Legado de D. António Ferreira Gomes desafia Igreja a assumir necessidade de mudanças

Congresso internacional chegou hoje ao fim A Igreja Católica deve assumir o desafio de enfrentar um mundo em mudança, evitando cair na repetição de fórmulas e esquemas que não são percebidos nem valorizados pela sociedade actual. Este é um dos grandes apelos resultantes do Congresso Internacional evocativo do centenário do nascimento de D. António Ferreira Gomes (1906-1989), que hoje se concluiu no Porto. Ao longo de três dias, diversos especialistas nacionais e internacionais debruçaram-se sobre o tema “Ser cristão na sociedade, aqui e no futuro”, procurando retirar implicações práticas do legado oferecido pelo “famoso Bispo do Porto”, como dizia João Paulo II. Na sessão de encerramento, D. Carlos Azevedo, Bispo Auxiliar de Lisboa e membro da Comissão Científica do Congresso, destacou “o sentido da vida e o rigor mental de um cristão a sério, que foi verdadeiro bispo e figura rara da Igreja”. A homenagem a D. António Ferreira Gomes passou, sobretudo, por procurar novas perspectivas para a o futuro da Igreja e da sociedade, respeitando o seu legado. Nesse sentido, D. Carlos Azevedo frisou que “é urgente e sempre necessário passar a religião pela crítica, na permanente procura da verdade”. Lembrando a carta de António Ferreira Gomes a “um jovem padre da Igreja deste tempo” (único escrito do género epistolar em que o Bispo do Porto trata o destinatário por tu), o Bispo Auxiliar de Lisboa assegura que “os cristãos, sejam eles leigos ou religiosos, diáconos ou padres ou bispos, são credíveis se tiverem razão de ser, se aparecerem como aquilo que são perante si próprios e perante a sociedade”. Relativismo e secularização O desafio é maior, para os cristãos, quando eles se deparam com a crise actual do mundo ocidental secularizado, em que pontifica a “cultura da trivialidade” e o relativismo. “Um maior nível cultural, técnico-cientifico, uma maior consciência da liberdade e da dignidade do ser humano, uma maior sensibilidade social, aliada a uma mentalidade pragmática, podem favorecer a conclusão de que Deus é supérfluo”, alerta D. Carlos Azevedo. O perigo está também presente na “diversificação de propostas ideológicas, inserida no cultivo da diferença e da pluralidade”, que relativiza a escolha de uma opção e “faz com que dependa unicamente da estrutura da personalidade”. Este quadro de progressiva autonomia e de novos protagonismos desafia a Igreja a compreender, segundo o Bispo Auxiliar de Lisboa, que “repetir esquemas perante as enormes mudanças e rápidas alterações culturais e socio-económicas é ridículo, insignificante”. “Ser cristão ou não parece ser indiferente dentro do relativismo, que encontra algo de bom em todas as opções”, observa D. Carlos Azevedo. O caminho, por isso, “passa por configurar com audácia o futuro, a partir do melhor do passado, sem idolatrar a tradição ou a repetir servilmente”. “Quando as mediações não são significativas na história, na cultura e para o ser humano, algo tem de ser revisto, repensado. Foi esse o serviço que D. António realizou e nos legou”, apontou. Presença cultural e política As dificuldades que se colocam ao anúncio da mensagem cristã, nos nossos dias, exigem uma atenção particular à sociedade em que os cristãos se inserem. “O que torna credível o nosso discurso (…) é a maneira como funciona na prática a representação concreta do divino. Não é possível isolar o funcionamento social da fé da sua representação teológica”, precisou D. Carlos Azevedo. Entre os desafios que se colocam à Igreja está a resposta a uma cultura “que acentua o imaginário do êxito e do poder e a exultação do gozo desmedido como únicos objectivos da vida”. “A visão positiva do prazer e a humanização da sexualidade, com pleno sentido no amor, será um modo para cada cristão se reconciliar com o desejo e evitar tantos dramas afectivos, prevenir tantas consciências desfeitas”, disse o Bispo Auxiliar de Lisboa. Na senda de D. António Ferreira Gomes, “ser cristão aqui e no futuro obriga-nos ao dever fundamental e primário de sermos livres”, explicou o membro da Comissão Científica do Congresso, alertando contra “o abuso do poder, utilizando o nome de Deus” e exigindo a tomada de posições políticas. “D. António repetiu com clareza: «Dizer que não se faz política… é a pior maneira de a fazer»”, lembrou o prelado. “Como educar concretamente, eficazmente, para uma cidadania participativa e responsável? Quem está a preparar a nova geração de políticos? Com que ética”, interrogou. D. Carlos Azevedo foi ainda mais longe e deixou aos participantes no Congresso uma pergunta: “No futuro próximo, não será que teremos de apelar para a recomendação de D. António e assumirmos ser «desobedientes civis às dominações ilegítimas e às leis insjustas»”. Legado actual Ontem, na terra natal de D. António Ferreira Gomes (Milhundos – Penafiel), teve lugar uma emotiva homenagem. A cerimónia eucarística, presidida por D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto, foi o momento escolhido para passar em revista a vida e obra de um Bispo que se distinguiu num período conturbado da história portuguesa. “Na figura do senhor D. António Ferreira Gomes nós fomos testemunhas de como levou o Evangelho aos que estavam na Igreja e dentro da Igreja, mas também àqueles que estavam fora e, porventura, contra”, disse o Bispo do Porto. D. Armindo recordou o seu predecessor como um homem diferente dos do seu tempo, com um discurso que na dimensão pastoral procurou sempre ir mais além. O seu confronto com o regime de Salazar revelou, mais do que uma crise da Igreja, a falência do sistema político da altura. “Falamos do «caso do Bispo do Porto» no contexto de uma crise de regime e de Governo que não foi de facto crise da Igreja, mas esteve na génese de um exílio de 10 anos, interpretados como martírio, como testemunho apostólico pela liberdade e identidade da Igreja no seu episcopado”, referiu na sua homilia. O actual Bispo do Porto sublinhou ainda a dimensão pedagógica de D. António Ferreira Gomes, “não por força de obra escrita ou por virtude de doutrinas ou teorias difundidas, mas como educador em pessoa e em atitudes. Reivindicou como característica própria a sua preocupação de edificar, educando”. Octávio Carmo/AE Depoimentos Voz Portucalense – Que solução dos conflitos e exigências pacíficas urgem hoje tomar? D. Januário Torgal Ferreira – Incidi a minha apresentação na releitura da noção de “guerra justa” (hoje, preferentemente, substituída pela de “solução de conflitos”) através do último recurso (do extremo ao recurso) da guerra… A favor da Paz. É notória a crítica à guerra preventiva, em que se pode transformar, em alguns casos, a defensiva… – a justiça de defesa diante do agressor em situações de regimes transgressores da dignidade da pessoa humana; – a defesa da prioridade das estruturas diplomáticas de mediação e de arbitragem em função da paz e da anulação da guerra; – a recusa de sistemas de tortura e de terrorismo; – a oposição crítica ao morticínio da guerra nuclear (tema da maior actualidade com o problema do Irão); – comentário à presença dum serviço de assistência religiosa no domínio das Forças Armadas e de Segurança, agora em tempos de Democracia e de missões internacionais de paz. VP – Como configura e acha que deve ser configurada a Fé no futuro da Humanidade? José Eduardo Borges de Pinho – Falar de configurações da fé no futuro não é fazer futurologia. Trata-se, apenas, de procurar ler alguns dos sinais que nos são dados no presente em ordem a perceber melhor as consequências que têm, as exigências que daí decorrem, as prioridades que nos são pedidas como cristãos. Destaco seis aspectos nesse desenhar do perfil da existência cristã nos tempos que estão para vir. 1- Uma fé profundamente personalizada e traduzida necessariamente em expressões diversas. Suportada comunitariamente, como não pode deixar de ser, a fé será cada vez mais individualmente configurada, o que implica um sentido profundo da história pessoal de fé de cada cristão. Associada a esta necessária personalização da fé emerge a diversidade crescente de expressões que a existência crente pode e deve tomar dentro da unidade da mesma fé. 2 – Uma fé consciente dos condicionalismos da sua própria historicidade. Um dos maiores desafios da vivência crente, hoje e amanhã, consiste na necessidade de se perceber mais conscientemente a historicidade que envolve o caminhar na fé e que atinge todos os âmbitos do seu viver: desde a doutrina às instituições, desde questões de ordem ética aos modos de agir práticos. Importa compreender que o “absoluto” dos valores (da pretensão cristã de verdade em seus diversos elementos) só pode ser afirmado no “relativo”, no “provisório”, das circunstâncias históricas. 3 – Uma identidade cristã afirmada e vivida em atitude de diálogo. Em vez de partir de uma identidade auto-suficiente, fechada em si mesma, de pendor defensivo, a fé do futuro terá de se configurar mais estruturalmente numa atitude consistente e ampla de diálogo. Isso significa entender a abertura ao outro na sua diferença como elemento indispensável à construção da própria identidade (uma identidade em processo de diálogo). 4 – Uma fé de seguimento sob o horizonte do Reino de Deus. A fé do futuro é chamada a ultrapassar tendências moralizantes, que se fixam sobretudo em preceitos e normas, para se configurar mais nitidamente como uma fé de seguimento de Jesus sob o horizonte do Reino de Deus. Em causa estão o reconhecimento da prioridade absoluta da questão de Deus, a centralidade a dar ao anúncio e ao testemunho do amor de Deus, a capacidade de se saber distinguir o essencial do secundário. 5 – Uma fé marcada pelo espírito de catolicidade. A vivência da fé no futuro caracterizar-se-á por um forte espírito de catolicidade. O que exige a superação de um cristianismo mental e culturalmente circunscrito aos critérios, necessidades e interesses locais, em ordem a concretizar uma existência cristã atenta e aberta a todas as dimensões da catolicidade da fé. Na verdade, o discurso sobre Deus só é credível como um discurso inclusivo, aberto a toda a humanidade, seus problemas e necessidades. 6. Uma fé consciente do seu potencial e do seu dever humanizadores. De uma fé polarizada muitas vezes de forma unilateral em expressões formais de ordem religiosa irá caminhar-se no sentido de uma vivência da fé assente numa espiritualidade mais sensível à presença de Deus no quotidiano e estruturada por um grande sentido de humanidade. Isso significa também fazer o percurso de uma existência crente menos sensível ao compromisso social e político em ordem a uma fé mais activa na sua vocação pública, consciente do seu potencial e do seu dever humanizadores. VP – Segundo os valores humanos e cristãos, como lê e ajuíza a realidade e a História, do nosso tempo e do de D. António? João Duque – Dentro da brevidade exigida, diria que há apenas um valor humano e cristão suficiente para ajuizar da realidade, no tempo de D. António e no nosso: a centralidade da pessoa humana concreta. Esta é anterior e mais fundamental do que todas as outras realidades – a não ser Deus, pois essa centralidade fundamenta-se precisamente em Deus. Nesse sentido, o critério de juízo crítico é sempre o mesmo: quando uma época, instituições ou atitudes não respeitarem suficientemente a dignidade e a liberdade da pessoa humana concreta, o cristão deve denunciar profeticamente esse desrespeito, custe o que custar. Nisso, o exemplo de D. António continua vivo e necessariamente eficaz. É claro que o antigo bispo do Porto seguiu esse critério de diversos modos, consoante as circunstâncias com que se viu confrontado. No estado novo, denunciou a ideologia colectiva nacionalista, quando construída à custa da liberdade e da promoção da pessoa particular; no pós-25 de Abril, denunciou o mesmo problema, embora levado a cabo por outros meios (luta de classes, colectivismo marxista, etc.). Hoje, a questão situa-se mais ao nível das ideologias perfeccionistas (genética, virtualismo cibernético, mediatismo pós-humano, etc.), dos colectivismos consumistas (modas, culturas de massa, economia global, etc.), dos superficialismos individualistas do hedonismo (sexo banal, experiências dionisíacas, bem-estar, culto do corpo e da imagem, etc.), ou dos espiritualismos desincarnados (culto das energias cósmicas, cultura «new age», etc.). Tudo isto levanta sérios problemas ao real respeito pela pessoa humana concreta, na sua finitude corpórea, na sua imperfeição natural – enquanto ser humano real, portanto. E esses problemas são problemas colocados aos cristãos, exigindo a sua corajosa intervenção, mesmo sendo politicamente incorrecta. VP – Qual foi o recurso à doutrina da Igreja na crítica de D. António, à política social do Estado Novo? Manuel Pinho Ferreira – Quando saiu a Pacem in terris, chegara ao conhecimento de D. António rumores de que ele tinha colaborado na elaboração da encíclica e que estaria vingado pela sua doutrina, que fora contestada. Deixou, por isso, um testemunho: “Ora aí está o que eu pretendi dizer, mas não estive na elaboração da Pacem in terris”. No Congresso irei abordar em que parte da obra D. António seguiu a Pacem in terris. Por exemplo, no Pro-Memoria, a célebre carta a Salazar, ele usou a mesma metodologia da Pacem in terris. Importa apresentar a sociedade capaz de garantir a paz e demais valores, colocando no centro a pessoa humana, assim como o Estado a promover o bem comum e a facilitar os deveres da pessoa. Depois, o Papa João XXIII dizia que a sociedade tem de ser fundada na paz, no amor, na liberdade e na justiça. D. António cita uma frase de St. Agostinho, recebida de Cícero, em que definia a sociedade política como resultante da natureza racional da pessoa, exigindo a verdade, para que as pessoas deixem de ser uma multidão para passarem a ser as coisas que elas amam. Concluo que o Pro-Memoria foi um documento precursor da Pacem in terris. Nesse aspecto, D. António deu esse testemunho quando saiu a encíclica e aquando do confronto na Conferência Episcopal Portuguesa (um deles deu-se sobre a “Pastoral colectiva” e o outro quando se conheceu o Pro-Memoria). André Rubim Rangel/VP

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