LUSOFONIAS – Roma, 30 anos depois de Angola

Tony Neves, em Roma

‘Lázaro, vem cá para fora!’, gritou Jesus à entrada do túmulo. ‘Com esta pandemia, nem pensar! Prefiro continuar morto!’ – responde Lázaro lá de dentro!  Assim humorizava um cartoon alusivo ao Evangelho deste domingo que narrava a ressurreição de Lázaro. A verdade é que pandemias e guerras trazem mais morte do que vida. São inimigos cruéis que nunca nos encontram preparados para os enfrentar. Tudo isto a propósito de algumas pessoas me pedirem para comparar a experiência de guerra em Angola (há 30 anos) com este tempo de covid 19 em Roma. Lamento, mas qualquer comparação vai falhar.

Andei 30 anos para trás, nas minhas memórias de vida. Fui consultar as duas edições de ‘Missão em Angola’, publicadas em 1996 e 1997, com crónicas escritas a partir do território angolano. Revisitar estes textos é reavivar os primeiros anos da minha vida de padre e voltar a experimentar alegrias e dores, angústias e esperanças que me marcaram para sempre.

Há 30 anos estava eu no Kuito Bié (ex-Silva Porto), uma pequeníssima cidade do interior do planalto angolano. Era ‘uma ilha de paz cercada de guerra por todos os lados’ (p.22). Mas, por ser uma cidade tão isolada e de reduzida dimensão, os ataques nocturnos quase diários provocavam rebentamentos que pareciam estoirar sempre debaixo da minha cama. Jovem, recém-chegado de Paris, não tinha estofo para aguentar um cerco desta dimensão, sentia-me estrangulado, sem ar vital para respirar. E o pior era sair de casa e olhar à minha volta: centenas de pessoas desnutridas, crianças esqueléticas, todos a gritar por um bocadinho de pão, tal a fome que as guerras geram. Doía o coração e a Igreja, através da Caritas, era a única instituição que recebia alimentos, roupa e medicamentos e que, sem olhar a credos, distribuía, embora fosse claro que não resolvia os problemas das pessoas.

Escrevi do Kuito onze crónicas apenas. Ao relê-las, sinto um aperto de alma e apetece-me gritar como o poeta Jacques Prévert, ‘como é estúpida a guerra!’. Escrevi: ‘Para além das centenas de milhar de mortos, esta terrível guerra fez muitos milhares de mutilados. No dobrar de cada esquina, a gente vê-os sem pernas, sem braços e sem nada que fazer…que futuro?! (p.23). Depois, morreu a Irmã Monique, uma Religiosa enfermeira francesa que trabalhava no hospital central e que socorria muita gente que lhe batia à porta. Morreu de um enfarte fulminante, vítima do excesso de trabalho e sofrimento: ‘foram muitos anos de preocupação e dor: das crianças que via chegar e morrer, das vítimas desta guerra a quem o hospital abria as portas sem poder fazer grande coisa!’ (p.31).

Veio a Páscoa e, também há 30 anos, a celebração foi discreta. Escrevi: ‘A Igreja lutará pela paz, pela justiça e pelos direitos humanos, doa a quem doer! Ela continuará a pugnar pelo cessar fogo, pelo diálogo, por uma mais correcta distribuição da riqueza, por mais progresso e ordem social…e por mais pão, roupa, medicamentos e voz para o povo!’ (p.34). Foram estes os meus votos de Páscoa em 1990!

Uma das grandes figuras do Bié era a Irmã Tchitalala, directora da Caritas. Entre outras iniciativas, recolheu dezenas que crianças cujos pais morreram na guerra, e fez um lar feliz que eu visitava muitas vezes: ‘Temos 45 internos. Mas é bem maior o número daqueles que conseguimos integrar em famílias e a quem apoiamos. É mais pedagógico e é uma aposta de mais futuro’ – confessou a Irmã numa entrevista a que dei o título ‘o quase tudo dos sem nada’ (pp.35-39).

Mas, no meio de tanta tragédia, o povo cristão ainda ganhou coragem para sair à rua no Corpo de Deus, onde dançou e rezou pela paz. E registei em artigo o testemunho de um dos cristãos da minha paróquia que regressou vivo do campo de reclusão e reeducação de S. Nicolau, do Namibe, e veio dizer-me que encontrou a família bem e que perdoava a quem, injustamente, o tinha denunciado e aos que o tinham maltratado na prisão. São estes e outros os momentos em que os missionários percebem que não gastam a vida em vão quando arriscam tudo e aceitam ficar lá onde a cabeça está sempre a prémio.

O Kuito foi também terra de ecumenismo, pois Padres, Irmãs, Pastores e Pastoras, e respectivas comunidades cristãs, andaram sempre de mãos dadas nesta tentativa de abrir caminhos de paz e de justiça numa terra e num tempo em que só as armas e os seus senhores erguiam as vozes e detinham o poder absoluto.

Volto à questão inicial: que relação entre o que vivi há 30 anos em Angola e vivo agora em Roma com o covid19? Tentarei explicar na próxima crónica. De qualquer forma, fique claro: aprendi a crescer em Angola, quero crescer ainda mais quando o coronavírus deixar de nos matar.

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Agência ECCLESIA

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