o maravilhoso fruto do poder criador de Deus. O facto da procriação humana se processar segundo dinamismos e leis precisos da natureza, hoje bastante conhecidos pela ciência, nada retira ao mistério da intervenção criadora de Deus, essa capacidade maravilhosa de comunicar a vida. Na maternidade, toda a mulher se auto-transcende, e toca a grandeza e a dignidade do mistério que está nela. Como em Maria, em toda a mulher a maternidade é uma missão, que não se exprime apenas na sua vontade, mas está profundamente impressa na sua natureza e no seu ser. 2. Tudo isto é simples e belo quando a maternidade é aceite e desejada, no seio da família radicada no amor. A maternidade é, então, um projecto de ambos os cônjuges, que se tornam pais, e pode elevá-los ao nível da contemplação e da beleza. Aliás, o sentido da paternidade só se encontra na maternidade, pois é no seio da mulher que a fecundidade do casal se exprime e desabrocha num horizonte mais vasto da fecundidade do seu amor. O marido-pai é o primeiro a contemplar, com enlevo, o mistério da vida. A mulher-mãe é a fonte do sentido da própria paternidade. E ambos se encontrarão, num único amor, ao acolher e ajudar a crescer, o filho que geraram, participando, assim, no poder criador de Deus. Mas na realidade da vida, a maternidade é também fonte de exigência e de sofrimento, ocasião de queda e de fraqueza, desafio de coragem e generosidade. É desafio contínuo ao sacrifício e ao dom, e por isso ela é, para a mulher, caminho de amor. A missão de ser mãe é cenário de grandeza e de heroísmo, mas também de fraqueza e de pecado. E em todas as circunstâncias a fraqueza da mãe assume uma dramaticidade especial, porque está em causa a vida de uma criança. Em todo o percurso dessa missão, a mãe precisa de ser ajudada, pela família, pelos amigos, pela Igreja, pela sociedade. E ajudar a mãe significa sempre salvar a criança. Quando a mãe se torna incapaz ou se recusa a fazê-lo, a sociedade deve substituí-la nessa obrigação de salvar as crianças. Sempre assim foi, de diversas formas; é importante que assim continue a ser. 3. A dificuldade de uma maternidade não desejada pode ser a primeira dificuldade a ser ultrapassada pela mulher-mãe. As motivações do aborto não estão cientificamente estudadas. Elas vão desde a atitude egoísta de quem não está disposto a abraçar as dificuldades de criar um filho, ao medo dessas dificuldades, à pressão exercida, tantas vezes pelo pai da criança e pelo ambiente que rodeia a mulher. Para as mulheres que sentem essas dificuldades, o início da maternidade é momento de opção séria, de coragem e confiança, ou de desistência e de derrota, que tantas vezes atinge toda a sua vida futura. Nesse momento, a mulher precisa de ser ajudada, objectivamente ajudada, para que faça a opção da coragem e do respeito pela vida que se gerou no seu ventre. Esta coragem do início é, tantas vezes, largamente compensada, em amor e alegria. Pensar que se ajuda a mulher, nessas circunstâncias, facilitando-lhe o aborto, é grave erro de perspectiva, pois facilita-se-lhe a derrota, não a ajudando à vitória sobre a fraqueza sentida. Uma lei facilitante torna-se numa tentação acrescida para uma mulher a sentir dificuldades em assumir a sua maternidade. Uma senhora escrevia-me há dias: “eu sei que matei um filho; mas nessa altura ninguém me ajudou”. Se queremos ajudar, não facilitemos a derrota, a mais triste na vida de uma mulher. 4. A exigência da maternidade faz parte da construção cultural do respeito pela mulher, pela sua dignidade e grandeza da sua generosidade. E é preciso reconhecer que a mulher se sentiu muitas vezes sozinha nesta luta pela sua dignidade. Neste aspecto houve grandes mudanças antropológicas e culturais nos últimos dois séculos. Recordo um estudo sobre a mulher francesa no séc. XVIII: casava cedo (15-16 anos), a esperança de vida era de 34 anos. Durante os cerca de 20 anos que durava o seu casamento, tinha, em média, 16 gravidezes, de que sobreviviam 4 filhos. A maternidade sofrida definia a vida da mulher. Tanta coisa mudou: a mulher conquistou uma outra inserção na sociedade, tem o mesmo direito à educação e ao trabalho, o planeamento familiar permite-lhe maior decisão sobre a sua maternidade. Esta deixou de ser a única dimensão a definir o ser mulher. Mas com isto também se acentuou a dimensão de projecto individual, onde o filho, se não foi desejado e decidido, pode aparecer como obstáculo. Este é o novo quadro cultural em que é preciso situar a ajuda à mulher. Com toda a evolução do seu estatuto cultural e social, ajudá-la a não perder de vista que a sua vocação maternal é o centro da construção da sua dignidade. E isto é, também, um projecto de sociedade, porque o é de educação colectiva, que inclui a vivência responsável da sexualidade, a protecção da família, o esclarecimento para o exercício de um planeamento da fecundidade ao nível da dignidade do amor e da pessoa humana. Que ninguém se iluda: facilitar o aborto não é o caminho para construir uma cultura de respeito pela dignidade da mulher. Dizer “não” ao aborto é dizer “sim” à dignidade da mulher, pois é ela, mais uma vez, que carrega a tristeza de ser “culpada” e “vítima”. Lisboa, 21 de Janeiro de 2007 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top