Importância da Caritas in Veritate para a DSI

Quando se esperaria que Bento XVI encerrasse a sua trilogia de encíclicas “teologais” (caridade: DCE; esperança: SS) com uma encíclica sobre a fé, surgiu a Carias in Veritate (CV), sobre o “o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade”. O Papa quis celebrar os quarenta anos da encíclica Populorum Progressio, uma “carta magna” do desenvolvimento, que é “o novo nome da paz” (PP 87). Mas, quando se preparava para a publicar rebentou a crise que começou por ser financeira, mas foi alastrando para todos os âmbitos sociais. E o Papa esperou dois anos para poder dar o contributo da Igreja para este gravíssimo desafio.

Tendo presente que a “finalidade principal (da DSI) é interpretar as realidades, examinando a sua conformidade ou desconfor-midade com as linhas do ensinamento do Evangelho” (SRS 41), este atraso é já uma prova da grande importância da encíclica para a DSI. A demora propositada permitiu dar o contributo atempado da Igreja para as enormes dificuldades com que todo o mundo se debatia, confirmando assim “a continuidade da doutrina social da Igreja e, conjuntamente, o seu renovamento constante. Com efeito, continuidade e renovamento constituem uma comprovação do valor perene do ensino da Igreja” (SRS 3).

A encíclica é um texto longo (o maior de todos os documentos sociais) e denso, onde se cruzam inúmeros problemas numa urdidura onde a crise está sempre subjacente mas o tema central e unificador é “o desenvolvimento integral”. Poderá estranhar-se que o desenvolvimento não venha também adjectivado com “solidário”, pois Paulo VI muito insistiu nestas duas dimensões: “o desenvolvimento integral do homem e o desenvolvimento solidário da humanidade” (PP 5). Mas esta “falha” é sobejamente compensada ao longo de todo o texto com os constantes apelos não só à solidariedade (pelo menos 35 vezes aparece a palavra) mas também às suas versões actualizadas, como fraternidade (13 vezes), gratuidade (10), dom (19).

Dado o pouco espaço de que disponho, gostaria de referir algumas novidades. Não se trata apenas de novos temas pouco desenvolvidos ou inexistentes em encíclicas anteriores, como o novo poder político dos consumidores (66); economia da gratuidade (38); ecobiologia (32); direitos universais à água e à alimentação (27); técnica e mentalidade tecnicista (68-71); trabalho “decente” (63); turismo sexual (61); energias renováveis (59-60); ética das finanças (65); microcrédito (45,55). Há também uma afirmação que terá passado despercebida, mas encerra uma realidade social muito comum: “é bom formar também um válido critério de discernimento, porque se nota um certo abuso do adjectivo “ético”, o qual, se usado vagamente, se presta a designar conteúdos muito diversos, chegando-se a fazer passar à sua sombra decisões e opções contrárias à justiça e ao verdadeiro bem do homem” (45).

Mas o que me parece a principal novidade é, digamos, hermenêutica. Bento XVI propõe uma nova chave de leitura: “a caridade na verdade”. Não é novidade que “a caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja… que é, como ensinou Jesus, a síntese de toda a Lei” (2). É verdade que “a caridade é amor recebido e dado; é “graça” (cháris) (5) e que “o amor é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz” (1). Mas cada um só “encontra o bem próprio, aderindo ao projecto que Deus tem para ele a fim de o realizar plenamente: com efeito, é em tal projecto que encontra a verdade sobre si mesmo e, aderindo a ela, torna-se livre. Por isso, defender a verdade, propô-la com humildade e convicção e testemunhá-la na vida são formas exigentes e imprescindíveis de caridade” (1). É essencial esta articulação da caridade com a verdade. Caridade não é amar as pessoas ou os povos de qualquer maneira. É amá-los na sua verdade, isto é, naquilo que são chamados a ser de acordo com o seu projecto que torna cada um o que realmente está chamado a ser. Olhar a caridade desta perspectiva é perceber que se tem de amar conforme as circunstâncias, que o amor terá de ser vivido de modos adequados, segundo esta verdade. É nesta “força propulsora” que “o desenvolvimento humano integral tem o seu critério orientador” (77).

Pode, no entanto, ficar uma sensação incómoda com afirmações como esta: “a adesão aos valores do cristianismo não é só um elemento útil mas indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humano integral” (4; cf 8; 11; 13; 29; 51). Sendo a encíclica dirigida a “todos os homens de boa vontade”, como se sentirão os não crentes perante tais afirmações? E será que só com os critérios cristãos se conseguirá uma sociedade justa e fraterna? Penso que não. Mas também penso que, sem poder ignorar a gravidade desta questão, cuja reflexão não cabe em tão curto espaço, esta encíclica dá o contributo da Igreja, tão indispensável como outros, para em diálogo conseguirmos um desenvolvimento integral e solidário. Porque “a verdade é “lógos” que cria “dia-lógos” e, consequen-temente, comunicação e comunhão. A verdade, fazendo sair os homens das opiniões e sensações subjectivas, permite-lhes ultrapassar determinações culturais e históricas para se encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas.” (4).

José Dias da Silva
zedias.coimbra@gmail.com

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