Entrevista a Fátima Almeida, copresidente do Movimento Mundial de Trabalhadores Cristãos
Portuguesa que está à frente do Movimento Mundial de Trabalhadores Cristãos diz que os sindicatos são fundamentais à sociedade, mas não podem ser “corporativistas”. Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, Fátima Almeida diz que foi o “consumismo desenfreado” que criou o hábito de ter tudo aberto ao domingo, e que não respeitar o feriado do 1º de Maio é “um pecado de bradar aos céus”.
Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença), Octávio Carmo (Ecclesia)
Fotos: Joana Bougard (Renascença)
Está há dois anos na liderança do Movimento Mundial de Trabalhadores Cristãos (MMTC). Como é que tem sido esta experiência?
É uma experiência muito rica, porque somos uma equipa, representada pelos vários continentes, pela África, pela América, pela Europa, com características muito diferentes uns dos outros, mas principalmente com experiências de vida, de alegrias, esperanças e de angústias diferentes também umas das outras. É uma riqueza, que só quem a vive é que pode experimentar. Falar dela é diferente de experimentar.
Antes desta missão no MMTC teve experiência na Liga Operária Católica (LOC), cá em Portugal. Surpreendeu-a a realidade que encontrou ao nível da realidade laboral no resto do mundo?
Sim. Eu sou militante da LOC, como fui da JOC, no tempo da minha juventude, e estive na coordenação da LOC entre 2007 e 2013, o que também me abriu horizontes. Estar na coordenação da LOC já me deu oportunidade de conhecer o movimento internacional, mundial e europeu, mas hoje é diferente, porque hoje é um estar constante, inserido nestas realidades, e o estar preocupada. Enquanto naquela altura a minha preocupação era com o movimento em Portugal, hoje a minha preocupação é o movimento mundial.
Os problemas laborais diferem muito de país para país?
Diferem, porque a Europa e a América têm umas realidades de reconhecimento do trabalho e com direitos laborais adquiridos. É verdade que os direitos que foram conquistados tiveram muita luta, muita persistência, muito diálogo social, mas conseguiu-se, e há um regime de leis laborais para nós que é muito diferente daquilo que conhecemos em países africanos ou asiáticos, que de leis laborais nem conhecem nem têm. A economia informal, ou paralela, como aqui chamamos, é o constante do dia a dia em muitos países da Ásia ou de África, e isso limita. Há uma diferença enorme nas condições de trabalho entre uns e outros.
E isso influencia muito as preocupações do MMTC? Falar de precariedade e baixos salários é uma coisa na Europa, provavelmente no resto do mundo estamos a falar de exploração laboral…
Sim, sim. Embora já haja um avanço, porque se a globalização trouxe graves problemas, que hoje estamos a viver, trouxe também alguns benefícios, e um desses benefícios foi este, das pessoas que não tinham esta consciência ficarem a saber que há países onde as condições do trabalho são diferentes. A informação hoje circula muito mais, e a solidariedade também se torna mais possível. Portanto, acho que há uma evolução, pequena, mas há, de sensibilidade para as realidades. Hoje, na Europa, há muitos cidadãos, e os próprios movimentos operários cristãos têm este objetivo, de perceber de onde é que vem aquilo que compramos, se é executado através de salário justo, de trabalho digno para quem o executa. Esta preocupação não acontece por acaso, acontece com a disponibilidade de informação que a globalização nos trouxe.
De qualquer modo há ainda muitos direitos sociais e laborais que não são respeitados de igual modo em todo o mundo. A Organização Mundial de Trabalho está a comemorar 100 anos, como é que se explica que um século depois muitos países ainda não tenham ratificado as normas da OIT?
Há muitos países que ratificaram muitas das normas e das convenções da OIT…
A questão é aplicá-las?
É aplicá-las, cumpri-las. E nas últimas décadas assistiu-se a um retrocesso no reconhecimento do trabalho digno, ou do trabalho com direitos, que me angustia um pouco, não imaginava que pudéssemos chegar a este ponto. Lembro-me que na década de 80, 90, quando começaram a aparecer as novas tecnologias e a entrada da digitalização no mundo do trabalho, nas conferências e formações diziam-nos que iríamos ter mais tempo para o lazer, mais tempo para a formação, mais tempo para aprender, para estar com a família. As novas tecnologias iriam trazer-nos muita disponibilidade de tempo, o trabalho não seria tão duro, nem com horários tão rigorosos. O que é que aconteceu? Inverteu-se a situação. Hoje há muito mais riqueza, as novas tecnologias trouxeram mais riqueza, concentrada apenas em grandes multinacionais, mas trouxeram também o contraponto, que é uma grande taxa de desemprego, um descarte de milhões de trabalhadores e um aumento de carga horária e da rotatividade para aqueles que ainda estão integrados no trabalho. É qualquer coisa que nos preocupa. As tecnologias, afinal – porque o interesse do sistema capitalista também não permite que seja diferente -, não conseguiram dar-nos a qualidade de vida a que penso que todos temos direito, e que a própria Doutrina Social da Igreja aponta totalmente para esse fim, quando diz que a pessoa tem que ser o centro do trabalho e do desenvolvimento. Nós não vivemos para trabalhar, nós trabalhamos para podermos viver com dignidade.
Na mensagem para 1º de Maio, o MMTC também manifestou preocupação com o facto da crescente digitalização do mundo empresarial e económico vir a excluir milhões de pessoas do mercado de trabalho. Qual é que é o desafio aqui, tendo em conta que este desenvolvimento não se pode travar?
Nós estamos a evoluir e não é possível alterar as mudanças a que hoje estamos assistir. Mas, a questão não é impedir ou acabar com as novas plataformas, é criar regras para que elas se integrem dentro daquilo que são as regras de trabalho ou as leis laborais da nossa sociedade.
Uma área onde temos de criar regras é a dos horários de trabalho, ou do tempo de trabalho. Não podemos continuar com horários tão longos, e possivelmente não necessitamos de tanta rotatividade no trabalho, daí que uma das ações do Movimento Mundial seja a questão do domingo livre, e a diminuição do horário de trabalho. Já em 2012 a doutora Manuela Silva, economista que faz parte do grupo Economia e Sociedade, falava em estudos que indicavam que o horário podia ser reduzido e continuaria a haver a produtividade necessária, mesmo se passasse de 40 para 32 horas semanais. Ora, se nós há 100 anos lutámos, efoi possível legalizar as 8 horas diárias de trabalho sem as tecnologias que temos hoje, ora com estas tecnologias de certeza que poderemos passar de 8 para 4 horas, por exemplo.
Conheci empresas com 3000 ou 4000 trabalhadores, ligadas à indústria, que hoje produzem muito mais com 300 ou 400 trabalhadores, têm uma carteira de encomendas e uma faturação muito mais alta, com um terço dos trabalhadores que tinham há quatro ou cinco décadas atrás. Portanto, é possível fazer essa adaptação. E é uma forma de integrar mais pessoas, de toda a gente ter acesso ao trabalho, porque outro objetivo da Doutrina Social da Igreja é o pleno emprego. Se nós queremos caminhar para aí, temos que estudar formas, e uma das formas pode ser a diminuição do horário trabalho. Se eu trabalho menos vou permitir que outros se integrem.
Sobre o descanso ao domingo, em Portugal tem-se intensificado ultimamente este pedido, tanto por pessoas ligadas à Igreja, como o bispo do Porto e o cardeal-patriarca, como por sindicatos, nomeadamente a CGTP. Acredita que é possível voltar atrás desta matéria, tendo em conta que esta foi uma luta perdida há uns anos, quando se generalizou a abertura do comércio ao domingo?
Penso que esta luta não pode estar apenas ligada ao domingo sem trabalho. Há uma discussão que tem que ser feita, ao nível de sociedade, sobre o consumo e a sustentabilidade do planeta. E, quando nós fizermos uma discussão pública com todas as pessoas sobre esta questão, vamos chegar à conclusão que temos que ter estilos de vida diferentes e consumir menos.
O que é que levou à abertura dos hipermercados e de todo o comércio ao domingo? Foi o consumismo desenfreado. Aliás, na década de 90 falava-se nas ‘novas catedrais do consumo’. Esta sensibilidade para o consumo é que fez com que as grandes superfícies, e todo o outro comércio, começasse a abrir ao domingo. Se percebermos que não precisamos de consumir tanto, e que temos é que apostar em outras formas de viver, na partilha, no encontro, então a luta pelo domingo livre poderá ser diferente. Por isso é que eu digo que esta questão do domingo livre não pode ser desenquadrada de todas as outras lutas, da diminuição do horário de trabalho, de um novo estilo de vida menos consumista. Possivelmente nem tudo aquilo que hoje se constrói, executa ou produz será necessário.
Essa sensibilidade também é necessária em relação à laboração contínua, aos novos ritmos de trabalho, que impedem a conciliação com a vida familiar e provocam cada vez mais casos de esgotamento. Para além daquilo que exigimos às empresas temos de ser também exigentes no que estamos a pedir a quem trabalha para nós?
Sim, e se estamos a falar de nós como cristãos, penso que isso é o primeiro passo. É fundamental hoje lermos e adotarmos a ‘Laudato Si’. Não sei porquê a Igreja em Portugal não tem adotado este documento do Papa como um documento de incentivo a um novo estilo de vida nas comunidades e nos cristãos. Há alguns movimentos, e também uma plataforma que já a está a divulgar, mas em termos de comunidades cristãs ainda não tem passado muito, e tem ali tantos incentivos, tantas referências que podem motivar uma mudança de vida nos cristãos, levar a uma nova forma de consumir, privilegiar tudo aquilo que venha de produção ecológica e justa. Nós temos as ferramentas para mudar, temos os modelos para nos ajudarem nessa mudança, falta-nos esta vontade mesmo de mudar.
Estamos na semana do 1º de Maio, que há uns anos era um dia de descanso para a maioria dos trabalhadores, mas chegámos a 2019 com muita coisa aberta neste dia, e alguns trabalhadores a fazerem greve, em portesto. Há sinais que têm ser lidos tanto por quem emprega, como por quem é trabalhador, e deve lutar pelos seus direitos?
Claro, é um desafio para todos, para as empresas, para os trabalhadores, para quem tem nas mãos as grandes superfícies. Num país onde tantos admitem serem católicos, este é um grande desafio.
O 1º de Maio está desvirtuado quando aceitamos de ânimo leve este consumismo, esta campanha de marketing para um dia como o 1º de Maio. Podíamos considerar que havia um respeito religioso e civil para com alguns feriados, como o Natal, a Páscoa e o 1º de Maio, e quando nós deixamos perder este respeito para com alguns feriados, eu costumo dizer que é um pecado de bradar aos céus, porque estamos a perder a nossa identidade humana e a nossa identidade cristã. Se o Natal ou a Páscoa têm um significado muito grande para nós, cristãos, o 1º de Maio também tem um significado muito grande, como cristãos e como humanos. Não chegámos às 8 horas de trabalho diárias por acaso, não chegámos às regalias sociais ou aos direitos laborais por acaso, foi tudo uma questão de negociação e de luta muito intensa, muito persistente, de greves, de manifestações.
Este ano em Portugal assistimos a mudanças significativas no mundo sindical. Na greve dos enfermeiros houve aquele mecanismo de ‘crowdfunding’, que tanto celeuma deu, e segundo o jornal Expresso, desde 2017 surgiram 24 novos sindicatos, mas só dois se filiaram na UGT, e nenhum na CGTP. O sindicalismo como o conhecemos tem os dias contados, ou está só mesmo em mudança?
Possivelmente está a atravessar uma mudança. Na LOC há uma relação privilegiada com os sindicatos, porque muitos dos seus membros e militantes fazem parte de sindicatos, e esta discussão sobre a resposta que os sindicatos hoje estão a dar ao mundo de trabalho e aos trabalhadores não está totalmente enquadrada, há problemas.
Um dos privilégios de estar no MMTC foi participar no encontro de sindicatos no Vaticano (em 2017), e a mensagem que o Papa Francisco transmitiu aos sindicalistas foi clara: os sindicatos são fundamentais na nossa sociedade, e como cristãos seria ainda mais grave se abdicássemos dos sindicatos na memória, e no que eles podem ainda hoje significar na luta pelo trabalho digno e por melhores condições de trabalho. Mas, esta mudança tem que ser diferente, possivelmente, de outras.
O Papa falava que os sindicatos também têm uma missão profética. Quando nós falamos de missão profética, sabemos o que é que significa. Os profetas na nossa Igreja foram muitos, e hoje são referências muito importantes para nós. Eu falo muitas vezes do padre Abel Varzim como um profeta do seu tempo. Ora, o que é que ele fez? Foi lutar contra o sistema e apresentar propostas diferentes. Portanto, hoje o papel dos sindicatos também tem de ter este profetismo, temde ter propostas diferentes. E o Papa falou em dois aspetos importantes: primeiro, os sindicatos não podem ser sindicatos corporativistas, que lutam apenas pelo bem-estar do seu grupo, mas têm que estar abertos a todos os problemas da sociedade, incluir os desempregados e os descartados, os pobres, lutar pela integração de todos, pela inclusão. A coesão social faz-se quando todos são incluídos nesta luta. Este era um ponto. O outro era que as lutas sindicais são eficazes quando têm por fundo a solidariedade ou o bem de todos. Se nós fazemos uma luta, ou uma greve, pelo bem-estar de apenas uma parte, estamos a excluir uma grande parte dessa luta. Se uma greve de enfermeiros não tem conta que está a trabalhar num setor onde a saúde é a sua mão de obra, a vida das pessoas, se uma greve de professores não tem em conta que não são eles só, também têm os alunos, os pais dos alunos, e todos os que trabalham na área de ensino, se todas estas greves não têm em conta que há um conjunto grande de trabalhadores que não tem a mesma capacidade de negociação que têm alguns sindicatos, então não estamos a cumprir o verdadeiro papel da luta sindical.
E que contributo é que podem dar organizações com a LOC, a JOC, ou o próprio Movimento Mundial de Trabalhadores Cristãos?
Há uma coisa que me ficou do desafio do Papa Francisco, que foi o apelo ao diálogo. Ele disse, na mensagem que enviou aos sindicalistas, que os sindicatos têm de estar abertos a um diálogo permanente. Nós temos de ter horários para trabalhar, mas não podemos ter horários para o diálogo social. E eu acho que hoje é esta parte que está a faltar na nossa sociedade. Nós precisamos de um diálogo.
A Organização Internacional do Trabalho faz 100 anos de uma história importantíssima, que ajudou neste diálogo social, no papel e tarefa dos sindicatos. Possivelmente é com estas forças também, com OIT, com os sindicatos, com todos, que temos que fazer este caminho do diálogo social, sempre no sentido de que o trabalho tem de ser executado com dignidade e ser bem remunerado. Os trabalhadores têm de ter direito a uma remuneração que lhes permita viver com qualidade de vida, porque quando dizemos ‘o trabalho é fonte de vida’ , e isto é algo que é assumido por todos, então temos de ter um trabalho que nos dê a ‘vida em abundância’. Se o trabalho não permite isso, não estamos a cumprir a nossa tarefa nem a nossa missão, nós como movimento, e a Igreja e todos os cristãos como evangelizadores.