Literatura: Psicanalistas e teólogos leram a Bíblia em conjunto

Místicos e psiquiatras separam-se frequentemente «na natureza das suas crenças» mas encontram-se «no silêncio do seu ser»

Lisboa, 08 abr 2011 (Ecclesia) – Paranoia, neurose, depressão, descompensação psíquica e delírio foram alguns dos termos evocados esta quinta-feira, em Lisboa, para qualificar personagens e narrativas de três textos bíblicos, durante um encontro que juntou teólogos católicos, psiquiatras e psicanalistas.

Cerca de 130 pessoas lotaram o auditório e espalharam-se pelas escadas da Casa Fernando Pessoa durante a segunda sessão do ciclo de conversas ‘A Bíblia, coisa curiosa’, dedicada à relação entre o conjunto de livros sagrados para os cristãos e a psiquiatria e psicanálise.

O padre José Tolentino Mendonça, que colabora na organização da iniciativa, qualificou o encontro de “memorável” e defendeu que a “colaboração entre biblistas e psiquiatras é utilíssima” para perceber que “a Bíblia precisa de desconstrução”.

As “leituras cruzadas” começaram com a análise ao segundo e terceiro capítulos do livro do Génesis, que para o teólogo Armindo Vaz constituem um “mito”, género literário que “dá expressão ao que todo o ser humano crê” mediante uma “linguagem da fé e do profundo significado das coisas”.

O professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica salientou que os mitos expressam “medos” e “aspirações” da “condição humana”, revelam “a história secreta da alma” e por isso têm ligações com a “psicologia”.

Por seu lado, a psiquiatra Ana Catarina Silva Duarte referiu-se à serpente, presente no relato, como “símbolo de toda a libido e da sexualidade” mas também da “maldade” e “astúcia”.

A especialista acredita que o texto manifesta o “psicodrama pessoal do crescimento”, inserindo-se num “quadro neurótico” onde faltam a “alegria” e a “festa”, que apesar de fazerem “parte da vida” não entram na narrativa, que qualificou de “muito depressiva”.

A dupla seguinte de oradores refletiu sobre o livro de Job, que para a biblista Luísa Almendra criou no imaginário popular a figura de um personagem que “soube permanecer paciente perante um conjunto de adversidades terrivelmente dolorosas”.

Diante do “sofrimento imerecido e inexplicável”, o leitor aprende que a “grande questão” do ser humano é o “sentido” da existência, atravessada por sofrimentos que, ao atingirem “limites inesperados”, colocam em causa a convicção de que as boas ações resultam necessariamente numa vida favorável.

Filipe Sá começou por notar que Tolentino Mendonça “deu o peito às balas” ao convidar um psicanalista ateu, e disse que até então desconhecia o livro de Job – “Temos uma Bíblia cá em casa?”, perguntou à mulher.

O especialista, que se descreveu como uma pessoa que “perscruta a dor” de quem passa pela “capela psicanalítica” do seu “divã”, assinalou que a “dúvida” sobre os méritos do protagonista provocou o “cataclismo” numa personalidade “frágil”, que além de “muito paranoica” crê ser imune à “inveja” e à “raiva”.

Místicos e psicanalistas separam-se frequentemente “na natureza das suas crenças” mas encontram-se “no silêncio do seu ser”, afirmou Filipe Sá, aludindo à falta de explicação com que ambos se defrontam face ao não saber e à aparente ausência de Deus.

O encontro, que começou com a evocação da psicanalista Françoise Dolto, feita pelo escritor Alberto Vaz da Silva, terminou com as intervenções do padre José Tolentino Mendonça e da psiquiatra Emília Leitão, que debateram “A hospitalidade de Marta e Maria”, evocando uma das passagens do evangelho segundo São Lucas.

RM

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top