João Paulo II faz um balanço da situação internacional

Discurso ao Corpo Diplomático credenciado junto da Santa Sé Discurso ao Corpo Diplomático credenciado junto da Santa Sé Excelências, Senhoras e senhores, Compraz-me sempre, ao iniciar-se um novo ano, encontrar-me convosco por ocasião da tradicional troca de felicitações. Agradeço particularmente os desejos que sua excelência o embaixador Giovanni Galassi me expressou em vosso nome. De todo coração agradeço os vossos nobres sentimentos assim como o interesse benevolente com o qual seguis quotidianamente a actividade da Santa Sé. Através das vossas pessoas, sinto-me perto dos povos que representais. Todos podem estar seguros da oração e do afecto do Papa, que os convida a unir talentos e recursos para construir juntos um porvir de paz e de prosperidade compartilhada! Este encontro oferece-me também a ocasião privilegiada para colocar junto a vós um olhar sobre o mundo, tal e como o modelam os homens e mulheres deste tempo. A celebração de Natal recorda a ternura de Deus pela humanidade, manifestada em Jesus, e fez ressoar uma vez mais a mensagem sempre nova de Belém: «Paz na terra aos homens que amam o Senhor!». Esta mensagem chega este ano, mais uma vez, enquanto muitos povos continuam a experimentar as consequências de lutas armadas, sofrem a pobreza, são vítimas de injustiças escandalosas ou de pandemias difíceis de controlar. Sua excelência, o Senhor Galassi, fez eco destas com a agudeza que todos reconhecemos nele. Por minha parte, eu quero compartilhar convosco quatro convicções que a inícios do ano 2004 envolveram a minha reflexão e oração. 1. A PAZ SEMPRE AMEAÇADA Estes últimos meses viram-se afectados pelos acontecimentos que sucederam no Médio Oriente, que se apresenta, uma vez mais, como uma região de contraste e de guerras. Os numerosos passos dados pela Santa Sé para evitar o penoso conflito ocorrido no Iraque são conhecidos. O que hoje importa é que a comunidade internacional ajude os iraquianos, que se libertaram de um regime que os oprimia, para que estejam em condições de retomar as rédeas do seu país, de consolidar a sua soberania, de determinar democraticamente um sistema político e económico conforme suas aspirações e que o Iraque volte a ser um sócio de confiança na comunidade internacional. A falta de resolução do problema israelo-palestiniano continua a ser um factor de desestabilização permanente para toda a região, sem contar os inenarráveis sofrimentos impostos às populações israelita e palestiniana. Não me cansarei jamais de repetir aos responsáveis destes povos: a opção pelas armas, o recurso por uma parte ao terrorismo e por outra parte às represálias, à humilhação do adversário, à propaganda do ódio, não levam a nenhuma parte. Somente o respeito das legítimas aspirações de uns e outros, o regresso à mesa de negociações e o compromisso concreto da comunidade internacional podem levar a um início de solução. A autêntica e duradoura paz não se pode reduzir a um simples equilíbrio entre as forças presentes; é sobretudo o fruto de uma acção moral e jurídica. Poderia mencionar outras tensões e conflitos, sobretudo em África. O seu impacto sobre as populações é dramático. Aos efeitos da violência acresce a deterioração do tecido internacional, fazendo que povos inteiros caiam no desespero. . Haveria que evocar desta forma o perigo que ainda representam a fabricação e o comércio de armas, que continuam a aparecer abundantemente nestas zonas em perigo. Esta manhã quero render homenagem em particular a D. Michael Courtney, núncio apostólico no Burundi, assassinado recentemente. Assim como todos os núncios e todos os diplomatas, quis antes de tudo servir à causa da paz e do diálogo. Rendo tributo ao seu valor e à sua preocupação por apoiar o povo burundinês no seu caminho para a paz e para uma maior fraternidade, em virtude de seu ministério episcopal e de sua tarefa diplomática. Recordo, desta forma, a memória do senhor Sérgio Vieira de Mello, representante especial da ONU no Iraque, assassinado num atentado no exercício de sua missão. Quero evocar também todos os membros do corpo diplomático que, ao longo dos últimos anos, perderam a vida ou tiveram de sofrer por causa de seu mandato. E, como não mencionar o terrorismo internacional que, ao semear o medo, o ódio e o fanatismo, desonra todas as causas que pretende servir? Limitar-me-ei a dizer que toda civilização digna deste nome supõe a rejeição categórica das relações de violência. Por este motivo, e digo-o diante de um auditório de diplomatas, não podemos resignar-nos nunca a aceitar passivamente que a violência tome a paz como refém! É mais urgente do que nunca voltar a uma segurança colectiva mais efectiva que dê à Organização das Nações Unidas o lugar e o papel que lhe corresponde. Há que aprender mais do que nunca a tirar as lições do passado distante e recente. Em qualquer caso, há uma coisa clara: a guerra não resolve os conflitos entre os povos! 2. A FÉ: FORÇA PARA CONSTRUIR A PAZ Se vou falar aqui em nome da Igreja Católica, sei que as diferentes confissões e os fiéis de outras religiões se consideram como testemunhas de um Deus de justiça e de paz. Quando cremos que toda pessoa humana recebeu do Criador uma dignidade única, que cada um de nós é sujeito de direitos e de liberdades inalienáveis, que servir a outros é crescer em humanidade, e – com maior razão – quando se diz discípulo d’Aquele que disse: «Nisto conhecerão todos que sois discípulos meus: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 35), pode-se compreender claramente o capital que representam as comunidades de crentes na construção de um mundo pacificado e pacífico. No que a ela se refere, a Igreja Católica põe à disposição de todos o exemplo de sua unidade e de sua universalidade, o testemunho de muitos santos que souberam amar seus inimigos, de muitos homens políticos que encontraram no Evangelho o valor para viver a caridade nos conflitos. Ali, onde a paz está em causa, há cristãos testemunhando com palavras e actos que a paz é possível. Este é o sentido, vós sabeis bem, das intervenções da Santa Sé nos debates internacionais. 3. A RELIGIÃO NA SOCIEDADE: PRESENÇA E DIÁLOGO As comunidades de crentes estão presentes em todas as sociedades como expressão da dimensão religiosa da pessoa humana. Portanto, os crentes esperam legitimamente poder participar do diálogo público. Infelizmente, deve-se constatar que nem sempre é assim. Somos testemunhas, nos últimos tempos, de uma atitude que poderia pôr em perigo o respeito efectivo da liberdade de religião em certos países da Europa. Se todo o mundo está de acordo em respeitar o sentimento religioso dos indivíduos, não se pode dizer o mesmo do «facto religioso», ou seja, a dimensão social das religiões, ao esquecer os compromissos assumidos no marco do que então se chamava a «Conferência sobre a Cooperação e a Segurança na Europa». Com frequência se invoca o princípio de laicidade, em si mesmo legítimo, se é compreendido como a distinção entre a comunidade política e as religiões (Cf. «Gaudium et Spes», n. 76). Mas, distinção não quer dizer ignorância! A laicidade não é o laicismo! Não é outra coisa que o respeito de todas as crenças por parte do Estado, que assegura o livre exercício das actividades de culto, espirituais, culturais e caritativas das comunidades de crentes. Numa sociedade pluralista, a laicidade é um lugar de comunicação entre as diferentes tradições espirituais e a nação. As relações Igreja-Estado podem e devem dar lugar a um diálogo respeitoso, que transmita experiências e valores fecundos para o porvir de uma nação. Um sadio diálogo entre o Estado e as Igrejas – que não são concorrentes, mas parceiros -, pode sem dúvida favorecer o desenvolvimento integral da pessoa e a harmonia da sociedade. A dificuldade para aceitar o facto religioso na vida pública verificou-se de maneira emblemática por ocasião do recente debate sobre as raízes cristãs da Europa. Alguns fizeram uma releitura da história através do prisma de ideologias redutoras, esquecendo o contributo do cristianismo para a cultura e as instituições do continente: a dignidade da pessoa humana, a liberdade, o sentido do universal, a escola e a universidade, as obras de solidariedade. Sem subestimar as demais tradições religiosas, é um facto que a Europa se afirmou ao mesmo tempo em que era evangelizada. E é um dever de justiça recordar que até há pouco tempo, os cristãos, ao promover a liberdade e os direitos do homem, contribuíram para a transformação pacífica de regimes autoritários, assim como para a restauração da democracia na Europa central e oriental. 4. CRISTÃOS, TODOS JUNTOS, SOMOS RESPONSÁVEIS PELA PAZ E PELA UNIDADE DA FAMÍLIA HUMANA Sabeis que o compromisso ecuménico é um dos interesses de meu Pontificado. Com efeito, estou convencido de que se os cristãos fossem capazes de superar suas divisões o mundo seria mais solidário. Por este motivo sempre favoreci os encontros e declarações comuns, vendo em cada um deles um exemplo e um estímulo para a unidade da família humana. Cristãos, temos a responsabilidade pelo «Evangelho da paz» (Ef 6,15). Todos juntos podemos contribuir eficazmente para o respeito da vida, a tutela da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos inalienáveis, da justiça social e da preservação do ambiente. Também, a prática de um estilo de vida evangélico faz com que os cristãos possam ajudar os seus companheiros de humanidade a superar os instintos, a viver gestos de compreensão e de perdão, a sair juntos em ajuda dos que necessitam. Não se valoriza suficientemente a força pacificadora que os cristãos unidos poderiam ter no seio de sua própria comunidade, assim como no seio da sociedade civil. Se digo isto, não é só para recordar a todos os que invocam a Cristo a imperiosa necessidade de empreender com resolução o caminho que leva à unidade como Cristo a quer, mas também para indicar aos responsáveis das sociedades os recursos disponíveis no património cristão e naqueles que o vivem. Neste campo, pode-se citar um exemplo concreto: a educação na paz. Haveis podido reconhecer nestas palavras o tema de minha Mensagem para o dia mundial da paz deste ano. À luz da razão e da fé, a Igreja propõe uma pedagogia da paz para preparar tempos melhores. Deseja pôr à disposição de todos as suas energias espirituais, convencida de que «a injustiça há de complementar-se com a caridade» (n. 10). Isto é o que propomos humildemente a todos os homens de boa vontade porque, «nós cristãos sentimos, como característica própria de nossa religião, o dever de formar-nos a nós mesmos e aos demais para a paz» (n. 3). Estes são os pensamentos que queria compartilhar convosco, excelências, senhoras e senhores, ao começar um novo ano. Amadureceram ante o presépio, ante Jesus que compartilhou e amou a vida dos homens. Continua sendo contemporâneo a cada um de nós e a cada um dos povos aqui representados. Confio a Deus na oração vossos projectos e realizações, e invoco para vós mesmos e para vossos entes queridos a abundância de suas bênçãos. Feliz ano novo! Vaticano, 12 de Janeiro de 2004, João Paulo II

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